O 11 de Setembro de 1973 foi marcado por um dos mais brutais episódios de terror pela intervenção dos Estados Unidos na América Latina. Sob a marca do bombardeio do Palácio de La Moneda em Santiago, foi realizado o golpe militar no Chile, com a morte do presidente Salvador Allende, o primeiro socialista eleito pelo voto popular no continente, e a derrubada de seu governo, que assumiu com compromissos como implantar a reforma agrária, melhorar as condições de trabalho e nacionalizar os bancos. A derrubada de seu governo e da experiência do socialismo chileno se deu através do comando do sanguinário Augusto Pinochet, com o apoio financeiro e militar dos EUA e colaboração da ditadura militar brasileira.
A ditadura instaurada foi laboratório de medidas econômicas do neoliberalismo dos “Chicago Boys” (com alunos como o ministro Paulo Guedes), com a privatização de serviços públicos, submissão ao imperialismo norte-americano e concentração de riqueza. Entre 1973 e 1990 milhares de chilenos e estrangeiros que viviam no país foram perseguidos, presos, torturados e exilados, inclusive nos primeiros dias posteriores ao golpe, onde foi realizado um verdadeiro “caça às bruxas” aos militantes de esquerda, membros do governo Allende e qualquer um que parecesse suspeito para os militares, como o caso do militante trotskista brasileiro desaparecido Túlio Quintiliano, fundador do grupo “Ponto de Partida”. Outros brasileiros assassinados pela ditadura chilena foram os militantes Jane Vanini, Luiz Almeida, Nelson Khol, Vânio José e Nilton Rosa da Silva.
Um dos casos mais emblemáticos entre os assassinados nos primeiros dias de horror foi o do cantor e compositor Victor Jara.
Victor Jara. Acervo Archivo Copesa
Filho de trabalhadores rurais, Victor Jara nasceu em 28 de setembro de 1932 na cidade de San Ignacio, interior chileno. Foi militante do Partido Comunista, membro do Comitê Central das Juventudes Comunistas e professor de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade do Chile. Inicia suas atuações no campo artístico com 21 anos, num coral universitário, até que em 1959 dirige sua primeira peça, “Parecido a la Felicidad”, e se torna um renomado diretor de teatro. Começou sua carreira musical no grupo Conjunto Folclórico Cuncumén e lançou seu primeiro álbum solo em 1966, com canções como “El arado”, “El cigarrito” e “Paloma quiero contarte”. Lançou ainda sete álbuns solos até 1973 e dirigiu diversas peças durante sua vida. Percorreu vários países da América Latina com suas apresentações, além de Europa e União Soviética. Dirige também a Homenagem a Pablo Neruda pela obtenção do Prêmio Nobel em 1971.
No Chile dos incendiários anos 1960 e começo dos 1970, Victor Jara foi uma das vozes de um movimento cultural chamado “Nueva Cancíon Chilena”, que resgatava a música folclórica latino-americana com raízes indígenas junto a novos elementos sonoros para cantar o cotidiano chileno, as questões da exploração do trabalho, da luta dos camponeses e indígenas, da solidariedade internacionalista e enfim, a voz dos trabalhadores, estudantes, povos originários e oprimidos de todo o país e continente. A Nueva Canción Chilena contou ainda com nomes como Violeta Parra, sua filha Isabel Parra, o cantor Rolando Alarcón e os grupos Quilapayú e Inti Illimani, entre muitos outros e outras artistas. A musicalidade construída fazia parte de uma movimentação intensa de organização e agitação que fortaleceu a esquerda chilena e culminou na construção da Unidade Popular, coalizão de esquerda que continha os principais partidos do campo de então, como o Partido Socialista e o Partido Comunista, e que vence as eleições de 1970 com Salvador Allende para presidente com amplo apoio popular entre os trabalhadores e camponeses, com o objetivo de realizar uma “via chilena ao socialismo”, apesar das ameaças imperialistas e atentados para impedir a posse, como o assassinato do general constitucionalista e aliado de Allende René Schneider, a mando dos EUA e da CIA.
Santiago, 1971
Um dia depois do golpe, em 12 de setembro de 1973, Jara se juntou a um grupo de estudantes e professores da Universidade Técnica do Estado (UTE) para demonstrar resistência. Foi preso e levado pelo Exército ao Estádio Chile, que fora transformado em um centro de tortura onde passaram milhares de opositores. Foi barbaramente torturado, e o ódio dos militares pelo cantor revolucionário era tanto que suas mãos foram esmagadas com coronhadas e sua língua arrancada para que “nunca mais cantasse ou tocasse violão”. Ainda entre as sessões de espancamento e corredores do Estádio, com auxílio de seus companheiros escreve um último poema denunciando a situação dos prisioneiros, com alguns trechos como “Que espanto causa o rosto do fascismo! […] Quantos somos em toda a pátria? O sangue do companheiro Presidente golpeia mais forte que bombas e metralhas. Assim golpeará nosso punho novamente”. Acabou sendo morto com 44 tiros em 16 de setembro e seu corpo jogado em becos da periferia de Santiago. Em 2003 o Estádio Chile passou a ser Estádio Victor Jara e somente em 2018 a Justiça chilena condenou os 9 militares que participaram de seu cruel assassinato. No Brasil, entidades da luta por Memória, Verdade e Justiça lançaram a campanha #ReinterpretaJáSTF em 2021, para que os assassinos e torturadores da ditadura militar brasileira sejam julgados.
Manifestantes na escadaria da Biblioteca Nacional em Santiago homenageando Victor Jara em 2019. Fotógrafo: Pedro Ugarte
Em 2019 e 2020, o mundo assistiu o povo chileno saindo às ruas, depois da explosão de manifestações secundaristas por transporte gratuito, para exigir uma nova Constituição onde fossem garantidos direitos humanos, serviços públicos universais e seguridade social, ao contrário da Constituição conservadora e neoliberal de 1980, herança da ditadura de Pinochet. Depois de uma brutal repressão policial, com mortos e milhares de feridos pelo governo de direita do presidente Sebastián Piñera, o povo conquistou na marra medidas sociais e as eleições de uma nova Constituinte, que elegeu em 2021 uma bancada de maioria progressista, com igualdade de gênero e que está sendo presidida pela indígena mapuche e acadêmica feminista Elisa Loncón. Um dos símbolos das manifestações foi o resgate de Victor Jara como herói da resistência, e uma de suas músicas virou o canto de guerra dos manifestantes, a canção chamada “El Derecho de Vivir En Paz”, lançada em 1971 para se solidarizar com o Vietnã contra a intervenção imperialista dos EUA e em memória do líder comunista Ho Chi Min. Um manifesto da luta internacional pelo direito de viver em paz e pela autodeterminação dos povos. A canção termina com o trecho “Tío Ho, nuestra canción/Es fuego de puro amor/Es palomo palomar/Olivo del olivar/Es el canto universal/Cadena que hará triunfar/El derecho de vivir en paz”.
A luta e o sonho de Victor Jara seguem resistindo na luta dos excluídos e oprimidos da América Latina e de todo o mundo pela sobrevivência de cada dia e na batalha pela dignidade humana. Num Brasil de 2021 marcado pelo avanço do autoritarismo, pela repressão e pelas medidas econômicas contra os pobres do governo Bolsonaro e de seus generais, é preciso manter viva a memória de todos os que foram assassinados e torturados na luta por um futuro anticapitalista. Ocupar as ruas e praças para gritar Fora Bolsonaro e Ditadura Nunca Mais é urgente para que se derrote o fascismo, para que esse passado nunca se repita e para que se mantenha acesa a chama da luta por um mundo socialista livre de todas as opressões em que todos tenham vez e voz.
Venceremos!
*Texto escrito originalmente, com modificações, para o fanzine O Desobediente – Anticapitalista
Comentários