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Leon Trotsky, 81 anos depois de seu assassinato

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Hoje recordamos Leon Trotsky, oitenta e um anos depois de seu assassinato.

Morreu defendendo uma bandeira sem manchas para os que viemos depois.

Em 1930 saiu a público, no Brasil, o primeiro número do jornal A Luta de classes editado pelo Grupo Comunista Lênin no Brasil. Um nome discreto para um coletivo com personalidades extraordinárias. Desde então o fio de continuidade do trotskismo não se rompeu em nosso país, embora através de organizações muito diferentes umas das outras.

É verdade que os trotskistas nunca foram, em escala internacional, mais numerosos que umas poucas dezenas de milhares. Pareciam, no entanto, muito mais ameaçadores e influentes do que seu número poderia sugerir. Eles estiveram na linha de frente dos comunistas na China, com Chen Duxiu, contra a repressão de Chiang-Kai Chek na China em 1927, quando em muitos países já começavam a ser expulsos dos PC’s fiéis a Moscou.

Combateram o nazismo na Alemanha com a mesma coragem com que afrontavam o estalinismo na União Soviética. Lutaram contra o fascismo na guerra civil espanhola, de armas nas mãos, sem por isso ceder apoio político ao Governo de Frente Popular. Foram presos aos milhares durante os processos de Moscou, mas não hesitaram em se oferecer como voluntários para lutar no Exército Vermelho, quando Hitler invadiu a União Soviética em 1941.

Estiveram nas trincheiras de Saigon no Vietnã, liderados por Ta Thu Tao, ao final da Segunda Guerra Mundial, lutando contra o imperialismo francês, mesmo sendo muito perseguidos, e à frente da greve da Renault na França, lutando contra o governo de união nacional encabeçado por De Gaulle, que contava com a participação de ministros do PC.

Ajudaram a fazer marxista o vocabulário do movimento dos operários mineiros da Bolívia na revolução de 1952. Foram presos pelo macartismo nos EUA nos anos cinquenta, ao mesmo tempo em que resistiam nos campos de trabalho forçado de Vorkuta no Ártico.

Lutaram sem quartel contra o imperialismo na América Latina, sem por isso cederem às pressões nacionalistas-desenvolvimentistas que se expressaram através do peronismo na Argentina, do getulismo no Brasil e do aprismo no Peru.

Estiveram na primeira linha da solidariedade com a Argélia, mas não calaram diante da repressão nas ruas de Budapeste na Hungria em 1956. Fizeram de Cuba a sua bandeira, mas não traíram a esperança dos que cantavam a Internacional nas ruas de Praga quando os tanques enviados por Moscou invadiram a Tchecoslováquia em 1968.

A história encontrou os trotskistas nas barricadas do Quartier Latin de Paris em 1968 e, nos anos setenta em Lisboa na revolução portuguesa, na resistência ao franquismo na Espanha, e na primeira linha da luta para derrubar a ditadura militar na Grécia.

Mas sangue trotskista foi derramado às centenas, na luta contra as ditaduras latino-americanas enfrentando a mais feroz repressão no estádio nacional de Santiago do Chile, e nas prisões argentinas, uruguaias e brasileiras.

Eles estiveram na guerra contra Somoza na Nicarágua, na resistência ao apartheid na África do Sul, e nas greves de Gdansk na Polônia. Resistiram à restauração capitalista na ex-URSS no início dos anos noventa, e ajudaram a construir um novo internacionalismo impulsionando a campanha contra a invasão do Iraque. Sua integridade foi posta à prova, impiedosamente, em todas as latitudes e longitudes.

Os trotskistas divulgaram o marxismo em dezenas de idiomas. Estudaram e escreveram muito, mas não se deixaram reduzir a um círculo literário. Interviram nos sindicatos, mas não se embriagaram com as rotinas sindicalistas. Uniram seu destino ao movimento do proletariado, mas não diminuíram sua militância ao obreirismo. Espalharam sua mensagem à escala internacional.

Eles viajaram por toda parte, sacrificaram suas famílias, cruzaram continentes, mudaram de países, perderam empregos, falsificaram passaportes, trocaram de identidades, proletarizaram-se nas grandes indústrias, organizaram sindicatos, escreveram jornais, agitaram greves, impulsionaram a unificação das lutas, distribuíram boletins, fizeram campanhas, recolheram fundos, lideraram rebeliões, pegaram em armas, foram presos, e muitos pagaram com a vida a força de seu compromisso.

Contribuíram para que um marxismo aberto fosse útil para a compreensão das mudanças do mundo, escrevendo livros de teoria no campo da economia, da história, da sociologia, da geografia, do direito da política e das relações internacionais. Mas quadros educados sob sua influência estiveram presentes em muitos outros campos da ciência e nas artes em geral.

Mantiveram o fio de continuidade do programa marxista revolucionário e a independência da Quarta Internacional, ainda que muito fragmentados. Defender o marxismo sempre significou defender o programa da luta contra a propriedade privada, mas não é possível defender um programa sem construir uma organização, um coletivo disciplinado em torno a um projeto estratégico. E a construção de um movimento político exige, em primeiro lugar, a disposição de preservar a qualquer preço a sua independência das pressões sociais hostis aos interesses do proletariado.

Essa independência deve ser política e ideológica, mas, também, material. Destacaram-se pelo seu engajamento desinteressado e sua entrega despojada, uma prova de sua força moral. Erraram muito, também, quando os desafios táticos foram ficando mais complexos, mas não sacrificaram princípios. Viveram a mais grandiosa das aventuras contemporâneas: a luta pela revolução mundial.

Mas, a história lhes foi cruel e ingrata. O internacionalismo tinha sido derrotado, e os seus defensores tiveram o destino dos que não temem marchar contra a corrente: um terrível isolamento. Depois que a social democracia e o estalinismo se transformaram nas correntes mais influentes do movimento operário durante a reconstrução capitalista do chamado boom do pós-guerra, a divisão que se instalou no movimento socialista foi fatal para a causa internacionalista.

As lutas no Leste, no Ocidente e no Sul do planeta se desarticularam, e deram as costas umas para as outras. O internacionalismo se subordinou aos interesses diplomáticos de coexistência pacífica de Moscou, Belgrado, Tirana, e Pequim, e se transfigurou em nacionalismo dos Estados autoproclamados socialistas.

No Ocidente, a maioria dos que lutavam contra o capitalismo deram as costas para os que lutavam contra as ditaduras burocráticas na URSS e no Leste Europeu. Poucos foram os que, na esquerda, se levantaram em Paris, Roma ou Londres para denunciar a repressão na Hungria em 1956, ou mesmo em Praga em 1968. No Leste e na URSS, depois da destruição da Primavera de Praga, e pior ainda depois da derrota da revolução polonesa de 1981, diminuía a influência do marxismo entre os que resistiam às ditaduras burocráticas.

Os trotskistas ficaram, politicamente, sozinhos. Enquanto Internacional, a Quarta deixou de existir nos anos cinquenta. Prisioneiros na marginalidade dos grandes fluxos de opinião do movimento socialista, e submetidos às terríveis pressões dos grandes aparelhos socialdemocratas, nacionalistas e, sobretudo, dos partidos comunistas, sofreram as sequelas de uma corrente que soube preservar sua independência, porém, não superou sua condição muito minoritária.

Dividiram-se, dramaticamente, em várias tendências, cedendo às pressões políticas nacionais mais significativas em cada país. O “nacional-trotskismo”, ou seja, a ideologização da possibilidade de construção de uma organização revolucionária dentro de fronteiras nacionais, mesmo quando um “partido-mãe” estava associado a pequenos círculos que mimetizavam sua experiência – num mundo em que a contrarrevolução foi se globalizando, foi, em maior ou menor medida, o destino trágico das organizações trotskistas mais fortes.

Descobriram-se na mais severa solidão revolucionária.

Surgiram reflexos inflexíveis, impulsos sectários, mentalidades rígidas próprias de uma fraternidade de abnegados acossados. Ao longo dos últimos trinta anos, depois da restauração capitalista na URSS, não permaneceram incólumes às vicissitudes da imensa confusão ideológica e adaptação política que atingiu o conjunto da esquerda.

Não obstante, deixaram duas heranças de valor incalculável.

Os trotskistas foram politicamente derrotados, mas intelectualmente vitoriosos.

A obra de Leon Trotsky e dos que desenvolveram o marxismo a partir de suas premissas foi a que melhor respondeu aos três maiores desafios teóricos colocados pelo século XX: uma interpretação sobre a natureza da sociedade soviética depois dos anos trinta, uma interpretação para as revoluções sociais dos países coloniais e semicoloniais, e uma interpretação para o processo de restauração do capitalismo.

A segunda herança foi a inspiração militante: marcharam contra a corrente defendendo uma bandeira sem manchas. Deixaram um exemplo pela sua coragem, perseverança e integridade moral. Defenderam, quase sempre sozinhos, a tradição internacionalista do marxismo quando ela foi entregue nas suas mãos. Honraram a causa mais elevada do nosso tempo. Merecem ser lembrados.

Texto publicado no site A Terra é Redonda.

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