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OPRESSÕES

Pela Vida das Mulheres: o dia 28 de setembro e a luta feminista brasileira e latino-americana pela legalização do aborto

Luciana Boiteux* e a Camila Jacome**
Fernando Frazão/Agência Brasil

Rio de Janeiro – Mulheres defendem legalização do aborto e protestam contra CPI na escadaria da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

No Brasil, Ingriane, mulher negra, mãe solo de três filhos e trabalhadora doméstica, moradora da cidade de Petrópolis (RJ), engravidou de um namorado em uma relação casual e foi mais uma na triste estatística brasileira de mulheres pobres e negras que morrem após um procedimento clandestino. O caso dela chegou a ser mencionado por Debora Diniz em agosto de 2018 na Audiência Pública na ADFP 442, pela prática abortiva ter sido realizada com um “talo de mamona”. Ela é mais uma história de vida interrompida por culpa do Estado brasileiro, que criminaliza a prática de aborto e impede que mulheres tenham acesso a interrupções seguras da gravidez.

Movidas pelo desespero, pela angústia e por medo, mulheres se colocam diariamente em risco em procedimentos clandestinos, diante da proibição do aborto pelo Código Penal Brasileiro, de 1940, em seus artigos 124 e 126, em especial as mulheres negras e pobres em situação de maior vulnerabilidade, uma vez que mulheres brancas e de classe média ou alta conseguem pagar para acessar clínicas privadas nas quais realizarão abortos ilegais, mas seguros e em condições sanitárias adequadas.

Desde 1990, o dia 28 de Setembro foi instituído como o dia de luta pela descriminalização e legalização do aborto na América Latina e Caribe com o objetivo de unir forças e conscientizar os países da reunião a enfrentarem o problema da clandestinidade do aborto e das elevadas taxas de mortalidade materna. Importante dizer que na nossa região até 2012, apenas Cuba, que legalizou em 1965, Guiana Francesa (1975), Guiana (1995) e Porto Rico, território dependente dos EUA, tinham legalizado o aborto. No Brasil e na maioria dos países da região, temos poucas hipóteses de exclusão do crime (risco de vida da mulher, estupro e feto anencéfalo, mais recentemente incluído pelo STF).

Nos últimos anos, a onda feminista tem levado diversos países da América Latina a descriminalizarem o aborto, como o Uruguai, primeiro país sul-americano a legalizar o procedimento em 17/10/2012, com a Lei 18.987, que permite a realização do aborto até a 14ª semana de gestação, e a Argentina que, em 30/12/2020, aprovou a lei que foi fruto de um longo processo de mobilização de forças jurídicas, políticas e sociais. Foi em 2005 que a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito levou milhares à ruas criando não apenas um slogan “Educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer”, mas uma onda verde como marco visual da intensa luta desenvolvida ao longo dos últimos anos que manteve o debate dos direitos reprodutivos das mulheres argentinas no centro da política. Após a derrota inicial em 2018, a eleição do presidente de esquerda Alberto Fernández foi importante também para a luta das argentinas pela legalização.

Enquanto no Brasil o avanço no parlamento é quase impossível, pela conjuntura conservadora, e ainda aguardamos o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, proposta pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal para declarar a não recepção constitucional dos artigos 124 e 126 do Código Penal, o México, muito recentemente, em 07.09.21, seguindo a onda verde, aprovou a inconstitucionalidade da criminalização do aborto na Suprema Corte, a nível federal, e já tinha quatro estados nos quais a interrupção já não era mais crime (DF, Oaxaca, Hidalgo e Veracruz).

Enquanto escrevíamos esse texto chegou a notícia de que a Câmara dos Deputados do Chile aprovou a descriminalização. Viva!

A legalização do aborto é uma histórica pauta feminista que, a partir dos anos 1970, levou a maioria dos países mais desenvolvidos a reconhecerem o direito das mulheres a interromperem a gravidez com limites temporais, porém, em especial o Sul Global ainda mantém tal prática na ilegalidade e tem como consequência o aumento da mortalidade materna, que decorre, como já falamos, da insegurança sanitária de procedimentos clandestinos.

Nesse dia 28/09, nos somamos às feministas do mundo inteiro (em outros países se comemora o “Dia do Aborto Seguro”) para trazer o debate para a sociedade e compreender a proibição do aborto como a atuação do controle social formal-penal sobre as mulheres e também mostrar quem são as vítimas de mais essa violência de Estado.

Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, apenas no ano de 2015 aproximadamente 503 mil mulheres realizaram abortos clandestinos no Brasil, o que mostra que a proibição não impede sua prática. E por isso resta a pergunta: Quem são as mulheres mais afetadas pela criminalização do aborto?

Na verdade, estamos diante de uma questão de saúde pública e de direitos humanos. É no contexto do reconhecimento da autonomia da mulher que se apresenta o direito ao aborto voluntário como um direito individual frente ao controle Estatal do patriarcado, mas também como um direito coletivo à saúde. No discurso conservador, aborto é um crime contra “a vida” do feto ou embrião (de forma equivocada), mas, para nós, feministas, é a vida das mulheres que está em jogo, tanto das mulheres adultas como das milhares de crianças vítimas de estupro de vulneráveis que não têm acesso ao aborto legal previsto em lei. O que postulamos é o pleno acesso das mulheres à cidadania, uma vez que nossos direitos são fundamentalmente atingidos pela restrição ao método de interrupção voluntária da gravidez, consistindo em uma grave violação à integridade física e psíquica da mulher. Educação sexual para decidir, anticoncepcional para não engravidar e aborto legal e seguro para não morrer.

Precisamos entender que o aborto é um procedimento de baixa complexidade técnica que, se realizado nas primeiras semanas de gestação, pode ser realizado por meio de medicamentos seguros. No entanto, a criminalização impõe entraves que trazem um custo emocional e financeiro. Segundo o relatório “Entre a morte e a prisão” publicado pela Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, o custo do procedimento realizado em clínicas particulares varia entre R$ 600,00 e R$ 4.500,00, ou seja, abortar com o mínimo de segurança custa caro. E em um país onde o salário mínimo nacional é de R$ 1.100, a proibição arrasta mulheres pobres (e negras) para procedimentos de alto perigo, como o caso de Ingriane, cujo resultado foram dias de sofrimento, uma certidão de óbito e três crianças órfãs. O que queremos é Justiça Reprodutiva, conceito que envolve direitos sexuais e reprodutivos vinculados à Justiça social, que une o direito de escolher não ser mãe ao direito de exercer plenamente a maternidade.

A legalização da interrupção voluntária da gravidez é uma demanda que visa a proteção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, através da observância do preceito fundamental da dignidade da pessoa, da cidadania das mulheres, do direito à vida, à saúde das mulheres e ao planejamento familiar.

Entretanto, em que pese que no Brasil tenhamos algumas hipóteses de aborto legal, movimentos conservadores atuarem para dificultar ainda mais o acesso das mulheres aos serviços, que já se encontravam em momento tão delicado na pandemia. E nesse sentido os exemplos infelizmente não são poucos, como o caso da menina de apenas 10 anos (sim, uma criança!) que após ser estuprada pelo tio teve que lidar com a dificuldade no acesso ao aborto legal, com a sua identidade divulgada em meio eletrônico e com manifestações na porta do hospital. E não parou por aí, em seguida vimos a propositura do PL 5435/2020 conhecido como “Estatuto da Gestante” com objeto não apenas na proteção da vida desde a concepção, mas revogando todos os permissivos legais atualmente vigentes. A recente alteração das normas técnicas para o aborto legal foi outro grande retrocesso na pandemia, com a edição da Portaria 2282, depois alterada para a de número 2561.

Chegamos ao 28 de setembro de 2021, em meio ao governo Bolsonaro e tendo Damares como ministra da Mulher, mas seguiremos nas ruas gritando “Ele Não” e “Legaliza, o corpo é nosso”, em um contexto de retrocessos que tanto tem atingido a democracia brasileira. Queremos ser escutadas e termos nossos direitos plenamente garantidos, para que nos escutem sobre o direito de decidir sobre os nossos corpos, que tem sido historicamente negados por uma cultura de opressão, machismo, misoginia e submissão. Seguimos na expectativa que a onda verde chegue também ao Brasil em breve. É pela vida das mulheres, para que mais nenhuma mulher negra e pobre morra por abortos inseguros. Por Ingriane e por todas nós.

 

* Advogada e professora da UFRJ. Primeira suplente de deputada federal pelo PSOL, colunista do Esquerda Online.
** Advogada e mestranda no PPGD/UFRJ.