Enquanto feministas, queremos expressar total solidariedade com as mulheres afegãs e demonstrar todo o meu apoio às suas manifestações desde a tomada de Cabul pelos Talibãs. Enquanto feministas internacionais e internacionalistas, defendemos o direito de autodeterminação das mulheres, em qualquer parte do globo, sobre os seus corpos, as suas vidas e o seu futuro e sabemos que enquanto não formos todas livres, nenhuma de nós está realmente livre. Posto isto, não queremos cair num discurso ocidental de white saviour ou adoptar uma postura anti-islã.
As redes sociais e as notícias têm difundido muitos conteúdos desde o dia 15 de Agosto de 2021, que marca o início da ocupação da capital do Afeganistão pelos Talibãs. Muitos desses conteúdos fazem uma apologia à entrada e à permanência dos EUA no Afeganistão, muitos outros debruçam-se sobre o retrocesso que as mulheres sofrerão, focando muito especificamente no uso da burka e de outros direitos democráticos como se estes tivessem sido concedidos como forma de regalo pela “suprema civilização ocidental” e não consequência directa de lutas e embates políticos entre grupos de mulheres, LGBTIA+ e pessoas racializadas contra uma organização reacionária e conservadora nos vários estados ocidentais. Fala-se da complexidade do assunto mas na grande maioria das vezes o que triunfa é uma ideia de que o ocidente é progressivo e tudo o resto não. Como se a permanência dos EUA no território afegão tivesse contribuído para um desenvolvimento em termos de direitos e qualidade de vida. A constante falta de reflexão por parte dos políticos, o pretenso discurso anti-terrorismo e a visão do ocidente como pioneiro da paz não faz jus à história nem tem em conta o que significa ocupar militarmente territórios em nome da “estabilidade”, “paz”, “cooperação internacional”. Existe, nos mass media, uma narrativa que deixa de fora o porquê de se reforçarem os fundamentalismos e conservadorismos religiosos, como é o caso da apologia do Estado Islâmico (EI) que é feita pelos Talibãs. Os fundamentalismos não são defensáveis, evidentemente, mas é certo que a realidade nos pede muito mais do que optar por um ou outro lado, como se quem trabalha e é oprimido necessitasse de escolher entre o menor dos males.
No que toca à libertação das mulheres, nada de significativo mudou desde a entrada dos EUA, pois havia muito pouco progresso social fora de uma determinada zona central onde se concentravam as tropas americanas e inúmeras ONGs. Num artigo de Tariq Ali, que podem ler aqui, o mesmo refere que “uma das principais feministas do país no exílio observou que as mulheres afegãs tinham três inimigos: a ocupação ocidental, os talibãs e a Aliança do Norte. Com a saída dos Estados Unidos, disse ela, eles terão dois.” Na verdade, após a revolução em 1978 estabeleceram-se direitos iguais para homens e mulheres e a qualidade de vida no país melhorou. Uma parte da população, a mais conservadora, ficou de fora deste processo, originando milícias anti governo que queriam fundar um EI (chamados mujahideens). Entram em cena os EUA e Reino Unido em apoio dessas milícias e a URSS do lado do governo afegão. Seguem-se 10 anos de guerra (no contexto da Guerra Fria) que terminam em 1992 com a saída de cena da URSS e inicia-se uma guerra civil, sendo que em 1996 os Talibãs,fundados pelos mujahideens, tomam Cabul e impõem um regime islâmico. Em 2001 dá-se a invasão por parte da OTAN e os Talibãs recuaram, passando-se 20 anos de controle do país por parte dos norte americanos, com inúmeros crimes de guerra e abusos, que reforçou o apoio aos Talibã. 2020 trouxe um acordo de paz e o início da evacuação de civis e militares e o consequente avanço dos Talibãs. Tudo isto tem que ser visto em termos história de geopolítica, de interesses económicos e de exploração de recursos, que termina com a principal potência capitalista ocidental e seus aliados ocidentais a lavarem as mãos e a “sair de cena”.
Posto isso, o regime que os Talibãs ameaçam impor causa, desde dia 15, muito medo, especialmente às mulheres. Todos vimos as imagens dos aviões, das pessoas desesperadas para sair do país. Já aconteceram manifestações de mulheres exiladas pedindo trabalho, educação e direito à participação política. Outra manifestação de mulheres em Cabul exigiu apoio internacional. A imposição de uma visão distorcida das leis islâmicas conservadoras – Sharia – deixam a população amedrontada, enquanto o poder talibã coloca já em prática algumas restrições, como as mulheres não poderem sair de suas casas sem serem acompanhadas por um parente masculino e completamente cobertas. Embora os Talibã tentam “modernizar” e incluir mulheres no governo ou permitir que sejam jornalistas, os ataques aos direitos são uma realidade, especialmente porque já existe a experiência anterior. A partir de 1996 as mulheres foram banidas do mercado de trabalho, as escolas deixaram de aceitar inscrições femininas e as mulheres foram expulsas das universidades, todas as janelas publicamente visíveis das casas das mulheres foram pintadas de preto, mulheres e meninas não podiam ser examinadas por médicos do sexo masculino e, ao mesmo tempo, médicas e enfermeiras de foram proibidas de trabalhar. Às mulheres afegãs devemos solidariedade e apoio internacional.
Porém, todo o ocidente se mobiliza contra os ataques às mulheres e crianças, sem nunca parar para refletir sobre os temas descritos acima, sobre o papel dos governos ocidentais na criação de crises de refugiados e guerras internas. Muitas feministas, embora bem intencionadas, também caem na armadilha do feminismo branco e eurocêntrico, priorizando a denúncia da burka e dos retrocessos civilizacionais lá longe ao invés de fazer exigências aos seus governos para acolherem refugiadxs, por exemplo.
Perante a situação afegã, vemos os políticos europeus e norte americanos a fazer vista grossa à sua responsabilidade, sem garantir a retirar de pessoas ameaçadas, temos a Frontex preparadíssima para lidar com outra crise de refugiados (ou seja, pronta para deixar as pessoas morrerem em travessias perigosíssimas) e discursos como o de Macron, que afirmou estar preparado para proteger a Europa dos afegãos.
Assim, é importante, enquanto feministas, pensarmos nas exigências que podemos construir, a partir da nossa localização e sem criar hostilidade com as mulheres no terreno. Podemos e devemos exigir às instituições portuguesas competentes que recebam as pessoas refugiadas – sem limites, com condições humanas e integração tanto em trabalho quanto em serviço de saúde e educação. Temos que confrontar os sucessivos Orçamentos de Estado em Portugal que destinaram orçamento para alimentar a OTAN e os vários projetos bélicos da União Europeia, pois não há forma de debater geopolítica sem debater a participação e contribuição de Portugal na União Europeia e OTAN.
Devemos ter estas atenções por ser também do interesse de todas as pessoas exploradas, sendo oprimidas ou não, estar do lado da organização de todos os grupos que se levantam contra os seus tiranos, sem ceder aos discursos que nos apontam falsas dicotomias. Escolher o tirano de olho azul e pele branca não é estar ao lado das mulheres e crianças afegãs, é validar todo o processo que nos trouxe até aqui e até outras calamidades mundiais.
*Texto publicado no site de Semear o Futuro, de Portugal.
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