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MUNDO

Peru: O Caminho de Castillo

Tony Wood* | Tradução: Davi Nunes de Carvalho

Quase dois meses após a vitória estreita de Pedro Castillo no segundo turno do Peru, o novo presidente conseguiu somente nomear seu primeiro gabinete. A votação de 73 a 50 com a qual o Congresso peruano aprovou os ministros em 27 de agosto ocorreu ao final de várias semanas de obstruções e protestos da oposição. Isso incluiu uma recusa prolongada de Keiko Fujimori, a candidata derrotada, de reconhecer o resultado, bem como a histeria do pânico comunista que marcou a campanha presidencial. As turbulentas semanas desde a eleição de 6 de junho fornecem uma indicação clara e deprimente do que Castillo pode esperar nos meses (e até mesmo nos anos) que virão; mas, ao mesmo tempo, eles também demonstram amplamente a disfunção profunda que o levou ao poder em primeiro lugar.

O establishment político peruano ainda não se recuperou, de muitas maneiras, do choque inicial do primeiro turno de votação em 11 de abril. Embora o campo estivesse lotado, poucos esperavam que Castillo, o ex-líder do sindicato dos professores e natural da província de Cajamarca, emergisse como o favorito com 18% dos votos. Ainda mais surpreendente foi que ele o fez como candidato do Perú Libre, um partido declaradamente marxista-leninista, em um país ainda fortemente polarizado pelos legados da insurgência do Sendero Luminoso e da repressão estatal dos anos 1980 e 1990.

A campanha pelo segundo turno trouxe uma crescente indignação anticomunista. No Peru, a forma específica que isso assume é terruqueo – ‘chamar alguém de terrorista’; isto é, contaminar qualquer pessoa da esquerda pela associação (imaginária) com o Sendero Luminoso – embora a mídia também conjure os espectros de Cuba e Venezuela. Tamanha era a necessidade de unidade da elite em face da suposta ameaça comunista que o vencedor do Nobel, Mario Vargas Llosa, que nas eleições de 2011 e 2016 rotulou Keiko Fujimori de uma ameaça à democracia, agora a aclama como representante da ‘liberdade e progresso ‘.

A tática de intimidação quase funcionou: na corrida eleitoral até 6 de junho, a liderança nas pesquisas de Castillo diminuiu dia a dia. Mas quando os votos foram finalmente contados, ele havia vencido por meros 44.250 votos – uma margem nacional de 0,2%. A minúscula lacuna entre os totais dos candidatos ocultou uma enorme divisão geográfica, no entanto. Em grande parte do interior do país, especialmente nos departamentos montanhosos mais pobres, Castillo venceu por uma margem esmagadora. Cinco departamentos andinos – Apurímac, Ayacucho, Cusco, Huancavelica, Puno – relataram pontuações de mais de 80% para Castillo; em Puno, que faz fronteira com a Bolívia, seu total foi de impressionantes 89%. Ao todo, Castillo ganhou 16 dos 25 departamentos do Peru, em áreas que respondem não apenas pela maior parte do território nacional, mas também pela desigualdade mais profundas. Ao mesmo tempo, é dessas áreas que a riqueza mineral do Peru é extraída, enquanto os benefícios do boom do final dos anos 2000 e início dos anos 2010 foram sentidos principalmente em outros lugares. Daí a ressonância do slogan da campanha de Castillo: “Chega de pobres em um país rico.”

No entanto, Fujimori ganhou nas cidades costeiras mais populosa – mais notavelmente a capital, Lima, que contém 30% da população nacional, e que ela ganhou por 31 pontos percentuais. (Sua margem de vitória no departamento de Lima, que circunda a região da capital e se estende até os Andes, foi de apenas 7%). Embora haja muitas complexidades a serem consideradas – há muita pobreza na costa também – as disparidades da geografia peruana explicam em grande parte o fato de que a vitória de Castillo proporcionou uma negação histórica e retumbante ao domínio costeiro e, ao mesmo tempo, o mandato mais tênue possível.

Fujimori imediatamente contestou o resultado, alegando “fraude sistemática” e exigindo que até 200.000 votos fossem anulados. Algumas de suas alegações envolviam racismo mal dissimulado: os votos contestados por Fujimori vinham das terras altas predominantemente indígenas e, em um caso, sua campanha reclamou que muitos dos funcionários eleitorais tinham o mesmo sobrenome e, portanto, deviam ser parentes. (Em áreas indígenas, os sobrenomes costumam ser recorrentes, independentemente do parentesco). Embora as contestações legais de Fujimori não tivessem qualquer fundamento, os tribunais demoraram semanas para esgotá-los, atrasando Castillo de assumir formalmente o cargo até 28 de julho. O dia da inauguração também foi o ducentésimo aniversário da independência do Peru da Espanha, mas a ocasião histórica foi obscurecida pelas contínuas incertezas da transição presidencial.

Longe de perder o fôlego com a tomada do poder por Castillo, a campanha da oposição peruana para paralisar sua presidência simplesmente entrou em uma nova fase. Em agosto, isso se concentrou na designação do gabinete – geralmente uma formalidade para uma administração recém-eleita, mas desta vez o ponto focal de outra rodada de terruqueo e obstrução. A primeira vítima foi Héctor Béjar, um guerrilheiro de esquerda na década de 1960 que então trabalhou para a ditadura militar progressista de Juan Velasco Alvarado na década de 1970, e desde então permaneceu um dos intelectuais públicos radicais mais proeminentes do Peru. Sua nomeação como ministro das Relações Exteriores foi um bom presságio para a política hemisférica do país, inclusive para sua promessa de remover o Peru do Grupo de Lima, a coalizão anti-Maduro formada em 2017. Mas em meados de agosto surgiram vídeos dele fazendo comentários críticos sobre a Marinha do Peru e acusando a CIA de financiar o Sendero Luminoso, e em poucos dias ele foi forçado a renunciar. (Seu substituto, Oscar Maúrtua, um diplomata de carreira que também serviu como secretário do Exterior de 2005-2006, foi uma escolha calculadamente não provocativa).

Foi uma retirada abrupta e a oposição sentiu cheiro de sangue. No dia seguinte à saída de Béjar, Lady Camones, do Partido da Aliança para o Progresso, de centro-direita, disse à mídia que “a renúncia do ministro das Relações Exteriores definitivamente não é suficiente”. O próximo alvo era, se não todo o gabinete, pelo menos a escolha do primeiro-ministro de Castillo, Guido Bellido. Nascido em 1979 em um distrito rural de Cusco, nas terras altas do sul do Peru, Bellido é um falante nativo do quíchua, o que por si só provoca uma reação visceral das elites em Lima. Por exemplo, quando Bellido começou seu discurso ao Congresso em 26 de agosto em quíchua, que é uma das línguas oficiais do Peru, ele foi interrompido por deputados que reclamaram de sua não compreensão. Tanto Castillo quanto Bellido se apresentam como representantes do “Perú Profundo”, o interior há muito marginalizado do país. Nesse sentido, a disputa pela nomeação de Bellido é um microcosmo da tensão histórica entre a costa e as terras altas.

Mas há um pano de fundo político mais específico para a oposição de Bellido como alvo, em que o próprio Bellido nem mesmo é o jogador central. Um quadro leal do partido Perú Libre, Bellido é amplamente visto como um representante do líder do partido, Vladimir Cerrón – um neurocirurgião cubano de 50 anos e ex-governador de Junín no planalto central. Foi Cerrón quem fundou o Perú Libre em 2008, inicialmente como um veículo para alcançar o poder em nível regional. Ele foi eleito governador de Junín em 2011 e novamente em 2018; mas em agosto de 2019, sete meses após o início de seu mandato, ele foi destituído do cargo após receber uma condenação criminal por corrupção. Outros processos contra ele estão pendentes, incluindo um lançado em julho de 2021 por lavagem de dinheiro e outro em agosto de 2021 contra ele e Bellido por “terrorismo” sobre supostas ligações com os remanescentes do Sendero Luminoso.

Tanto Cerrón quanto Bellido negaram tais conexões, mas a direita aproveitou a adesão de Cerrón ao marxismo para pintá-lo como um simpatizante do terrorismo. As duras críticas de Cerrón à repressão do Estado durante o conflito armado das décadas de 1980 e 1990 também o colocam fora do campo ideológico. (Fatores pessoais também desempenham um papel aqui: seu pai, Jaime Cerrón Palomino, era um respeitado acadêmico de esquerda em Huancayo que foi sequestrado e morto em 1990 por paramilitares estatais; na sequência de depoimentos dados à Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru em 2002, quatro generais foram acusados do assassinato, mas ainda não foram julgados.)

Manter Cerrón longe do poder efetivo é o verdadeiro objetivo da oposição. Sem dúvida, o animus pessoal desempenha um papel, assim como o cheiro de desonestidade em torno de Cerrón – embora nessa frente, a maior parte do Congresso do Peru não tenha uma perna esticada para se apoiar. Mas o cerne da contenda sobre o novo gabinete foi a oportunidade que ele proporcionou para abrir uma divisão entre Castillo e Perú Libre. A ascensão do primeiro já foi um golpe suficiente para o establishment político de Lima. Ainda mais alarmante para eles foi o sucesso do Perú Libre nas eleições legislativas, realizadas em abril, ao mesmo tempo que se realizava o primeiro turno da eleição presidencial. De não ter assento no Congresso, o Perú Libre passou a ser o maior partido único com 37 deputados. O Fuerza Popular de Fujimori obteve apenas 24 assentos – uma melhoria em relação aos 15 que ganhou na eleição de 2020, mas uma queda considerável na contagem de 73 assentos com que dominou o Congresso em 2016-20. O restante das 130 cadeiras são distribuídas entre uma dúzia de outros partidos, a maioria deles organizada em um espectro de centro-direita para direita.

O novo Congresso é, portanto, altamente fragmentado, o que tornará extremamente difícil governar o país. O principal aliado do Perú Libre será o Juntos por el Perú, uma coalizão de esquerda ao estilo Syriza liderada pela ex-candidata à presidência Verónika Mendoza. Embora tenha apenas 5 assentos, desempenhou um papel de destaque na transição, fornecendo pessoal que é, sem dúvida, mais experiente politicamente do que a maioria dos quadros do Perú Libre, mas também muito mais apresentável para as elites costeiras e classes médias. Um exemplo importante disso é Pedro Francke, escolhido por Castillo como ministro das finanças, que estava na equipe de Mendoza e foi contratado para acalmar os mercados depois que Castillo venceu. (Funcionou brevemente, embora a moeda tenha despencado novamente quando Castillo indicou Bellido como premier). Mas isso gerou polêmica no Perú Libre: Cerrón há muito deixou claro que não gosta do que chama de “sobra de caviar”, e um dos muitos desafios que Castillo enfrenta é como unir os diversos componentes de esquerda sobre os quais seu governo foi construído.

Existem dificuldades muito maiores pela frente, no entanto. Bem longe da maioria no Parlamento, o próximo governo terá que reunir votos para cada projeto legislativo que apresentar, em uma série de acordos do tipo “toma lá dá cá”. Castillo acabou conseguindo fazer com que seu gabinete fosse aprovado no Congresso – sem Béjar -, mas a luta que teve para fazê-lo fornece uma prova amarga do que está por vir. Ao mesmo tempo, seu sucesso e o de Perú Libre são sintomas inconfundíveis da profunda crise do sistema político peruano, que já passou por vários anos de disfunções contínuas. Uma série de escândalos de corrupção, muitos deles envolvendo o tentacular conglomerado brasileiro Odebrecht, levou à destituição de dois presidentes sucessivos, bem como acusações de corrupção contra membros importantes do Congresso peruano, incluindo Keiko Fujimori. (Ela foi libertada de um segundo período na prisão em maio de 2020, mas mais acusações foram feitas em março de 2021, no meio da campanha presidencial).

Em outros lugares da América Latina – o Brasil em primeiro lugar – a política anticorrupção foi armada com sucesso pela direita, contra um rival coerente pelo poder na esquerda. No Peru, na ausência dessa esquerda, a anticorrupção tornou-se amplamente um meio de acerto de contas dentro da classe política, obviamente cínico e desprovido de preocupação real com o destino do país. Foi em parte a desilusão semeada por anos disso que levou a apelos por uma nova constituição, incluindo protestos que levaram à destituição de um terceiro (embora interino) presidente em novembro de 2020.

A sensação de crise foi enormemente acelerada, é claro, pelo impacto da Covid-19. O Peru está entre os países mais afetados drasticamente, sofrendo picos catastróficos de mortes e infecções desde o início da pandemia. Embora sua cifra total de 198.000 mortes até agora seja ofuscada pelas baixas em outras partes da América Latina, proporcionalmente foi atingida com muito mais força: em 609 por 100.000, sua incidência de mortes é mais do que o dobro do Brasil, e três vezes maior que a do México. Em um país onde 70% dos trabalhadores estão no setor informal, a pandemia reverteu todos os ganhos obtidos na última década: entre 2019 e 2020, a renda per capita caiu 20% e a taxa de pobreza subiu de 20% para 30 % da população.

Foram essas crises sobrepostas – desastre de saúde pública, mais desordem política cada vez mais profunda, mais as desigualdades em curso forjadas por uma economia extrativista neoliberal – que tornaram possível o choque duplo do avanço do Perú Libre e da vitória de Castillo. No mínimo, eles deixaram bem claro que não pode haver retorno aos negócios normais. Mas menos claro é quanto da transformação o governo de Castillo será capaz de realizar, dadas as restrições políticas e o clima ideológico polarizado em que terá de operar. A plataforma do Perú Libre – originalmente redigida por Cerrón em fevereiro de 2020, quando o partido não tinha cadeiras no Congresso – não é necessariamente um guia de como será o programa de Castillo. Suas propostas variam de dobrar os orçamentos de saúde e educação a nacionalizações de empresas de mineração, e de uma “segunda reforma agrária” (depois daquela promulgada no final dos anos 1960 pelo regime de Velasco), a uma transição do neoliberalismo para uma “economia popular com mercados ”.

Os efeitos da pandemia significam que pelo menos alguns aumentos nos gastos sociais provavelmente serão superados, mas resta saber se Castillo pode, por exemplo, revisar os contratos de mineração para dar ao estado peruano uma parcela maior dos rendimentos dos recursos. Talvez a proposta mais provável de ser implementada seja a convocação de um referendo sobre uma nova constituição. Isso já estava no ar no Peru no final de 2020, inspirado no exemplo do vizinho Chile, e parece a única maneira de garantir um mandato e uma estrutura para reformar o modelo neoliberal do Peru.

Nesse contexto, é significativo que, além de Lenin e Fidel Castro, os principais modelos mencionados no programa do Perú Libre sejam Rafael Correa e Evo Morales. Ambos os líderes do Pink Tide, no entanto, estavam em posições muito mais fortes do que Castillo no início de seus mandatos, e mesmo se o referendo fosse bem-sucedido, é improvável que o equilíbrio de forças no Peru produza um estatuto tão progressista quanto o Equador ou a Bolívia. Mas, na ausência de uma renovação democrática tão completa, uma restauração neoliberal nos antigos termos também não parece provável. Muito mais provável é um interregno prolongado e turbulento.

*Publicado originalmente em https://newleftreview.org/sidecar/posts/133

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América Latina / peru