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Os dilemas da Convenção Constitucional chilena

José Pereira

Rejane Hoeveler

Rejane Carolina Hoeveler é historiadora. Mestra e doutora em História Social pela UFF (Universidade Federal Fluminense). Co-organizadora do livro A onda Conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil (Rio de Janeiro, Mauad, 2016). Atualmente é pós-doutoranda em Serviço Social pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas).

Nas últimas semanas, temos assistido à instalação e termina agora a primeira fase dos trabalhos da Convenção Constitucional no Chile, onde um plebiscito em novembro de 2020 aprovou a elaboração de uma nova Constituição para o país, enterrando a Carta aprovada por Augusto Pinochet em 1980. O processo é inédito na história do país, que nunca teve uma Constituição elaborada por representantes diretos livremente eleitos com esta finalidade exclusiva. É a primeira vez, portanto, que se estão colocando diversos debates políticos e legais tanto de forma como de conteúdo, que alguns países que tiveram novas Constituições depois das ditaduras

Inicialmente, o estallido social ocorrido em outubro de 2019 não possuía esse caráter constituinte; na verdade, tratou-se de um processo destituinte, embalado por uma forte crise de representatividade política, com um rechaço aos partidos e ao sistema político, porém dotado de um signo marcadamente anti-neoliberal. É preciso notar que a instalação da Convenção, ademais a primeira convenção paritária da História e com o direito de representação assegurado aos povos originários, não significou um refluxo nas lutas: os convencionais são diariamente pressionados pelos movimentos sociais e suas bases, de maneira a responder diretamente pelos resultados dos trabalhos. Não obstante, é sempre importante assinalar as possíveis consequências do enquadramento institucional de uma vontade popular dada a inevitável contaminação do Direito burguês neste processo.

Como sabemos, uma Constituição é um retrato de determinado momento da correlação de forças políticas e sociais. Tendo sido fruto de um processo de luta social anti-capitalista e progressista, é de se esperar que a nova Constituição reflita este espírito em suas linhas, e até o dia 4 de julho de 2022, será marcado o plebiscito de saída, isto é, um novo plebiscito para aprovação do texto elaborado por este corpo de representantes.

Entretanto, alguns obstáculos começam a se apresentar no caminho daqueles que desejam mudanças profundas na estrutura social, política e econômica do país. Podemos elencar pelo menos três neste momento.

Sabotagem da direita dura

Conforme declarou Beatriz Sánchez e vêm notando diversos participantes e observadores do processo constituinte, dado o fato de não ter conseguido reunir um terço dos votos para poder impedir avanços sociais reais, a direita que vem se destacando é justamente aquela que deslegitima a própria Convenção. Sua estratégia é roubar os holofotes, “provocar” os coordenadores da Convenção e a esquerda, afirmando que não estão sendo representados; conformando apenas 17 dos 155 convencionales, são poucos mas fazem barulho suficiente (curiosamente, há o mesmo número de delegados indígenas). Muitos deles fizeram parte da campanha pelo “não” no plebiscito, defendendo a manutenção da Constituição neoliberal de Pinochet. Conforme afirmou o professor e advogado Mauricio Daza, seu objetivo é obstruir os trabalhos internamente e desprestigiá-la externamente. O grande problema aqui é que os convencionaies da extrema-direita não conseguiriam fazê-los por si sós: contam com uma postura similar por parte da mídia empresarial que se beneficia do modelo neoliberal chileno e também buscam desacreditar os trabalhos da Convenção. O caso mais emblemático neste sentido foi quando as sabotadoras Marcela Cubillos e Teresa Marinovic foram a programas de televisão afirmar que não lhes interessava saber dos povos indígenas, incitando explicitamente o ódio racial. Sem a colaboração dos meios de comunicação, tais estratégias políticas sujas não encontrariam eco.

Risco de desinteresse

O segundo risco no caminho da escritura de uma Constituição que proponha mudanças radicais, apesar de nada menos de 77 dos eleitos as defenderem é que os debates se tornem incompreensíveis aos olhos da maioria da população. Essa é a sensação de muitos neste momento, porque nesta primeira fase, fora debatida e determinada exclusivamente a metodologia de trabalhos da própria Convenção; e somente a partir dos próximos meses os temas de conteúdo social, como previdência, educação, saúde, meio ambiente, relações internacionais, serão debatidos. Entretanto, mesmo aí os debates também se darão em linguagem técnica, muitas vezes de difícil tradução para o grande público. A conexão dos trabalhos da Convenção com as eleições presidenciais também pode atrapalhar mais do que ajudar, na medida em que a defesa de posições dentro da Convenção pode ser confundida com a defesa de interesses políticos particulares, como vantagens para os partidos no sistema partidário e eleitoral, também em debate na Constituinte.

Um exemplo é o debate sobre os dois terços, que dividiu a própria esquerda: enquanto alguns defendem a necessidade de dois terços dos votos da Convenção para aprovação dos artigos da nova Constituição (que será escrita desde uma folha em branco, e não por reformas ao texto anterior), outros são contrários, alegando que era isso o que impedia anteriormente reformas constitucionais mais robustas. Observando esse dilema a partir da história brasileira, nos parece razoável a defesa da primeira posição (da necessidade de dois terços para mudanças constitucionais), pois isso ajudaria a proteger a Carta de investidas da direita, como aconteceu no Brasil ao longo dos anos 1990. Aqui, apesar da aprovação de uma Constituição bastante avançada no que se referia a direitos sociais, as sucessivas contrarreformas legais, principalmente ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, dilapidaram a Constituição de 1988. De todos modos, é um dos debates que aos olhos da maioria da população, parece longínquo e abstrato, não toca nos problemas cotidianos mais sentidos, e soam até mesmo como preocupações de políticos profissionais.

Oscilações ideológicas

O terceiro fator que pode enfraquecer a esquerda radical na Convenção é de ordem ideológica: a degradação das condições econômicas e sociais em função da pandemia, que é mundial, se faz cada dia mais dramática, podendo dessa vez não desaguar em rebelião anti-neoliberal como em outubro de 2019, mas em seu contrário: em mobilizações de direita, propondo alternativas pseudo-radicais e apoiando-se no sentimento anti-partido. Os acontecimentos ocorridos no último dia 16 de setembro, no qual centenas de chilenos saíram às ruas de Iquique, ao norte, com as cores da bandeira, para humilhar e destruir pertences de refugiados venezuelanos, são extremamente graves e preocupantes. A questão da migração no Chile não começou agora, e a xenofobia não é apenas um detalhe na paisagem social e mental chilena, sendo um fator importante para um possível crescimento da direita dura.

Como estará a correlação de forças ao longo do próximo ano e até julho de 2022? Serão consolidadas institucionalmente as bandeiras de outubro de 2019, como o fim das AFP, educação e saúde públicas, desprivatização da água, políticas de equidade de gênero, direitos dos territórios? Para que isso aconteça, os movimentos deverão se manter ativos nas bases; e os representantes da esquerda devem estar atentos para os sensíveis humores sociais, não subestimando o poder daqueles cujas fortunas dependem da continuidade a qualquer custo do modelo mais desigual do planeta.

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