( Contém spoiler)
No dia 17 de setembro, estreou na plataforma Netflix a produção sul coreana “Round 6”, criada e dirigida pelo genial Hwang Dong – hyuk. Em menos de dez dias, a série alcançou o topo das mais vistas, atingindo o primeiro lugar em vários países em todo o mundo. Um sucesso retumbante que está chamando a atenção da opinião publica ao misturar jogos infantis com uma carga de violência tão brutal, que deixa muitas produções de Tarantino no chinelo.
Ted Sarandos, Co-CEO da Netflix, chegou a declarar que essa produção poderia se tornar o maior seriado streaming de todos os tempos. Round 6 superou a alta audiência de sucessos como Bridgerton, Lupin, The Witcher, Casa de Papel e outros. Até mesmo o fundador da Amazon, Jeff Bezos, publicou no Twitter elogios aos rivais por conta do sucesso dessa série, considerando o feito “impressionante e inspirador”.
O curioso é que estamos falando de uma produção cinematográfica na qual excelentes atrizes e atores não falam inglês, vivem um drama que, apesar de toda distopia, expõe a crueldade de uma elite econômica que abusa do seu luxo e diversão às custas de uma sociedade desigual, preconceituosa, individualista e violenta. Além da atuação brilhante e cativante do protagonista Lee Jung – Jae, que vive uma espécie de “seu madruga perdido nos jogos mortais”, o desempenho do elenco e a construção de tipos que identificamos comumente no convívio social é comovente e impacta o sistema nervoso de qualquer espectador. Você vai rir, vai chorar, vai também aguçar o seu senso critico sobre a forma que nos organizamos socialmente hoje e para onde tudo isso pode levar a humanidade.
O próprio diretor de Squid Game ( nome original da série), em entrevista recente, declarou que começou a criá-la dez anos atrás, num momento no qual passava por dificuldades financeiras. E o seu objetivo era construir uma fábula ou uma alegoria da própria sociedade capitalista.
Nem tão distópica assim
Em resumo, o enredo trata de centenas de pessoas que passam por dificuldades financeiras, desemprego, dividas e problemas tão dramáticos que envolve também familiares, que as colocam numa situação de aceitar a proposta para participar de jogos no qual o vencedor ganharia um prêmio bilionário. Aqueles que não conseguissem passar pelos jogos seriam eliminados, pagando com a própria vida, na maioria das vezes com muita violência e sangue.
A série eleva a competição em busca de conforto financeiro ao máximo, potencializando o que há de mais cruel e perturbador na natureza humana para sobreviver num ambiente de altíssima adversidade e disputa entre os jogadores. Mas, se olharmos atentamente para o mundo real em comparação com a distopia de Round 6, vamos encontrar semelhanças assustadoras, e talvez até piores. Quem arriscaria a própria vida para participar de jogos nos quais a chance de receber um prêmio bilionário é mínima e de perder a vida da maneira mais cruel é bastante provável? Somente pessoas em situação altamente desesperadora e que já estão com suas vidas destruídas poderiam aceitar uma proposta dessas.
Recentemente, vimos a triste história da enfermeira brasileira que, na tentativa de cruzar clandestinamente a fronteira entre México e EUA, não conseguiu acompanhar o grupo, foi deixada para trás e acabou morrendo de sede e fome em pleno deserto. O mais grave é que não se trata de um caso isolado. Estão ficando cada vez mais comuns as cenas da imigração para a Europa, impactantes. Famílias, mulheres, homens, jovens e crianças morrendo afogadas por se aventurarem em botes, sem qualquer segurança para cruzar o mar que separa o continente africano do europeu.
E o mais impressionante, na vida real: essas pessoas estão arriscando suas vidas e de seus familiares, não para ganhar um prêmio bilionário, mas para conseguir um emprego, para fugir de guerras, para escapar de ditaduras sanguinárias, para reconstruir suas vidas em condições mínimas de dignidade e liberdades democráticas. É assustador imaginar que a vida de bilhões de seres humanos pode ser ainda pior e sem alternativas, do que o horror que assistimos em Round 6. Essa é a genialidade do seu criador, que coloca a reflexão sobre as contradições e pesadelos que vivemos na sociedade capitalista no centro do debate publico.
Na barbárie ainda há solidariedade
A sofisticação da construção de todo o roteiro demonstra um trabalho árduo e minucioso em apresentar não só a perversidade e profunda canalhice da burguesia e seus agentes Vips que têm o prazer sádico e nazi-fascista em assistir com requinte à barbárie dos jogos. Mas, também, em diferentes situações, temas que envolvem a luta de classes, violência de gênero, machismo, imigração, falsos discursos democráticos, preconceito, fragilidades morais, trafico de órgãos, falta de acesso a saúde publica, desemprego, velhice, desigualdade social, entre outros, atravessam todos os episódios da série.
Mas apesar da alta exposição dos horrores da condição humana no sistema capitalista, o criador da série não se esqueceu de nos dizer que é possível a solidariedade humana, e esse gesto está presente em vários momentos, em especial na vida errante do protagonista.
São elementos da natureza humana, tão pouco evidenciados numa sociedade injusta e de poucas oportunidades, mas que poderiam ser destacados, primando como gestos em outro tipo de sociedade, no qual os valores da igualdade e fraternidade estivessem em primeiro lugar. A humanidade não é cruel por si mesma, são as condições sociais de vida que nos pressionam cotidianamente a não nos reconhecermos enquanto classe trabalhadora, a escolher a luta individual e não coletiva, a não acreditar mais numa saída igualitária e fraterna para a vida na terra.
Round 6 talvez seja a antessala de um Mad Max, é um alerta, um aviso. Que o seu sucesso de público possa fazer as pessoas em todo mundo tirarem as melhores conclusões.
*Gibran Jordão é historiador.
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