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MUNDO

Canadá: “Toda criança importa”

O dia 30 de setembro marcou mais um dia de luta e busca pela verdade no Canadá

Rogério Freitas, do Canadá

O dia 30 de Setembro marcou mais um dia de luta no Canadá. Tratou-se de uma série de homenagens às crianças mortas enquanto frequentavam escolas residenciais, além de sobreviventes, famílias e comunidades profundamente afetadas pelo legado deste sistema. Na maioria das cidades foi possível ver muitas pessoas vestidas de camisas laranjas e vários protestos pacíficos nas ruas12.

O Orange Shirt Day (dia da camisa laranja) foi originalmente concebido pela comovente história de uma garotinha indígena de 6 anos chamada Phyllis Webstad, sobrevivente de uma escola residencial. Ela vestia em seu primeiro dia de aula uma camisa laranja, a qual representava sua cultura e etnia. A camisa foi um presente de sua avó. O primeiro dia de aula de Phyllis marcou o nascimento de seu primeiro trauma: a menina viu sua camisa sendo tirada e rasgada imediatamente pelas freiras. O «dia da camisa laranja» representa em todo país uma forma de reflexão e solidariedade diante das vidas que foram ceifadas e das crianças indígenas sobreviventes deste massacre.

O «dia da camisa laranja» representa em todo país uma forma de reflexão e solidariedade diante das vidas que foram ceifadas e das crianças indígenas sobreviventes deste massacre.

As escolas residenciais, ou escolas prisões, funcionaram no Canadá nos anos 1800 e 1900, sendo a última escola fechada apenas em 1996 (ver o texto no Esquerda Online “O horror se esconde no porão da escola”)3. As experiências de “feridas que não cicatrizam” começavam quando crianças eram tiradas de suas aldeias. Cada chegada das crianças, por meio dos “pau-de-arara(s)” amontoadas, com fome e frio, representava a assombrosa recepção: “aqui você não será mais um índio !!!!”. As tranças nos cabelos das crianças são traduzidas, até hoje, como espiritualidade, mas naquela época, elas eram de imediato desfeitas e cortadas pelos «carrascos da doutrinacão».

A “educação” destinada às crianças era uma mistura de injeção de esquecimento cultural com memorização forçada de códigos dos costumes brancos. A alimentação era precária e exígua. O trabalho era compulsivo com longas horas de ocupação e poucos momentos de algum aprendizado. A disciplina era dura e os castigos terríveis para aqueles que desrespeitassem as regras do «jogo» daquele sistema. Os abusos sexuais eram constantes e a maldade reinava nos rituais dos «missionários».

O frio e a neve comumente alusivos ao país da folha do xarope de bordo (maple syrup ou sirop d’érable), esconde uma história nefasta preenchida de um elixir amargo. Tornou-se impossível, hoje em dia, ocultar essa história diante dos vários acontecimentos que envolvem o legado das escolas residenciais. Depois de várias dezenas de ossos achados recentemente em porões de ex-escolas residenciais, outros fatos sórdidos foram revelados, além é claro, do aumento exponencial de violência, racismo e discriminação contra os povos originários do Canadá. Apenas para citar um exemplo recente: uma jovem indígena chamada Joyce Echaquan, de 37 anos, ao sentir fortes dores de estômago teve que ser hospitalizada em uma cidade da região de Québec. Ao invés de ser atendida com dignidade, como se esperava, a equipe do hospital começou a xingar a moça com palavrões, dizendo que ela era boa apenas para sexo, e que estaria melhor morta. Antes de morrer, Echaquan conseguiu deixar seu celular gravando4 seus últimos minutos de vida e sofrimento, mostrando a todo o país, apenas uma amostra do tratamento aos povos indígenas, donos da terra.

O último dia 30 de Setembro é feriado na maior parte do país, exceto em Québec, por causa do primeiro-ministro François Legault, do Coalition Avenir Québec, partido nacionalista, autonomista e conservador, que acredita que a cidade precisa de menos feriados e mais produtividade. Por outro lado, em declaração5, o primeiro-ministro do Canadá, o liberal Justin Trudeau, vencedor recentemente das eleicões, novamente com minoria, disse que o dia da camisa laranja representa um convite para refletir sobre o primeiro dia nacional da «Verdade e Reconciliação» e pensar sobre os impactos dolorosos e duradouros das escolas residenciais.

Todavia, em toda a sua exposição, a lacuna das necessidades dos povos tradicionais parece ter ainda um grande hiato. Primeiro porque a metodologia adotada pelo governo para negociar com os povos tradicionais caracteriza-se em abordagem baseada em “distinções», isto é, o governo decidiu envolver apenas três grupos nos processos de negociações sobre reconhecimento e reivindicações: a Assembleia das Primeiras Nações, o Conselho Nacional Metis e o Inuit Tapiriit Kanatami. Nenhuma destas organizações refletem ou têm representatividade junto aos indígenas fora das reservas. Mais de 70% dos povos indígenas vivem fora das reservas, e mesmo aqueles que vivem nas aldeias carecem de água potável, sobretudo aqueles do norte do país.

A situação dos indígenas nos centros urbanos revela igualmente, um triste retrato: várias pessoas indígenas embriagadas, drogadas e pedindo dinheiro. A ajuda do governo aos descendentes e afetados pelas escolas residenciais é insuficiente. Os indígenas são os que mais sofrem com estigmas e despossessão cultural. A «Reconciliação», termo circunscrito a um entendimento branco de harmonia ou consenso, não pode coexistir na presença acelerada de violência, racismo e desigualdade social. As reivindicações dos indígenas no Canadá parecem abranger um todo, que incorpora desde necessidades básicas de água potável e comida saudável, até decerto, o mais significativo, do ponto de vista simbólico, mas absolutamente real: a dignidade.

 NOTAS

1  https://www.reuters.com/world/americas/canada-marks-first-national-holiday-indigenous-reconciliation-2021-09-30/

2  https://montrealgazette.com/news/local-news/montreal-march-will-mark-national-day-for-truth-and-reconciliation

3  https://esquerdaonline.com.br/2021/06/11/o-horror-se-esconde-no-porao-da-escola/

4  https://www.youtube.com/watch?v=-7Fh96rZr6U

5  https://pm.gc.ca/en/news/statements/2021/09/30/statement-prime-minister-national-day-truth-and-reconciliation