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BRASIL

Carta para Paulo Freire

José Luciano de Queiroz Aires*, Campina Grande, PB
Reprodução

Paulo Freire em Angicos (RN)

Prezado Paulo,

Espero que esteja tudo bem aí no céu. Aqui na terra as coisas caminham de mal a pior. Quando você saiu daqui (1997), vivíamos sob a égide avassaladora da política neoliberal conduzida por Fernando Henrique Cardoso com consequências desastrosas para a maioria do nosso povo trabalhador. De todo modo, o controle inflacionário trazido no bojo do Plano Real e a compra de parte do nosso congresso nacional rendeu-lhe um mandato a mais. Depois de dois mandatos, o tucano teve que passar a faixa ao operário, em 2003, em um tempo de ventos favoráveis soprados da China sobre a economia brasileira o que, em grande medida, possibilitou ao ex-líder sindical do ABC emplacar seu projeto de conciliação de classes moldado por contrarreformas e/ou por um “reformismo quase sem reforma”. Paulo, sabemos muito das suas ligações com o Partido dos Trabalhadores, fostes até secretário de educação da então prefeita petista Luísa Erundina na capital paulista. Fico pensando aqui se o autor de Pedagogia do Oprimido aprovaria e participaria ativamente dos governos lulistas e, sobretudo, do transformismo pelo qual vem passando o partido da estrela vermelha cujo giro ideológico no processo da luta de classes se movimenta na direção de um caminho de uma esquerda para administrar os interesses do capital e amortecer o freio da luta.

Ah! Deixa te contar. Depois do primeiro operário também tivemos a primeira mulher a subir a rampa do palácio e sentar na cadeira presidencial. Uma festa só! Afinal, além de mulher ela também fora uma revolucionária durante a Ditadura Militar, regime nefasto do qual tanto você quanto ela foram vítimas e pagaram um preço alto por darem voltas pelas esquinas esquerdas da História. Apesar de militarem em campos políticos um pouco diferente você certamente deve se lembrar dela. Mas devo dizer também que foi em seu governo que os ventos internacionais se transformaram em tempestade avassaladora sobre a nossa economia convertendo a marolinha em um tsunami. Conjugando crise internacional do capitalismo com crise política expressa nas Jornadas de Junho de 2013, no ciclo de greves e ocupações e no rompimento da conciliação de classe, restou à primeira presidenta um golpe autocrático-burguês para rifar dos planos do grande capital o governo a que tanto serviu desde a Carta do povo Brasileiro. O Golpe de 2016 abriu o caminho para o mar de lamas em que vivemos hoje. Depois de passar pelo governo Temer com seu cumprimento à risca da agenda neoliberal incluindo as contrarreformas que retiram direitos dos trabalhadores, chegamos ao fundo do poço mediante uma eleição fake em 2018 na qual a maioria do povo brasileiro elegeu um fascista para governar o país. Aliás, deixa eu te informar das novidades fresquinhas da cena política atual. A crise institucional está a pleno vapor e as ameaças de golpe por parte do chefe do executivo são feitas à luz do dia e diante da cena política. No último 7 de setembro o caldo esquentou bastante, pois a horda neofascista apoiada pelos tubarões da soja, por neopentecostais e outras forças ultraconservadoras, gritava a plenos pulmões para que o seu “mito” apertasse o botão de comando e abrisse o caminho para o gado invadir o congresso e o Supremo Tribunal Federal. 

O desemprego hoje passa de 15 milhões de pessoas, isso sem contar o trabalho precarizado e a informalidade gritante que aparece em algumas estatísticas oficiais revestida com a pele do mito do “empreendedorismo”. A inflação começa a ganhar às alturas com o custo de vida aumentando a cada dia. Botijão de gás, feijão, gasolina, são algumas das mercadorias que reduz o poder de compra da classe trabalhadora que mal sabe como se virar com um salário mínimo praticamente congelado e um auxílio emergencial vergonhoso e provisório. O Brasil voltou ao mapa da fome, nossos indígenas se encontram em Brasília protestando contra o marco legal, as universidades públicas e os institutos federais sofrem com cortes orçamentários e intervenção federal. O feminicídio, o racismo e a lgbtfobia aumentam a cada dia, contando, inclusive, com o posicionamento ostensivamente favorável a manutenção das opressões por parte do governo do capitão cloroquina. A necropolítica já fez mais de 580 mil mortes pela covid-19, isso para uma doença que já tem vacina, mas cujo governo negacionista preferiu colocar a economia capitalista a cima da vida e se negou a assinar contratos de compra de vacinas ofertadas ainda no ano 2020. Aliás, Paulo, uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado Federal está apurando as possíveis irregularidades e negligências do governo na gestão da pandemia. Como você pode perceber aqui embaixo a dimensão da crise política é ainda mais embaixo e está longe de ser resolvida no âmbito meramente eleitoral e institucional.

Meu querido Paulo gostaria que você comunicasse aí a Jesus que aqui em terras brasileiras tem uma grande quantidade de pastores usando seu nome para se beneficiar, político e economicamente. Não se trata de uma igreja engajada socialmente com os subalternos, como foi a Teologia da Libertação que você tanto acompanhou de perto, mas uma Teologia da Prosperidade onde igrejas se transformam em empresas, pastores em grandes empresários e fiéis em verdadeiros alienados. Enquanto isso, o dízimo extraído dessa multidão se converte em capital a engordar as contas bancárias dos falsos profetas que usam a Bíblia como arma de condenação dos diferentes e instrumento de dominação política. Aliás, eles falam muito por aqui que Jesus está voltando para sentar-se à mesa do tribunal do Juízo Final e fazer seu julgamento salvacionista ou condenatório. Os fundamentalistas praticamente já anteciparam o resultado do julgamento, esperam o messias encaminhá-los diretamente na direção do caminho do céu. Eu acho que Jesus não vai aprovar atitudes e comportamentos que estimulam o ódio contra os diferentes, nem tampouco permitir que se atirem pedras contra aqueles que não tiverem pecados, afinal de contas, um dos seus mandamentos é “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Conviver com as diferenças sem abrir mão da emancipação no que tange a pautas das opressões e sua coloração específica, costurando alianças em torno de um projeto libertador para o conjunto da classe trabalhadora é um desafio político que pode ser feito, dialeticamente, à luz dos ensinamentos de Marx e de Cristo. Essa humanização da qual você tanto aborda em Pedagogia do Oprimido é a linha de combate que devemos nos movimentar, contra o slogam oficial de “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, expressão que nos faz lembrar as palavras evocadas pelos galinhas verdes do Integralismo Brasileiro. Por favor, se tiver um tempinho e chegar perto de Jesus por aí, pede para ele antecipar sua volta à terra e de preferência começar suas missão aqui pelo Brasil tentando nos salvar daqueles que se dizem seus representantes. Se for o caso, veja se aumentam o purgatório ou até mesmo encaminhem solicitação ao diabo para alargar as dimensões do inferno porque se muitos fundamentalistas como Silas Malafaia, Edir Macedo, Damares Alves e companhia vão mesmo para o céu eu acho que a companheirada da esquerda vai preferir os outros dois espaços para a morada eterna. Eu se fosse Deus ou Jesus preferia salvar os “esquerdopatas”, só assim iríamos fazer do céu um lugar para grandes assembleias e debates à luz dos evangelhos e de O Capital e tentar implantar uma outra sociedade na terra, muito mais justa e igualitária do que o capitalismo contemporâneo. 

Vou te contar um segredo. Olha só, os bolsonaristas te odeiam e querem, inclusive, cassar seu título como o Patrono da Educação Brasileira, concedido em 2012 durante o governo Dilma Rousseff. Eles acham que você e Gramsci são os maiores responsáveis pela “revolução cultural” que vem acontecendo no Brasil e atribuem a dois gigantes intelectuais como vocês o mero papel de “doutrinadores comunistas” responsáveis pela “destruição” da família, da moral e dos bons costumes. Até inventaram um projeto de educação intitulado de “Escola Sem Partido”, projeto que em verdade defende os interesses do grande capital, do fundamentalismo cristão e de uma moral ancorada nos preceitos da família patriarcal e heterossexual como único modelo “normal”. Tenho certeza que se você estivesse aqui conosco estaria ombreado no movimento que encabeçamos no combate a essa escola da mordaça. Enquanto não podemos contar mais com sua presença política de carne e osso, temos nas suas obras as armas políticas necessárias para combater o neofascismo e neoliberalismo excludente e autoritário. Esses bolsominions nunca leram sequer a orelha de um livro seu, arrotam teoria da conspiração e repetem uma linguagem caricata de seu verdadeiro guru, Olavo de Carvalho e companhia. Mas nem se preocupa porque no último domingo, dia 19 de setembro de 2021, sua festinha de 100 anos foi muito comemorada aqui entre os terráqueos, inclusive com uma homenagem feita pela TV Cultura que exibiu um documentário sobre você e para desespero dos fascistas atuais a juíza Geraldine Vital, atendendo pedido do MNDH (Movimento Nacional de Direitos Humanos), concedeu limitar proibindo o governo Jair Bolsonaro de atacar sua dignidade e desqualificar sua honra e seu legado. Parabéns! Feliz aniversário mestre!

Paulo querido, para encerrar essa missiva, gostaria de te dizer que estou coordenando o Programa de Educação Tutorial do curso de História da UFCG. A galera leu e debatemos em várias tardes de leituras seus livros Pedagogia do Oprimido e Extensão ou Comunicação? À luz do seu método revolucionário temos procurado aproximar a universidade dos excluídos, sobretudo camponeses de assentamentos e comunidades quilombolas, além da juventude das escolas públicas dos bairros periféricos de Campina Grande e do Cursinho Popular Podemos +, este, organizado pelo Levante Popular da Juventude. Junto contigo estão outros grandes companheiros e companheiras cuja teoria e política nos inspiram a realização da filosofia da práxis. 

Procuramos trabalhar na linha da e pela comunicação em torno de um uma realidade concreta de exploração e opressão, combatendo a educação bancária e tecnicista, buscando incessantemente a libertação autêntica, a consciência revolucionária e a relação dialógica entre educadores e educandos. Procuramos partir de temas geradores com significativa importância para os sujeitos das comunidades nas quais trabalhamos com extensão universitária. Temas que saem do povo excluído durante a pesquisa que realizamos juntamente com alguns deles, que se transformam em livros didáticos que retornam às eles na condição de conhecimento histórico produzido criticamente que alimente a constituição de suas identidades, as lutas por um presente que se cole numa futuridade revolucionária, conforme seus ensinamentos no clássico Pedagogia do Oprimido. Gostei muito quando você cita Lênin e afirma que “sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário, não há revolução com verbalismos nem tampouco ativismo, mas com práxis, reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas”. Lembrei muito dos Cadernos do Cárcere, nos quais Antônio Gramsci nos chamava tanto a atenção sobre a relação entre teoria e ação para os dilemas do início do século XX. Também gostei muito quando você chama muito a atenção da relação entre a vanguarda política e as massas populares, sobretudo porque como podemos ler de seu próprio punho a relação não pode jamais ser realizada por uma exterioridade vanguardista, até porque é um diálogo no qual vanguarda e grupos populares debatem e aprendem juntos, mas também, como você mesmo afirma “não implica que devem ficar os objetivos da ação revolucionária amarrados às aspirações contidas na visão de mundo do povo”. Mais uma vez não tive como não lembrar o debate que Gramsci faz sobre as classes e grupos subalternos e a possibilidade política de um salto qualitativamente revolucionário tomando o senso comum como ponto de partida para a construção de um novo homem e de uma nova consciência de mundo expressa no bom senso. Voltando ao seu livro, gostaria de citar outra passagem que gostei muito a propósito desse tema: “ao ser assim, em nome do respeito que realmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquela visão”, e a educação como prática de liberdade é justamente o contrário, é a busca dialógica pela transformação das condições de opressões do presente, ou como você mesmo diz: “nem invasão da liderança na visão popular de mundo, nem adaptação da liderança às aspirações, muitas vezes ingênuas do povo”.  

E ai, você tem escrito e publicado alguma coisa por aí? Dia 2 de outubro vamos novamente às ruas pelo Fora Bolsonaro, pelo combate ao neofascismo e o projeto que ele representa. Mande inspiração teórica e política para nós e muitas vibrações humanistas e socialistas para despertar do sono parte significativa dos conformistas, institucionalistas e coniventes disfarçados de neutralidade ou indiferença. Não precisa mandar nenhum escrito novo, até porque o legado que você deixou aqui na terra já é suficiente para inspirar verdadeiros lutadoras e lutadores como você. 

Mais uma fez, parabéns, feliz aniversário e vida eterna.

Campina Grande, 23 de setembro de 2021.

 

*José Luciano de Queiroz Aires é Historiador/UFCG e militante da Resistência/PSOL-PB