Mark Twain dizia que “um clássico é um livro que as pessoas elogiam e não leem; um livro, enfim, que todo mundo quer ler e ninguém quer ler”. De fato, tanto os fãs quanto os detratores costumam opinar superficialmente sobre algumas obras e autores que mal conhecemos. A ideia inicial deste texto é que na literatura, na arte, na ciência e no pensamento revolucionário, não é o autor que faz o clássico, mas sim a perenidade de suas ideias, imagens e intuições que nos deixam um legado por certas passagens de seu trabalho e de sua vida. Ou seja, a capacidade de transcender tempos, países e conjunturas e de ser útil e evocativo para pessoas de diversas gerações, culturas e gêneros.
A figura que tragicamente nos deixou há 80 anos é, sem dúvida, um clássico do marxismo e uma figura-chave na política e na cultura da primeira metade do século XX. Uma experiência militante que atravessa países, épocas e organizações, uma rica formação política e uma densa cultura cosmopolita, bem como uma participação direta e vontade de compreender e intervir nos grandes acontecimentos políticos do seu tempo explicam um trabalho extenso, profundo, diverso e multifacetado. Por esses fatores, sua obra merece uma abordagem sem preconceitos e que desenvolvamos a nossa própria opinião com base na vontade de compreender antes de julgar. Nestas linhas, proponho algumas notas modestas para tentar esclarecer os sucessos, mas também os limites, deste clássico.
O capitalismo como totalidade dinâmica e contraditória
A dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado, decorrente do mercado mundial e da sobreposição de processos acelerados de desenvolvimento econômico e estruturas econômicas e políticas arcaicas, não explica apenas as rivalidades imperialistas entre grandes potências que levariam à Grande Guerra (1914 -18), mas, constitui, em Trotsky, a base material para vincular aspirações democráticas e objetivos anticapitalistas, fundamento da teoria da revolução permanente.
Talvez a primeira ideia estruturante do pensamento de Trotsky seja a compreensão do capitalismo como uma força dinâmica expansiva que tende a abarcar o mundo todo, com lógicas internas complexas e contraditórias que, já nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, condiciona conflitos, rupturas e as possibilidades de desenvolvimento dos diferentes países do mundo. A dinâmica do desenvolvimento desigual e combinado, decorrente do mercado mundial e da sobreposição de processos acelerados de desenvolvimento econômico e estruturas econômicas e políticas arcaicas, não explica apenas as rivalidades imperialistas entre grandes potências que levariam à Grande Guerra (1914 -18), mas, constitui, em Trotsky, a base material para vincular aspirações democráticas e objetivos anticapitalistas, fundamento da teoria da revolução permanente. Inspirado pelos escritos de Marx sobre as revoluções de 1848 e pelas análises contemporâneas de Parvus, ele o desenvolve, em seu balanço da revolução russa de 1905, um horizonte estratégico para rupturas futuras – ao qual Lenin irá implicitamente aderir em suas Teses de abril de 1917 – e que, anos depois, se generaliza para países dependentes, coloniais e semicoloniais, contrapondo-se às ideias de Stalin sobre o “socialismo em um só país”.
Assim, Trotsky define a revolução socialista tanto como um ato, quanto como um processo, que pode começar em um país, mas que tende a se espalhar para outros e só pode ser consumado em um nível global precisamente por causa da natureza expansiva e predatória do capitalismo. Portanto, contradizendo a ortodoxia marxista de sua época, ele foi o primeiro socialista do século XX a chegar à conclusão de que uma revolução operária e camponesa poderia triunfar mais cedo em países menos desenvolvidos, desde que conseguisse ser vitoriosa também em países economicamente mais avançados e com tradições parlamentares mais consolidadas, nos quais a tomada do poder mais lenta e trabalhosa, mas que permitem a construção de uma sociedade sem classes, através de uma democracia socialista, de forma muito mais rápida. Na perspectiva de Trotsky – compartilhada por Lenin nos debates dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista – o bloqueio dessa dinâmica reforçaria e estabilizaria o capitalismo mundial – mesmo com suas crises e contradições – o que favoreceria as forças restauracionistas, como profetizado no texto de 1922 “A curva do desenvolvimento capitalista”.
Auto-organização e emancipação
A segunda ideia central do pensamento e da práxis de Trotsky enfatiza a auto-organização popular como base para a luta de classes, um requisito para processos revolucionários e como embrião estruturante das instituições revolucionárias. O surgimento dos sovietes na revolução russa de 1905 (que o revolucionário conheceu diretamente como presidente do Soviete de São Petersburgo) simboliza, no pensamento de Trotsky, a irrupção transbordante da participação popular e a concretização orgânica do antagonismo operário e camponês contra a autocracia czarista. Enquanto “expressão materializada da democracia socialista”, os sovietes possibilitam três objetivos: estruturar e centralizar o movimento revolucionário espontâneo das massas, unificar as distintas tendências da socialdemocracia russa e constituir a base orgânica de um Estado Operário apoiado pelos camponeses pobres e capaz de derrotar o czarismo e as forças liberal-burguesas débeis e estruturalmente cúmplices da opressão czarista.
Sem dúvida, essa dinâmica se reproduz no “Breve século XX”, em que Lukács chama de a “atualidade da revolução”, ou seja, um período histórico em que a revolução foi uma tarefa concreta e viável no curto prazo. A ascensão de conselhos de trabalhadores e soldados na Alemanha (1918-19), os comitês de milícias e conselhos de defesa na Espanha (1936-37), conselhos de fábrica na Itália (1917-19 e novamente em 1969), os Cordões Industriais e os Comandos Comunais no Chile (1970-1973), os Comitês de Ação na França (1934-36 e 1968), os comitês de moradores e soldados da Revolução Portuguesa (1974-75), todos esses processos confirmam que dinâmicas revolucionárias surgiram de estruturas espontâneas de auto-organização popular capazes de buscar soluções para necessidades materiais básicas ante a paralisia de instituições e canalizar a luta das massas e para exercer uma legitimidade alternativa e oposta ao Estado Burguês.
Classe, Partido e Direção
Portanto, após a experiência de 1905, tanto a defesa de Trotsky da centralidade dos Sovietes quanto a defesa de Rosa Luxemburgo da greve geral revolucionária colocam diretamente a questão do poder. No entanto, como Lenin lembrará a ambos, essa conquista será impossível sem a hegemonia de uma organização que incorpore um programa revolucionário coerente. Em outras palavras, a crise política e social aguda não pode se transformar espontaneamente em revolução triunfante sem um partido capaz de orientar e definir os objetivos de cada conjuntura, como a vitória de Outubro de 1917 mostrará, e podemos acrescentar, de todas as revoluções sociais vitoriosas do século XX.
Esta compreensão tardia da concepção partidária de Lenin (que o levou a se juntar às fileiras bolcheviques somente em 1917 e abandonar definitivamente suas ilusões de reunificação da social-democracia russa), foi por Trotsky enriquecida durante os anos de 1930, graças a um profundo conhecimento do movimento operário internacional, o que é, sem dúvida, um dos calcanhares de Aquiles de Trotsky quando Lenin, já doente, o convoca para liderar uma luta contra a virada burocrática e autoritária impulsionada pela facção de Stalin na União Soviética.
Unidade estratégica e unidade tática
Em Trotsky, como em Lênin, é a experiência real que permite o avanço da consciência política e só a partir dela são compreensíveis as críticas ao reformismo quando ele manobra contra os interesses do movimento popular como um todo.
O terceiro grande eixo do pensamento de Trotsky é a questão da unidade e o problema da hegemonia anticapitalista nos países capitalistas desenvolvidos, ou seja, o desenvolvimento de uma estratégia revolucionária específica para o Ocidente. Esses desdobramentos terão dois momentos importantes: o terceiro e quarto congressos da Internacional Comunista e a discussão sobre a política da Frente Única e, na década de 1930, por meio da Oposição de Esquerda e da Quarta Internacional, fundada em 1938, até encontrar uma saída anticapitalista da luta contra o fascismo (com base na análise de países-chave como Alemanha, França, o Estado espanhol, os Estados Unidos, etc …).
Sem dúvida, a obsessão por estender a revolução para o Ocidente e quebrar o isolamento da URSS perpassará o movimento revolucionário das décadas de 1920 e 1930. Após a euforia inicial que se seguiu aos movimentos revolucionários do pós-guerra, a relativa estabilização irá refutar um rápido colapso do reformismo e o avanço das forças comunistas, o que obriga a proposição da política de Frente Única como uma estratégia unitária de empoderamento da classe trabalhadora em um contexto defensivo e como uma tática para reforçar os revolucionários em detrimento dos reformistas, não exclusivamente baseando-se em propaganda, mas em experiências concretas nas quais as amplas massas tomam consciência de que as organizações reformistas defendem o status quo e somente os partidos anticapitalistas lutam de forma coerente pelos interesses das amplas maiorias sociais.
Trotsky adverte que as políticas de Frente Única não resolvem a necessidade de um acúmulo mínimo de forças por parte das organizações revolucionárias e ataca as interpretações simplistas que se reduzem a propaganda abstrata e mera denúncia de grupos marginais. Busca a construção de partidos com um quarto ou um terço dos setores mais ativos da classe como requisito para forçar uma ação unitária aos aparatos reformistas, sejam eles políticos ou sindicais. Em Trotsky, como em Lênin, é a experiência real que permite o avanço da consciência política e só a partir dela são compreensíveis as críticas ao reformismo quando ele manobra contra os interesses do movimento popular como um todo. Um paciente trabalho de implantação e uma orientação ao mesmo tempo unitária e crítica será, portanto, em Trotsky, uma premissa incontornável para os anticapitalistas romperem seu isolamento e se postularem como a direção política de uma transformação radical da sociedade.
A especificidade do fascismo: análise e tarefas
A luta contra o fascismo na década de 1930 levará ao aprofundamento e enriquecimento dessa abordagem com base em uma série de ideias-chave:
- A caracterização da ascensão do fascismo como uma guerra civil de baixa intensidade liderada por setores reacionários da pequena burguesia empobrecida em meio a uma crise do capitalismo e que busca, em benefício do grande capital industrial e financeiro, a destruição total do movimento operário em geral e do movimento revolucionário e da URSS em particular.
- A distinção entre ditaduras militares clássicas e várias formas de bonapartismo regressivo e a especificidade do fascismo como solução para uma crise aguda de dominação burguesa, que permitirá a Trotsky qualificar suas análises.
- O fato de que uma ditadura fascista acaba repentinamente com os interesses e privilégios institucionais que alimentam financeiramente os canais ascendentes da social-democracia da social-democracia reformista constitui a base material a partir da qual os anticapitalistas devem impor uma política unitária de luta contra o fascismo ao conjunto das organizações que reivindicam o movimento operário e se empenham em criar organizações de luta unitárias e transversais capazes de alcançar grande autoridade entre o conjunto dos setores populares (mais amplas que as organizações que os compõem) e eventualmente atuar como militantes internos aos grandes aparatos burocráticos, o que permite a captação de militantes para organizações revolucionárias, quando certas condições subjetivas são satisfeitas.
- Denunciar a lógica do “mal menor” diante do fascismo que consiste em defender a estabilidade, a governabilidade e a “democracia” em abstrato, o que leva à renúncia da perspectiva anticapitalista em nome da unidade e consequente subordinação às forças burguesas. O que permite à extrema direita (ontem como hoje) capitalizar demagogicamente a agitação social gerada pelas crises capitalistas. Nesse sentido, vai criticar as políticas de colaboração de classes que serão praticadas pelos governos da Frente Popular e vai apostar em superá-las com a fórmula inovadora de “um governo operário e camponês que rompa com a burguesia” e, através da agitação da unidade das organizações “por baixo”, o que lança as bases para a tomada revolucionária do poder.
A noção de “governo operário e camponês” como inovação estratégica
Seus escritos sobre a França entre 1934 e 1936 são muito sugestivos a esse respeito e ajudam a refletir sobre experiências muito mais recentes: derrotas como a da Unidade Popular chilena em 1973 ou triunfos inexplicavelmente perdidos como o governo Syriza, a vitória do OXI e a capitulação de Tsipras à Troika na Grécia em 2015. Já sabemos o preço que a Europa e o mundo pagaram pelo acúmulo de revoluções fracassadas, evitadas e abortadas do período entreguerras: no verão de 1940, as bandeiras nazifascistas estavam tremulando em todos os países da Europa Central e Ocidental, com a única exceção do Reino Unido (até hoje a mais antiga e conservadora monarquia parlamentar do mundo).
Nesse sentido, a consigna de “governo operário e camponês” é de certa forma a conclusão lógica da política de frente única e em grande medida refuta a ideia de que Trotsky transferisse mecanicamente o “modelo russo” para o Ocidente, supostamente propondo o tomada do poder como ato de força extraparlamentar a partir de uma exterioridade total às instituições. Precisamente devido ao fato de que uma dualidade de poderes tão nítida como a do caso russo dificilmente seja concebível no Ocidente, e, acima de tudo, por causa da desintegração irrepetível do Estado e do exército russos devido ao impacto da Grande Guerra, é preciso apostar em um governo operário e camponês que, sem ainda ser “a ditadura do proletariado”, inicie uma série de medidas contra os interesses da burguesia, abrindo um período de confronto com ela. Trotsky afirma que isso só é possível em contextos revolucionários, nos quais o impulso popular transversal por baixo possibilite essa saída governamental, e falará da possibilidade de um “início parlamentar da revolução proletária”.
Mas a palavra de ordem do “governo operário e camponês que rompa com a burguesia” se coloca num momento de impasse, em que a crise das instituições ainda não conduziu a uma situação de dualidade de poder ou à desintegração da máquina estatal realmente existente e em que o impulso das massas ainda não conseguiu gerar estruturas de auto-organização capazes de corporificar um duplo poder, de condicionar, dirigir, confrontar com a ação do Executivo, e, o mais importante, de constituir um embrião de lideranças políticas alternativas diante dele para batalhas decisivas contra a reação. Certamente, a grande dificuldade estratégica nestes casos será, por um lado, assegurar que as forças revolucionárias tenham uma participação e inserção decisiva nas organizações de base unitária da frente única e um contato real com a superfície militante da grande massa e, por outro lado, manter a delimitação política suficiente para ficar fora dos governos a fim de preservar total independência para apoiar medidas positivas, conseguir as forças para combater nas ruas os ataques da reação, defender o governo quando necessário e criticar as capitulações até o ponto de construir-se como direção política alternativa quando esse governo deixe se der um estímulo para as ações de massa e passe a converter-se em um dique de contenção para preservar a legalidade burguesa. Embora os escritos de Trotsky se concentrassem fundamentalmente nos casos da França e da Espanha em meados da década de 1930, todos os problemas estratégicos que ele descreveu mais uma vez se manifestaram em toda a sua complexidade em experiências revolucionárias muito mais próximas, como a já mencionada Unidade Popular chilena ou a Revolução Portuguesa; processos dos quais podemos extrair muitas lições para os dias de hoje, dada a sua maior proximidade no tempo e a semelhança das suas formações sociais.
Por fim, podemos afirmar, sem risco excessivo de errar, que os escritos de Trotsky desse período, sobre a França, os Estados Unidos, a Itália, com algumas nuances sobre a Espanha (é o caso em que talvez a crítica de aplicar analogias mecânicas com a Revolução Russa em alguns de seus escritos é mais justificada) e, sobretudo, no que diz respeito à luta contra o fascismo na Alemanha, são os mais ricos em relação à análise da natureza do Estado capitalista, das conjunturas e crises políticas e, por último, não menos importante, abordando a construção de organizações revolucionárias em um cenário dinâmico e mutante, com giros imprevistos e quebras intempestivas.
Não há socialismo sem democracia, nem democracia sem socialismo
Um quarto eixo do pensamento do revolucionário ucraniano é a análise e a luta contra o fenômeno estalinista. De fato, Trotsky teve o papel ingrato, após as mortes de Rosa Luxemburgo, Lenin e Gramsci, de ser o último marxista clássico de seu tempo, dotado de honestidade intelectual e coragem política e pessoal suficiente para não se curvar ante o fato consumado e ousar aplicar o método marxista de análise à URSS. Aqui nos encontramos novamente com um pensamento preciso e dialético, dinâmico e concreto, capaz de medir proporções, identificar mudanças qualitativas e evidenciar as conexões entre as dimensões nacional e internacional dos processos. Independentemente dos limites e problemas de algumas de suas caracterizações, no contexto da década de 1930, sua contribuição é incomparável. Hoje é sem dúvida insuficiente, mas continua a ser inevitável voltar aos fenômenos a que ele se dirigiu: a saber, a burocratização, a longa crise e o colapso final do Estado decorrente da primeira revolução da classe trabalhadora da história; enigma desconcertante e drama dilacerante do grande evento fundador do século 20, diante do quais todas as correntes políticas tiveram que se posicionar.
Quais são os eixos da análise de Trotsky, e mais amplamente da Oposição de Esquerda, sobre o fenômeno estalinista?
Por um lado, ele estudará o desenvolvimento da burocracia, que atribuirá, grosso modo, a uma combinação de dois fatores principais.
O peso da divisão de classe e técnica do trabalho, compartilhada, até certo ponto, por todas as sociedades modernas e em desenvolvimento, que coexistirá inevitavelmente com as aspirações igualitárias e participativas durante um longo período de transição para o socialismo.
A escassez e as privações na URSS na década de 1920, exacerbadas pelas devastações acumuladas da guerra mundial e da guerra civil. Para exemplificar seus efeitos, Trotsky utilizou uma imagem muito gráfica: quando há escassez, formam-se filas, para vigiar as filas é preciso ter vigilantes e, como têm um papel importante, nunca serão os últimos a comer. O exemplo ilustra bem como a escassez cria a estrutura psicológica propícia aos privilégios de líderes e administradores – já em 1926 o salário de um funcionário permanente do partido de baixo escalão era 5 ou 6 vezes o de um trabalhador.
É verdade que Trotsky atribuirá grande importância aos fatores materiais da burocratização – estamos falando de uma verdadeira contrarrevolução política e social na qual a burocracia vai de 750.000 membros em 1928 para 7.500.000 em 1939 (Lewin) – mas ele também descreverá as lógicas políticas que levarão ao regime de Stálin. As dinâmicas militarizadas dos tempos da guerra civil, que foram um dos altos preços a pagar para se conseguir a vitória contra os brancos – das quais o próprio Trotsky, organizador da insurreição de Outubro e do Exército Vermelho, será um dos grandes arquitetos -, a lógica progressiva da nomeação de cargos por cima em vez da sua eleição por baixo – muitas vezes pela urgência na execução das tarefas, mas também pelo interesse de criar camarilhas e grupos de pressão -, as diferenciações internas nos aparatos do partido e do Estado – que seu amigo Christian Rakovsky analisará bem no início do processo -, bem como um baixo nível cultural, a morte dos melhores da militância bolchevique na guerra civil e, por fim, as reminiscências czaristas na sociedade russa favorecerão uma crescente diferenciação interna dentro da própria classe trabalhadora que preparará o terreno para o que Trotsky chamará de “bonapartismo burocrático” do estalinismo.
Poderíamos afirmar que a terceira dimensão do estudo do estalinismo é a internacional. Pouca ênfase tem sido dada à enorme responsabilidade do reformismo em frear, se não esmagar, as tentativas de estender a revolução social aos países desenvolvidos, em particular à Europa Central e especialmente para a Alemanha, e suas conseqüentes repercussões no esgotamento material e político da URSS. Sem dúvida, a derrota do Outubro alemão em 1923 marcou um ponto de inflexão, desmoralizou enormemente e abalou as expectativas da classe trabalhadora russa, o que em grande medida marcará o enfraquecimento da base social para a qual se dirigia a Oposição de Esquerda na URSS. No final dos anos 1920 e início dos anos 1930, a compreensão do papel híbrido e instável que a União Soviética desempenhará na política internacional e a conexão entre as políticas interna e a política externa da burocracia soviética e seu controle sobre o funcionamento do movimento comunista terão um papel importante na análise de Trotsky.
As políticas conservadoras em relação ao campesinato rico e aos novos ricos da NEP no plano interno serão frequentemente acompanhadas de um obstrucionismo, quando não de um bloqueio, de potencialidades revolucionárias no exterior (greve geral britânica de 1926 ou esmagamento do movimento comunista em 1926 na China devido a sua subordinação ao Kuomintang em 1927), assim como o voluntarismo faraônico de coletivização forçada e industrialização acelerada serão acompanhados por uma guinada ultraesquerdista e sectária (cujo expoente máximo foi a conhecida política do “social-fascismo” em relação à social-democracia, em particular na Alemanha, com resultados conhecidos) … e, em face da ameaça de Hitler, uma nova virada diplomática de 180 graus para uma aliança com a França e a Inglaterra no âmbito dos governos da Frente Popular (sob o custo de sacrificar revoluções em andamento —Espanha, 1936-37— ou em gestação —França, julho-setembro 36—) e o frenesi de julgamentos farsescos e o terror contrarrevolucionário na URSS… Dinâmicas que sem dúvida continuarão após a morte de Trotsky e serão acentuadas durante a divisão do mundo de Yalta com uma verdadeira apoteose da razão de Estado estalinista- processos revolucionários abertamente sabotados na China, Grécia e Iugoslávia ( a subsequente ruptura com o titismo e o maoísmo tem suas raízes nesses eventos) … e impondo a dinâmica de unidade nacional com a burguesia na França e na Itália.
A explicação de Trotsky é que o papel conservador da burocracia soviética na política internacional expressava um equilíbrio instável no qual, por um lado, ela buscava preservar seu monopólio do poder político na URSS – baseado em seus privilégios materiais — às custas da classe trabalhadora soviética, impedindo que outras revoluções a deslocassem, sem, entretanto, perder sua influência sobre o movimento operário internacional. Por outro lado, a burocracia staliniana, que devia seu poder em parte à expropriação da burguesia, mas sobretudo ao bloqueio da transição para o socialismo iniciada em 1917, não poderia perpetuar seus privilégios de origem política e se tornar uma nova classe social sem restaurar o capitalismo, nem poderia ignorar completamente o destino do movimento operário internacional, a fonte de enorme poder diplomático e prestígio político. Conseqüentemente, dirá Trotsky, o destino da URSS e da burocracia no poder depende do resultado da luta de classes em nível internacional: qualquer avanço da revolução mundial a desestabilizará e permitirá uma ascensão dos trabalhadores na URSS (“revolução política” será a fórmula que ele usará). Qualquer regressão irá reforçar o imperialismo, despolitizar o proletariado soviético, contribuir para a cristalização e a autonomização da casta burocrática, mas não será totalmente transformada em uma nova classe proprietária sem uma restauração do capitalismo e o consequente retorno à propriedade privada dos meios de produção, hipótese que Trotsky não deixou de contemplar desde o início e que se concretizará de fato a partir de 1990.
A aposta de Trotsky (que em alguns aspectos implicava uma autocrítica implícita e mesmo explícita de sua política no poder entre 1919 e 1921) será uma industrialização progressiva, a restauração da democracia soviética, multipartidarismo, plena liberdade de expressão, organização e crítica; a autonomia dos sindicatos em relação ao Estado e uma política de apoio à revolução a nível internacional no quadro da luta pela derrubada da ditadura policial estalinista. O fato de seus seguidores (Broué conta até 30.000 militantes na URSS) terem sido derrotados e em sua maioria fisicamente exterminados não significa que eles não estivessem certos. Seu combate, e o holocausto que eles sabiam que se deparariam nos campos, foi em nome do futuro da revolução mundial e para evitar o amálgama entre o ideal comunista de uma nova vida em um mundo justo e habitável e catástrofe política e moral do estalinismo. Seu sacrifício não foi em vão. Porque eles eram, nós somos.
O último combate de Trotsky
A conclusão lógica das análises de Trotsky será a necessidade de transformá-las em projeto político, de converter o programa da democracia socialista em militância e organização. Após longos anos de luta de idéias para mudar a orientação da Internacional Comunista, com a catástrofe alemã de abril de 1933, a Oposição de Esquerda Internacional concluiu que a Internacional Comunista sobreviveria e que uma nova internacional deveria ser construída em face do perigo de colapso total do movimento da classe trabalhadora, em geral, e do comunista, em particular. As ideias não viviam nos livros, mas sim na intervenção coletiva sobre a realidade. Eles sabiam que se a revolução não se propagasse aos principais países capitalistas e a democracia soviética não fosse restaurada na URSS, mais cedo ou mais tarde, o então todo-poderoso “socialismo em só um país” levaria à restauração capitalista.
O marxismo revolucionário clássico da Quarta Internacional após a morte de Trotsky, perseguido, caluniado e fragmentado, será condenado a uma tortuosa travessia do deserto às margens do movimento operário até a brecha do impacto internacional de 68 e o retorno das esperanças revolucionárias no Vietnã, Praga, México ou Paris permitiram que ele emergisse novamente das catacumbas
Ao contrário das anteriores, desenvolvidas graças às vitórias da esquerda, a Quarta Internacional foi fundada em um contexto catastrófico: a consolidação do estalinismo e a chegada de Hitler ao poder. A compreensão de ambos os fenômenos e a defesa de um programa realista de ação que poderia tê-los derrotado é sua razão de ser. Esses eventos traumatizaram grupos inteiros de trabalhadores em todo o mundo e ainda pesam muito até hoje. A ideia de que o fascismo era “irresistível”; que a revolução é um salto no vazio que leva à ditadura; que não há democracia fora do capitalismo; que é preciso moderação e consenso nas reivindicações sociais para não “provocar” a direita… são preconceitos difundidos entre as maiorias populares que votam na esquerda, mesmo entre setores militantes. No entanto, embora seja verdade que Trotsky subestimou a profundidade das derrotas e o ingrediente consensual ligado ao impulso desenvolvimentista e nacionalista do apogeu estalinista, ele partiu da hipótese de que uma nova guerra mundial poderia levar ao colapso do estalinismo (talvez em uma analogia um tanto forçada com o caso da Guerra Franco-Prussiana de 1870, a queda do Bonapartismo e da Comuna de Paris) e um relançamento da revolução em várias áreas do mundo.
Nesse contexto, quando a força motriz da Revolução de Outubro ainda operava nas camadas populares, uma pequena organização com uma posição coerente poderia se tornar um instrumento revolucionário útil, da maneira que as conferências de Zimmerwald e Kienthal constituíram o embrião da futura Internacional Comunista antes da capitulação da Social-Democracia em 1914. Sem dúvida, a ordem de Stalin de liquidar o extraordinário historiador e o único grande protagonista vivo de Outubro explica que as esperanças que orientavam este último coincidiam em grande parte com os temores obsessivos do primeiro. Como sabemos, certamente o resultado da guerra mundial fortalecerá o estalinismo e permitirá que ele crie e proteja as “democracias populares” desde cima na Europa Oriental… mas não é menos verdade que enfrentará, em maior ou menor medida, todas as revoluções genuínas subsequentes, inaugurando a longa “crise do movimento comunista”. O marxismo revolucionário clássico da Quarta Internacional após a morte de Trotsky, perseguido, caluniado e fragmentado, será condenado a uma tortuosa travessia do deserto às margens do movimento operário até a brecha do impacto internacional de 68 e o retorno das esperanças revolucionárias no Vietnã, Praga, México ou Paris permitiram que ele emergisse novamente das catacumbas (Anderson).
Construindo a contracorrente diante do apocalipse
Dissemos acima que o jovem Trotsky focalizará sua atenção nas dinâmicas espontâneas de auto-organização, depois pensará em políticas unitárias e nos últimos anos de sua vida enriquecerá sua concepção do papel e das modalidades de construção da organização revolucionária. No período entre a ruptura definitiva com a Internacional Comunista estalinizada e seu assassinato em 1940, ele proporá até três hipóteses de construção partidária intimamente ligadas à dinâmica geral e às diferenciações reais do movimento operário em cada país. Numa primeira fase, procurará dialogar com todas as correntes resultantes das diferenciações e rupturas produzidas pela estalinização dos partidos comunistas e a radicalização das formações social-democratas de esquerda ou “centristas” – ou seja, organizações em evolução mas sem uma perspectiva estratégica clara e que, por consequência, oscilam entre postulados revolucionários e reformistas.
Aqui estão os debates com o chamado Bureau de Londres e com as correntes que convergirão no POUM, o principal partido comunista independente da época. A segunda hipótese está relacionada à reação de radicalização anticapitalista vivida por camadas significativas da social-democracia tradicional – particularmente entre os jovens – após o choque causado pela vitória de Hitler na Alemanha. Aqui Trotsky propõe a incorporação à social-democracia mantendo uma identidade pública para acompanhar a evolução revolucionária dessas correntes. Isso é conhecido como o “giro francês”. Infelizmente, apesar de avanços importantes em alguns países, esse potencial foi, em grande medida, recuperado e desviado pelo estalinismo no quadro das frentes populares – um exemplo espetacular disso será a evolução da Juventude Socialista durante a Segunda República Espanhola (Broué). A terceira hipótese era a construção, em países sem tradição de representação política independente da classe trabalhadora, de partidos amplos e pluralistas apoiados na força sindical. Alguns de seus últimos escritos sobre os Estados Unidos seguem essas linhas. Certamente, o mínimo que se pode dizer é que suas propostas se basearam em dinâmicas reais em andamento e não em hipóteses incertas e que seu compromisso com a construção de organizações revolucionárias sempre esteve relacionado às grandes tarefas de desenvolvimento do movimento operário como um todo. Nada poderia estar mais longe das interpretações autoproclamatórias e autorreferenciais que tanto têm prejudicado e dilacerado nosso movimento.
É verdade que o brilhantismo de muitas das propostas de Trotsky nem sempre foi acompanhado pelos melhores métodos de liderança da Quarta Internacional e, às vezes, seu estilo categórico e mesmo antipático não ajudou a construir o melhor dos climas de confiança e fraternidade. No entanto, também é verdade que a sua extraordinária lucidez quanto ao desenrolar dos acontecimentos, a tragédia pessoal em que esteve imerso no “planeta sem visto”, presenciando a liquidação de familiares, camaradas e amigos, a acumulação de derrotas e a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo, por um lado, e a terrível desproporção entre tarefas e recursos humanos e materiais disponíveis, por outro, tornaram inevitável a exasperação e a violência de certos debates.
Do pão às rosas: as reivindicações transitórias
instrumentos de propaganda e agitação capazes de se conectarem com o nível real de combatividade e consciência das maiorias populares, de relacionar as demandas mais imediatas e sentidas pela classe trabalhadora com reivindicações incompatíveis com o funcionamento normal do capitalismo e que questionem seus fundamentos na prática.
Dissemos na seção anterior que Trotsky, embora afirmasse a especificidade da construção partidária como tarefa, sempre relacionou suas modalidades aos objetivos gerais do movimento da classe trabalhadora em cada fase. Neste contexto, o desenvolvimento da abordagem de transição no manifesto de fundação da Quarta Internacional terá um papel fundamental até hoje. Consiste em pensar as palavras de ordem a serem desenvolvidas não como um fetiche mágico com potencial intrínseco, mas como instrumentos de propaganda e agitação capazes de se conectarem com o nível real de combatividade e consciência das maiorias populares, de relacionar as demandas mais imediatas e sentidas pela classe trabalhadora com reivindicações incompatíveis com o funcionamento normal do capitalismo e que questionem seus fundamentos na prática. Em outras palavras, as demandas transitórias partem da defesa das necessidades básicas das massas e procuram conduzi-las, graças às suas vivências cotidianas de luta, à conclusão da necessidade da revolução socialista.
Sem dúvida, no período atual, demandas como água gratuita e suprimentos básicos, a proibição de despejos e demissões em empresas com benefícios, a nacionalização dos setores estratégicos de energia, transporte e financeiro, a reconversão ecológica da indústria, a expansão da saúde e da educação públicas e a imediata expropriação da máfia farmacêutica que se beneficia da COVID 19 poderiam desempenhar esse papel transitório e contribuir para a generalização da consciência anticapitalista em todo o mundo.
Mudar a vida, transformar a sociedade
Não podemos concluir essas notas sem algumas apontamentos sobre a reflexão de Trotsky acerca da relação entre mudança política, transformação social, vida cotidiana e o lugar da cultura e da arte. Certamente Davidovich Bronstein seguiu claramente o lema de Rimbaud que abre esta última seção, bem como aquele que se tornaria famoso no movimento feminista, “o pessoal é político”. Na verdade, Trotsky, sem dúvida o melhor escritor da tradição marxista (não em vão seu primeiro pseudônimo foi “A Caneta”), além de ser um teórico marxista, historiador da Revolução Russa e biógrafo de Lenin e Stalin (algo que, pelo visto, precipitou seu assassinato), foi um grande pensador da cultura e da vida cotidiana e um extraordinário crítico literário (acho que a coleção de escritos em Literatura e Revolução é verdadeiramente fascinante).
Além disso, sua atenção às opressões específicas mostra que sua concepção de revolução permanente também incorporou uma dimensão de revolução político-cultural. Ele apoiará com Lenin o trabalho feminista no Partido Bolchevique e nos primórdios da URSS, compreenderá a dimensão estratégica da emancipação das mulheres na construção de uma sociedade sem classes, focando sua atenção em aspectos fundamentais até hoje, como como a socialização do trabalho reprodutivo e o combate à violência e ao autoritarismo na instituição familiar. Ele vai entender e estudar a opressão de povos racializados (como a opressão aos afroamericanos, de triste atualidade nos EUA), a discriminação religiosa (a questão judaica, sempre rejeitando as tentações separatistas e sionistas) e as opressões nacionais (ele tem escritos magníficos sobre a Catalunha). Ou seja, ele fugia do simplismo obreirista e entendia que nem todas as injustiças, ontem e hoje, se reduzem à exploração capitalista, abordando as profundas raízes do racismo, do machismo, da opressão nacional ou da perseguição religiosa. Eu modestamente acredito que sua abordagem destaca a densidade de sua concepção do socialismo como uma nova civilização, como o início de uma verdadeira história humana.
Como crítico cultural participará de duas grandes polêmicas. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao debate sobre a cultura proletária na Rússia Soviética na década de 1920. Ele lembrará da contradição de desenvolver uma cultura da classe trabalhadora de costas à cultura clássica, quando a tarefa do momento era lançar as bases de uma cultura socialista que superaria as limitações sociais e antropológicas da exploração de classe. Nesse sentido, Trotsky (como já fez no que diz respeito ao debate militar) alertará contra a tentação populista de construir uma nova cultura baseada no mero voluntarismo, ignorando marcos culturais, científicos e técnicos anteriores. Afirmará sem ambigüidade a impossibilidade de construir uma cultura socialista verdadeiramente superior sem antes assimilar a cultura clássica. Ligada a esta está a outra grande polêmica, a defesa absoluta da liberdade como condição sine qua non para o desenvolvimento da arte e da cultura. Trotsky, um grande conhecedor da literatura e dapintura realista francesa do século 19 (suas visitas ao Prado durante sua estada em Madrid ou sua leitura altiva dos romances de Zola são conhecidas como uma demonstração de desprezo pelos ataques sofridos durante as sessões do bureau político após a morte de Lenin), atacou frontalmente o chamado “realismo socialista”, uma espécie de vulgata de funcionários públicos que limitava a arte à mera função de propaganda exaltando a obra do “pai dos povos” no país com maior taxa de suicídio de intelectuais e artistas de sua época.
Menção especial merece a iniciativa lançada com o líder surrealista André Breton de um Manifesto por uma arte revolucionária independente, em que é conhecida a anedota de que Breton defendeu um esboço inicial proclamando “toda liberdade na arte exceto para atacar a revolução”, ao que vai se opor Trotsky, afirmando a liberdade absoluta da arte sem poréns ou condições. Acho que esta afirmação muito libertária e necessária se conecta muito bem com uma das últimas frases pronunciadas pelo “O Velho” antes de morrer e que resume perfeitamente nossas tarefas hoje: “A vida é bela. Que as gerações futuras a libertem de todo o mal, da opressão e da violência e a desfrutem plenamente ”. Que assim seja.
*Andreu Coll é militante da organização Anticapitalistas do Estado Espanhol.
Texto original publicado em espanhol no VientoSur.
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