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BRASIL

A luta indígena também é por saúde: a ação voluntária no acampamento em Brasília

Isabella Dornelas*, Lígia Maria** e Marcos Langkamer***, de Brasília, DF
Afronte DF

Voluntários(as) no atendimento de saúde durante o acampamento Luta pela Vida

O movimento nacional indígena Luta Pela Vida é o maior movimento indígena realizado no Brasil. Do dia 22 ao dia 28 de agosto mais de 100 etnias, totalizando cerca de 6 mil pessoas, estiveram acampadas em Brasília e muitas delas continuam, prevendo ficar até o dia 11 de setembro, quando terá fim a Marcha de Mulheres Indígenas. Na semana que sucede imediatamente a data do acampamento, os indígenas vivenciam o processo de julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, que decidirá se os territórios indígenas devem ser demarcados ou se deve ser usada a tese do Marco Temporal. 

O Marco Temporal representa uma das mais graves ameaças aos povos indígenas, uma vez que considera que só devem ter direito às terras nas quais já estivessem estabelecidos quando da promulgação da constituição em 1988. O julgamento, a cargo do Superior Tribunal Federal (STF), é o mais importante para todos os povos indígenas do Brasil.

A realização de um acampamento com essa proporção em meio à pandemia de COVID-19 é, certamente, um grande desafio. Por isso, durante toda a mobilização, profissionais e estudantes da área da saúde foram voluntários no cuidado aos indígenas, realizando testagem para COVID-19, distribuição de máscaras PFF2, atendimento às demandas espontâneas de saúde e orientações sanitárias.

A organização da ação de saúde contou com a parceria entre Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e movimentos sociais, onde o Afronte! se inseriu no chamado de voluntários, principalmente estudantes da saúde convocados através do Centro Acadêmico de Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde do DF (CAEnf-ESCS) e do Centro Acadêmico de Medicina da Universidade Católica de Brasília (CAMAB-UCB), coordenados e direcionados pela militância do Afronte que atua na saúde.

São muitas as especificidades envolvidas no cuidado aos povos indígenas e, por isso, antes do início do acampamento, todos os voluntários participaram de formação e receberam orientações, capacitados ao acolhimento desde a chegada dos primeiros acampantes. É imprescindível ressaltar e compreender que a atenção à saúde indígena é historicamente marcada por negligência, violência e opressão, o que se agrava com a crise sanitária diante da imposição da continuidade das lutas e resistência. Há 20 anos o movimento indígena conquistou o Subsistema de Saúde Indígena, voltado à promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde com a devida integração das particularidades étnicas, culturais e epidemiológicas de cada um dos cerca de 305 povos indígenas que vivem no país.

Para tal, as comunidades são regionalizadas em 34 distritos de saúde, em uma estrutura que integra o SUS e, apesar da dificuldade na fixação de profissionais e sua integração aos conhecimentos étnicos e culturais, estava avançando. Contudo, já no primeiro ano de governo, Bolsonaro cogitou extinguir a SESAI e, após recuar, fechou cargos e alterou departamentos, o que agravou a situação de carência de atenção à saúde provocada pela saída dos profissionais do programa Mais Médicos. Em uma manobra que revela nítido desconhecimento sobre o SUS, as alterações foram justificadas pela integração do subsistema de saúde indígena ao sistema único de saúde, como se fossem apartados. A medida aprofunda as dificuldades vivenciadas por esse setor de atenção à saúde, continuamente preterido na política pública e sendo vítima de iniciativas como a terceirização dos serviços – o que impacta na longitudinalidade do cuidado.

Além disso, o Decreto 9.795/19 extinguiu o Departamento de Gestão da Saúde Indígena, que até então tinha a responsabilidade de garantir as condições necessárias à gestão do subsistema, programando a aquisição de insumos e coordenando as unidades de atendimento – a extinção do departamento afeta frontalmente a gestão e o controle social, pois não houve diálogo com as lideranças indígenas; a forma autocrática da decisão é recrudescida pelo fim da Comissão Nacional de Política Indigenista, uma plataforma de interlocução entre as etnias e a gestão federal que teve uma atuação fundamental para a criação da SESAI. A SESAI é a única secretaria do Ministério da Saúde com atribuição de execução orçamentária; com a extinção do Departamento de Gestão de Saúde Indígena do órgão, perde-se independência política e financeira para a assistência aos povos indígenas.

O governo Bolsonaro fez questão de trocar coordenadores dos distritos sanitários, substituindo-os por indicações políticas que resultaram nas mais inaceitáveis infrações ao direito à saúde, que deve ser garantido aos povos originários. Em pelo menos quatro distritos, as indicações foram de militares ou aliados políticos, que somam denúncias de inexperiência, truculência e má gestão da pandemia; três distritos tiveram sua gestão alterada no governo Bolsonaro. Em alguns distritos, foram cinco trocas de coordenadores em pouco mais de um ano. Além da ofensiva ao direito à saúde, à terra e à liberdade, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho foi transposta, uma vez que prevê o direito à consulta prévia aos indígenas na escolha dos coordenadores dos distritos sanitários.

Houve relatos de um coordenador trabalhando armado e intimidando indígenas; remoção de barreiras sanitárias; desvio de verbas do combate à pandemia; distribuição de medicamentos sem eficácia no tratamento da COVID-19, como a cloroquina; negligência sobre a vacinação, jogando a responsabilidade de vacinar indígenas que circulam no meio urbano para secretarias estaduais e municipais de saúde, ignorando o risco de contaminação presente no trânsito entre meio urbano e comunidades isoladas, motivados por diversas razões, sobretudo de subsistência. O aparelhamento político desses distritos vem acompanhado do maior corte orçamentário para a saúde indígena nos últimos oito anos, mesmo diante da maior pandemia do século.

Foi nesse contexto que recebemos os povos indígenas em Brasília para serem cuidados durante seu processo de luta. As atividades de credenciamento, triagem e testagem para COVID-19 permaneceram durante todo o acampamento, o que foi fundamental para a segurança sanitária do movimento. Os voluntários foram alocados em quatro tendas de acordo com as articulações representativas das diferentes regionais dos povos indígenas de todo o Brasil (APOINME – Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo; ARPINSUDESTE – Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste; ARPINSUL – Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul e COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira). Nas tendas, os estudantes participaram de toda linha de acolhimento dos indígenas, da triagem à testagem.

A triagem rastreou os sintomas e balizou as orientações sanitárias, sendo mais uma oportunidade para distribuição e incentivo ao uso das máscaras PFF2. A testagem, por sua vez, foi possibilitada pela Fiocruz, através da doação de testes rápidos de antígeno, podendo ser processados no local da coleta, obtendo o resultado com alta precisão (acima de 95%) em cerca de 15 minutos. Esse fator foi essencial para a rápida identificação de infectados e o rastreamento de seus contatos, possibilitando, junto à delegação responsável, o seu isolamento. Durante esse processo, os estudantes voluntários atuaram junto a, pelo menos, um profissional da saúde formado, auxiliando nos processos de coleta, leitura e divulgação dos resultados obtidos.

Além das medidas específicas para COVID-19, uma tenda fixa de assistência foi estabelecida para a realização de atendimentos de demandas espontâneas durante todo o acampamento. Devido às mudanças drásticas de clima, rotina e alimentação, muitas das pessoas acampadas apresentaram sintomas de desidratação e infecções, cuja gravidade foi avaliada e o atendimento encaminhado nas unidades de saúde de referência. Ademais, um anexo dessa estrutura de cuidado em saúde serviu de apoio aos povos durante as marchas e mobilizações em frente ao STF, atuando, principalmente,  na prevenção da desidratação por meio da distribuição de soro de reidratação oral e a prestação de cuidados às intercorrências durante esses atos.

No início, foi possível observar a presença de certa reticência dos acampantes às medidas de saúde, que foi logo substituída pela confiança nos voluntários, a partir de muito diálogo e do entendimento da importância das ações para a segurança sanitária da mobilização. Os desafios na condução da ação de saúde do acampamento foram inúmeros, sobretudo tendo em conta a pandemia. No entanto, a compreensão de que o processo saúde-doença é determinado socialmente nos permite entender que a presença de milhares de representantes de povos indígenas de todo o Brasil em Brasília lutando pela garantia de seus territórios, mesmo com as adversidades sanitárias, é também uma luta pela saúde, pois território é onde a vida acontece, os saberes tradicionais se perpetuam e saúde se faz no território! A luta indígena é a luta pela existência. Todo apoio deve ser oferecido àqueles que são os verdadeiros donos dessas terras.

É imprescindível mencionar que a ação de saúde não representa apenas uma contribuição dos voluntários à mobilização, mas, sem dúvidas, um acréscimo enriquecedor da força e resistência de cada etnia à formação de profissionais de saúde que, em breve, atuarão efetivamente no cuidado, bem como ao aprimoramento da atuação daqueles que já são formados. A visão acerca da integralidade e da equidade em saúde desafia a lógica da educação bancária, voltada à perspectiva biomédica e fragmentadora da saúde, e impele cada pessoa que se dispôs ao envolvimento na saúde do acampamento Luta pela Vida à compreensão do que é, de fato, saúde.

Como voluntários, entendemos o quanto foi essencial a ação de saúde para a viabilização dessa luta da forma mais segura possível e todo apoio prestado possui, por base, o reconhecimento da legitimidade e da importância de uma luta histórica, do processo árduo de resistência dos povos pela garantia de sua permanência nos locais que os pertencem desde muito antes de 1988. A oportunidade que nos foi dada, de enxergar a luta dos povos indígenas por dentro, faz refletir sobre o quanto integrar essa mobilização é um ato de respeito à sua ancestralidade e ao futuro da humanidade inteira. Isto porque a demarcação de terras indígenas é uma ferramenta de proteção, tanto da diversidade da natureza e seus recursos, quanto da pluralidade cultural desses povos, suas crenças, dialetos e modos de fazer saúde que são ameaçados, rotineiramente, pelas invasões e destruições de terras com fins lucrativos, tendo como consequência a sua morte. Mesmo com todos os desafios que um contexto de pandemia promove para uma mobilização nacional, a necessidade da garantia de seus direitos obriga a população indígena a enfrentá-los e nos impele a apoiar a bravura dos povos originários.

O movimento indígena nacional Luta Pela Vida é um movimento de resistência para vencer mais uma das batalhas que se apresentam, que é o julgamento da tese do Marco Temporal. Entretanto, as batalhas são muitas e seguiremos apoiando essa luta. Na semana do dia 7 ao dia 11/09, o Afronte continuará com voluntários para contribuir nas ações de saúde; todas as pessoas podem ajudar com doações financeiras, de insumos e de alimentos para a manutenção do acampamento. A saúde é feita pelas mãos que cuidam e pelas que recebem cuidado; mãos que também lutam. A luta indígena também é uma luta por saúde!

*Acadêmica de Enfermagem da ESCS, presidente do CAEnf ESCS e militante do Afronte!DF.

** Enfermeira e militante do Afronte!DF.

***Acadêmico de Medicina, coordenador do CAMAB UCB e militante do Afronte!DF