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BRASIL

Cem anos de Paulo Freire: conscientização e o ato de ler

Francisco Alberto*, de Maceió, AL

“O principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto, a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma de objeto, ou de contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática, não subjetivamente” (Teses Ad Feuerbach, K. Marx)

O centenário de Paulo Freire, domingo, dia 19, nos impulsiona a resgatar o legado da sua postura enquanto educador e a sua importância para todos os trabalhadores da educação e pesquisadores do tema. Importante categoria de seu pensamento é a da conscientização e a sua expressão prática no ato de ler. 

A proposta libertadora de Paulo Freire é fundada na conscientização dos sujeitos, fazendo-os compreender enquanto seres ativos, críticos e reflexivos, e pressupõe uma relação dialógica educador-educando. Essa relação dialógica envolve reconhecer a relação objetividade e subjetividade, sem tratar ambos como separados. Segundo Freire (2020, p.51): 

A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas [1], nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade. 

A pedagogia freireana, como pedagogia de caráter libertador, visa superar a contradição opressores e oprimidos. A prática pedagógica libertadora conduziria a um processo de conscientização de caráter desalienador e emancipador dos oprimidos, emancipando assim, toda a humanidade. Superando o “medo da liberdade” de que fala o autor (FREIRE, p.31), e superando a imersão do oprimido na visão de mundo do opressor (p.44), a emancipação dos oprimidos se daria a partir da concepção de um sujeito ativo, crítico e reflexivo. Uma educação libertadora seria radicalmente oposta a educação bancária e também desprovida de paternalismo. A emancipação e conscientização estão presentes na relação educador-educando.

Paulo Freire e o ato de ler

Paulo Freire, em seu texto Considerações sobre o ato de ler, aborda o tema da leitura de uma forma peculiar ao problematizar elementos como a forma que se lê e a relação com o objeto de pesquisa. É importante destacar que o tempo todo Freire discute o ato de ler levando em conta o leitor como sujeito do processo de conhecimento do texto a ser lido. Mas o que se quer dizer com “leitor como sujeito”? Destacarei aqui alguns pontos essenciais da leitura, segundo o autor, que são interligados entre si. 

Freire entende o leitor como sujeito no processo de apreensão do texto lido. Ser sujeito não pressupõe necessariamente a quantidade de livros e páginas que se lê, mas a forma e o caminho a ser seguido na leitura. Por isso Freire afirma que “não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada” (FREIRE, 1981, p.4). O sujeito leitor não apenas se afirma como tal, mas possui uma outra característica: a humildade. O ato de reconhecer suas limitações e ao mesmo tempo a busca por um conhecimento seguro, a partir do contato com o texto lido. 

O ato de ler, em Paulo Freire, expressa a diferença que o autor estabelece entre compreensão do conteúdo e memorização (FREIRE; 1981). Nesse texto, assim como em toda a obra de Freire, há a conhecida crítica à educação bancária. A educação bancária vê o aluno como um depósito de conteúdos adquiridos pela memorização, que é típica do modelo de educação sob a ótica do capital, concepção essa que é radicalmente oposta à uma educação libertadora que tome o estudante/leitor como sujeito do processo de aprendizagem.  

O ato de ler requer reconhecer a relação sujeito-objeto presente em todo ato de conhecer na história e também que essa relação seja dialética; uma relação de transformação permanente de quem lê e a apropriação crítica do texto a ser lido. Por isso, o ato de ler não pode soar como uma exegese do texto em si. Pelo contrário, implica em ler o hoje a partir do contato do autor que se lê, por parte do pesquisador. Ou seja, não se trata de fazer ciência reproduzindo ipsis literis o que muitos autores já colocaram. A leitura dos autores clássicos ou contemporâneos em toda pesquisa, seja educacional ou não, é um guia teórico e metodológico que traz em si elementos que vão ser basilares em um projeto de pesquisa ou analise crítica do que se lê. É uma condição fundamental para a produção de conhecimento. 

Conclusão

São inúmeros os obstáculos para uma educação como práxis libertadora, na perspectiva de Freire, em um modelo societário regido pelo capital. Mais ainda em um país de periferia capitalista e formação sociohistórica fundada na glorificação das relações de opressão racista, escravista, patriarcal e burguesa, a exemplo do Brasil. O que não impede de resgatar o seu legado. Que não resgatemos Freire como mais uma “teoria” desconectada de sua práxis (Freire defende exatamente o oposto disso), ou um “modelo” impossível, apenas para ser lembrado de maneira protocolar, mas que seu legado permaneça como síntese entre teoria e prática educadora. 

Educação como práxis libertadora pressupõe ao próprio educador ser também educado, como afirma Marx em Ad Feuerbach, e posteriormente o próprio Freire em sua concepção de educação. E que todos os educadores, incluindo o autor deste breve texto, sejam também educados de maneira constante e coletiva, em permanente ação dialógica. 

*Cientista Social, professor e mestrando em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL). 

NOTA

[1] Doutrina filosófica que concebe a realidade de forma unilateral apenas levando sua própria consciência enquanto ser, negando totalmente a existência de uma certa objetividade. A única realidade possível, nessa visão seria o “eu” e as “sensações”. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREIRE, P. Considerações sobre o ato de ler. Publicado em Ação Cultural para a Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981. <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4648124/mod_resource/content/1/Paulo%20Freire%20-%20Ato%20de%20estudar%20%282%29.pdf

__________ Conscientização. São Paulo, Cortez, 2016.

__________Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 74.ed., Rio de Janeiro,  2020.

MARX, Karl. Teses Ad Feuerbach. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009.