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CULTURA

Batman, o Cavaleiro das Trevas: A fábula é sobre nós

Sóstenes B R Silva, de Feira de Santana, BA
“Nós tentamos ser homens decentes, num tempo indecente (…)
Agora só resta uma forma de justiça, o acaso, cego, justo, imparcial”
Harvey Dent ( Duas Caras) em Batman o Cavaleiro das Trevas (Cristopher Nolan)

O Filme Batman o Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight. no Brasil, Batman: O Cavaleiro das Trevas, 2008) é, que me perdoem os adornianos (seguidores da crítica da “indústria cultural” de Thedor Adorno) umas das maiores peças cinematográficas de todos os tempos, inspirado em “A Piada Mortal”, famosa HQ de Allan Moore, cartunista de esquerda (mas rodado por um diretor reacionário, lembremos). O argumento do quadrinho e do filme é a tentativa do Coringa de demonstrar que “estas pessoas de bem, civilizadas” irão “acabar devorando umas as outras”.

O maior critério para a análise de uma obra de arte, segundo Gyorgy Lukacs, é a sua capacidade de representar pelas leis próprias da arte a vida cotidiana, as sua tendências centrais – a verdadeira arte refigura artisticamente os grandes dilemas da humanidade no mundo.

Esta representação artística da totalidade humana no mundo do ponto de vista da particularidade, ou seja, das pessoas concretas que são sínteses reais da singularidade de cada pessoa e das tendências da universalidade, da generidade humana, que determinam os rumos da vida e dentro do qual as pessoas são chamadas a fazer escolhas.

“O mesmo na vida que no seu reflexo literário, o que caracteriza o homem é a determinação que ele toma quando uma questão decisiva põe em jogo sua existência; entre todas suas possibilidades concretas, essa é a única que expressa realmente sua essência” (Lukacs, apud Vedda e Vaisman, 2019)

Esta definição lapidar de Lukacs nos permite traçar o fio vermelho que conduz a trama do filme Batman o Cavaleiro das Trevas, de Cristopher Nolan. O enredo se passa na sequência do filme Batman Begins, que narra o início da trajetória de Bruce Wayne, o verdadeiro nome por trás da máscara do Morcego.

No filme, quatro personagens se destacam: Batman, Coringa, Harvey Dent e Rachel. A condensação dos conflitos sociais e éticos dilacera estes personagens, e, como referido acima, é diante das escolhas por vezes atrozes que os seres humanos são chamados a fazer na vida, que se definem os seus destinos como parte do torvelinho de contradições que é a história.

Gotham, uma parábola de Nova York, representa uma sociedade em decadência histórica, vazada nos termos conservadores, lógico, onde as pessoas vagam desesperadas em busca de uma solução para os problemas sociais, políticos e econômicos que destroem a possibilidade de uma vida digna.

Na trama, a luta suposta entre o Bem e o Mal se dá entre Harvey, Batman, Gordon e Rachel contra o Coringa e a Máfia da cidade.

Cena do filme. O Coringa, na janela de um carro em movimento.

O Coringa, em espetacular interpretação de Heath Leadger, é o centro que condensa todos os conflitos da trama. Poder-se-ia, por antipatia a ordem vigente, pensar que o Coringa seria apenas uma representação antipática de um revolucionário ou coisa que o valha. Ao contrário a interpretação mais lúcida do Coringa nos é fornecida por Alfred, o fiel escudeiro do Batman, que diz: “algumas pessoas não querem nada lógico, elas só querem ver o circo pegar fogo”.

O Coringa é o retrato da decomposição humana provocada por uma sociedade em aguda crise social, isto se expressa na brutal inumanidade do personagem, ele é na sua própria definição “como um cão correndo atrás de um carro, não saberia o que fazer se pegasse um deles”.

O plano do Coringa é “criar uma nova raça de criminosos”, a seu modo de ver os criminosos de Gotham seriam “venais” o que fica expresso numa das mais belas cenas do filme em que ele queima milhões de dólares, demonstrando ainda de forma indireta o caráter irracional de uma sociedade que venera o fetiche dinheiro, alegandoque “as coisas de que ele gosta são baratas”.

Harvey Dent representa exemplarmente as contradições da justiça burguesa e do discurso Lei e Ordem típico da direita em todo o mundo, especialmente nos EUA a partir dos anos da “ Revolução Conservadora” de Reagan, ele é um promotor que não titubeia em cometer violações democráticas, tudo em nome do combate a “criminalidade”, incapaz de atingir a origem social dos problemas que produzem os Coringas e as Máfias, Harvey Dent enxuga gelo prendendo bandidos menores, obviamente indivíduos lumpenizados das classes populares, demonstrando o caráter de classe da Justiça burguesa.

Rachel é uma personagem forte da trama, auxiliar de promotoria de Dent, ela possui um relação com o mesmo apesar de seu passado com Batman. Ela se destaca na tentativa de “limpar as ruas” pelos métodos do direito burguês, convivendo o tempo todo com os limites da trama, acreditamos que sua personagem poderia ter sido mais desenvolvida na trama do que de fato o foi.

Batman é a outra face da decomposição social que o Coringa personifica. No filme sua truculência é atenuada em relação ao da HQ, na verdade Batman é um fascista, apresenta-se como o garantidor da “lei e da ordem” que os meios legais e burocráticos não conseguiriam efetuar, seus métodos terroristas não podem ser obscurecidos pelo fato de que no filme ele respeita o interdito de “não matar” que, curiosamente, é a única regra que o afasta dos métodos brutais do Coringa.

Batman sabe que não é um herói, representando as ilusões burguesas ele procura transformar Dent neste herói, oferece uma festa para a burguesia de Gotham a “dita sociedade de bem” e repete o slogan vazio “Eu acredito em Harvey Dent”, ou seja, apesar de sua truculência fascista Batman procura se reconciliar com a mesma ordem que reproduz a miséria e a fome do povo que julga proteger.

O clímax da trama é a morte de Rachel orquestrada pelo Coringa e que leva o brilhante promotor de Gotham a enlouquecer e se tornar o lendário personagem “Duas Caras”, que representa a completa irracionalidade e a renúncia completa ao ideal de justiça que caracterizaria o sistema vigente.

Disposto a se vingar da morte de Rachel contra todos aqueles, dos dois lados, que julga como inimigos, Duas Caras é incitado por Coringa como parte de seu plano de demonstrar que a sociedade ao fim e ao cabo nada é mais do que uma forma de “canibalismo moderno”, onde a depender da situação “estas pessoas civilizadas, devorariam umas as outras”, pois segundo o Coringa seus métodos inumanos apenas “estariam na vanguarda”.

Para Dent, a única forma de justiça restante no caos a que o mundo passa a se reduzir depois que sua fé nos valores da ordem são abalados, é o “acaso”, “cego, justo e imparcial”. Pois afinal eles haviam “tentado ser homens decentes, num tempo indecente”.

Todos os personagens confluem para dentro de uma conflito trágico, aquele no qual não há verdadeiras saídas, Batman, Coringa e Duas Caras revelam formas diferentes de uma modo de vida que nas palavras de Marx reduz os indivíduos a “uma solidão brutal” pela desagregação dos laços sociais, pela absoluta reificação da vida.

A justiça torna-se apenas um ícone oco em torno do qual se constroem fetiches, em que juízes e promotores realizam discursos de falsa esperança (como na cena que Harvey promete aos ouvintes que “a noite é mais escura pouco antes do amanhecer, e eu garanto, que já vai amanhecer”. Duas Caras introduz o acaso como justiça mas seu método o conduz a ser mais brutal que o próprio Coringa, ameaçando trucidar uma criança inocente pelos supostos crimes de seu pai, o policial James Gordon.

Na cena final do filme, Duas Caras morre e Batman em nome de um ideal falido de justiça assume seus crimes, para criar uma lenda, um mito de justiça em torno da figura do “Cavaleiro Branco de Gotham”, demonstrando a completa irracionalidade das soluções propostas. Batman eleva a mentira a um grande ideal de fé, a ser aplicado as massas populares , ele diz: “Por que às vezes a verdade não basta, às vezes as pessoas merecem mais, elas merecem ter a sua fé recompensada”

A inumanidade do Coringa, a brutalidade de Batman e a loucura do Harvey Dent/Duas Caras são as únicas opções que são apresentadas à sociedade, no fundo e ofuscados as contradições sociais produzidas por uma sociedade que reduz os seres humanos a “cativos de um regime de categorias abstratas” (Lukacs) onde a violência é apenas um sintoma do fato de que o mundo das “coisas” submete os seus criadores, os seres humanos submetidos a lógica do capital, a uma espécie de objetividade espectral, onde os destinos humanos são operados e funcionam como joguetes da irracionalidade do sistema de produção e modo de vida.

Apenas por um ato de fé, nos revela Batman, é que as pessoas poderiam suportar o horror desta vida reificada e todo um regime de violência institucionalizada será erguido sobre o mito de Harvey Dent, com prisões arbitrarias e vulneração das liberdades democráticas, tudo isto em nome de um ideal de segurança que impede as pessoas de entenderem as verdadeiras causas de seu desespero no ambiente a que são reduzidos a “uma solidão brutal” pela decomposição dos laços de solidariedade social numa sociedade capitalista de tipo neoliberal.

Batman e Coringa se revelam, como bem diagnostica Coringa, duas faces da mesma moeda, em que de uma lado se oferece um terror sem fim e do outro um fim com terror e pede-se as pessoas que confiem cegamente num líder iluminado que viria resolver seus problemas.

Um filme, como sabem, não é apenas um filme, ele fala sobre nós, por que como sempre a boa arte representa os dilemas reais dos seres humanos, mesmo quando o argumento do seu criador é um argumento reacionário. Em Batman o Cavaleiro das Trevas, podemos ver mais do que Nolan ou mesmo do que Moore havia posto em A Piada Mortal, podemos ver nossos próprios dilemas.

A tentativa do Coringa fracassa, mas ele é capaz de levar consigo a esperança de uma vida segura representada pelas ilusões do direito burguês de Dent e Rachel. O Batman não como herói, mas como “outra coisa” (um justiceiro) seria a real alternativa de nossa sociedade?

Terror sem fim ou fim com Terror?

 

Referências bibliográficas
Vedda, Miguel e Vaisman, Ester. Orgs. Filosofia, Arte e Sociedade. São Paulo, Intermeios, 2019.