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MUNDO

O que está queimando o planeta é o capitalismo, não as pessoas comuns

Chris Saltmarsh* | Tradução: Wilma Ôlmo Correa
Reprodução/Jacobin

Incêndios florestais assolaram a região mediterrânea da Turquia em julho e agosto de 2021. (Felton Davis / Flickr)

Texto publicado originalmente em inglês na Jacobin Magazine.

Nem todos os humanos são igualmente culpados pelo caos climático descrito no relatório do IPCC de segunda-feira. Identificar os ricos e poderosos como os principais culpados é a chave para impedir mais destruição.

A cada sete ou oito anos, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publica seu relatório mais recente revisando o que há de cientificamente disponível para avaliar o estado das mudanças climáticas. O mais recente, o Sexto Relatório de Avaliação, foi publicado esta semana em meio a um verão de calor extremo [no hemisfério Norte] e inundações devastadoras.

Esses relatórios parecem momentos marcantes na história das mudanças climáticas. Enquanto políticos, corporações e ativistas fazem pouco ou nenhum progresso argumentando sem parar, os cientistas cortam esse papo furado com uma imagem sóbria e objetiva de onde estamos e o que mais há ainda por fazer.

O que há de novo?

Então, que informações adicionais o último relatório do IPCC nos dá para ajudar na luta contra as mudanças climáticas? Em um nível fundamental, não muitas. As emissões ainda estão aumentando e o planeta ainda está aquecendo. Ainda precisamos descarbonizar a economia com urgência urgentíssima.

As manchetes do Sexto Relatório de Avaliação tendem a se concentrar na meta amplamente alardeada de limitar os aumentos de temperatura média global a 1,5°C. Essa meta foi a pedra angular do Acordo de Paris e é defendida pelos especialistas em clima como o limite além do qual o aquecimento se torna inseguro. Na verdade, essa meta é grosseira: já atingimos 1,1 ou 1,2°C de aquecimento, e nosso clima atual dificilmente pode ser descrito como seguro.

Independentemente disso, a comunidade internacional manteve a coerência em torno de 1,5°C como uma ambição coletiva, para melhor ou para pior. Uma das manchetes mais marcantes do relatório do IPCC foi que, em todos os cenários modelados, atingiremos esse nível em 2040. Esse ponto virá muito mais cedo (cerca de uma década a partir de agora) se não começarmos a reduzir as emissões rapidamente.

A 1,5°C, veremos elevações do nível do mar entre dois e três metros. Ocorrências de calor extremo serão cerca de quatro vezes mais prováveis. Chuvas fortes serão cerca de 10% mais úmidas e ocorrerão em uma probabilidade 1,5 vezes maior. A questão, então portanto é quando.

Este relatório é tão severo quanto qualquer outro, mas não nos dá nenhuma nova razão para acreditar que os processos internacionais estabelecidos e os governos atuais estejam preparados para coordenar a mudança econômica global de que precisamos com urgência.

Se há otimismo no relatório do IPCC, é que se globalmente alcançarmos um equilíbrio entre os gases de efeito estufa lançados na atmosfera e aqueles que são retirados (carbono-neutro) até 2050, há uma boa chance de estabilização das temperaturas em 1,5°C. Naturalmente, a notícia indesejável é que este ainda seria um clima muito mais perigoso do que o de hoje – e que o cenário otimista não é certamente o mais provável. O modelo de um cenário de emissões mais altas nos levaria a 1,9°C em 2040 (nesse ponto eu terei 46 anos de idade), 3°C em 2060 (neste ponto, é improvável que eu já esteja aposentado) e 5,7°C em 2100 (nesse ponto eu poderia estar com 104 anos de idade, se o calor extremo não me matar primeiro).

Esses números sublinham o que minha geração está enfrentando no percurso de nossas vidas se não mudarmos o rumo, embora não seja nada que já não soubéssemos. António Guterres, o secretário-geral das Nações Unidas, respondeu ao relatório apontando para a indústria dos combustíveis fósseis: “Este relatório deve soar como uma sentença de morte para o carvão e os combustíveis fósseis, antes que destruam o nosso planeta”.

Isso se tornou uma verdade evidente para todos os envolvidos e preocupados com as mudanças climáticas, mas simplesmente fazer a declaração já não é mais suficiente. Menos de três meses antes da atrasada conferência COP26 em Glasgow, podemos realmente dizer que esperamos que esta seja diferente? As duas grandes conferências anteriores não produziram absolutamente nada: a COP15 em Copenhagen em 2009, e a COP21 em 2015 (o Acordo de Paris), apenas comprometeram as nações com metas voluntárias de redução de emissões que garantissem cerca de 2,9°C de aquecimento, caso fossem alcançadas. Glasgow parece ser nada mais, nada menos que um fracasso.

Este relatório é tão severo quanto qualquer outro, mas não nos dá nenhuma nova razão para acreditar que os processos internacionais estabelecidos e os governos atuais estejam preparados para coordenar a mudança econômica global de que precisamos com urgência. John Kerry, o enviado presidencial especial dos Estados Unidos para o clima, diz que Glasgow tem que ser um “ponto de inflexão nesta crise”. Já ouvimos isso antes. O único ponto de inflexão em que podemos confiar agora é o afastamento de uma economia política capitalista, que produziu e consolidou esta crise, e em direção a uma nova economia baseada na equidade, justiça e prosperidade compartilhada.

Culpe o Capitalismo, Não a “Humanidade”

A ciência do Sexto Relatório de Avaliação não pode ser contestada, e a potência de suas implicações nos dá um ímpeto para questionar a adequação de nosso atual sistema político e econômico. No entanto, o relatório não chega a fazer essas perguntas por si mesmo. Na verdade, ao longo do relatório, podemos ver uma linguagem que funciona para defender e manter o domínio da classe dominante.

A primeira declaração no “Resumo para Formuladores de Políticas” afirma que a mudança climática é “inequivocamente causada por atividades humanas”. A frase “mudança climática induzida pelo homem” aparece ao longo do relatório. A certeza da responsabilidade da humanidade pela crise climática, portanto, tornou-se uma manchete de destaque nas reportagens da mídia, incluindo matérias publicadas pela BBC e pelo The Guardian.

Ao contrário das avaliações do relatório do IPPC sobre os prováveis graus de aquecimento, previsão de calor extremo e previsão do aumento do nível do mar, a sugestão de que a humanidade em geral é a culpada não é uma afirmação científica. É ideológica. Nesse caso, a sugestão isenta a classe dominante da culpa.

É improvável que essa seja a intenção explícita dos cientistas do IPCC. A tendência popular de falar sobre as mudanças climáticas causadas pelo homem é certamente uma resposta ao bem financiado negacionismo do clima. No entanto, a negação do clima não é mais o principal bloqueio – em vez disso, o principal bloqueio é o atraso e a inação da classe capitalista. 

São os capitalistas que lucram com a crise climática enquanto os mais pobres sofrem. É o sistema capitalista que coloca o lucro acima de tudo que bloqueia a descarbonização enquanto o mundo queima. Claro, é tecnicamente correto dizer que a mudança climática é induzida pelo homem. Pelo que eu sei, a classe capitalista é toda humana (a menos que David Icke [1] saiba algo que nós não sabemos). Mas isso não significa que todos os humanos tenham desempenhado um papel na produção da crise. 

Consumimos os produtos intensivos em carbono do capitalismo, mas não temos poder de decisão, não temos direito à voz quando se trata da decisão sobre as condições fundamentais de produção que estão levando nosso clima ao colapso.

É verdade que alguns de nós se beneficiam materialmente dos frutos do capitalismo fóssil. É inevitável que a extração de combustível fóssil tenha sido a base da civilização moderna e proporcionado melhorias para muitas vidas. Mas a maioria das pessoas também é explorada, alienada e marginalizada dentro desse sistema. Consumimos os produtos intensivos em carbono do capitalismo, mas não temos poder de decisão, não temos direito à voz quando se trata da decisão sobre as condições fundamentais de produção que estão levando nosso clima ao colapso.

O trabalhador de uma refinaria de petróleo não compartilha a culpa com o capitalista que os explora para lucrar com a produção de petróleo. As comunidades indígenas violentamente deslocadas de suas terras para abrir caminho para uma mina de carvão não compartilham a culpa com os governos que estão forçando esses projetos a seguirem adiante. Podemos também falar sobre mudança climática induzida por mamíferos e mudança climática induzida por terráqueos. Seria tão verdadeiro quanto, apenas em um nível ainda mais avançado de abstração dos verdadeiros culpados.

É claro que seria verdadeiro dizer que a mudança climática não é necessariamente exclusiva do modo de produção capitalista. Para se envolver brevemente em uma contra-história, certamente é verdade que qualquer civilização humana que tivesse descoberto os combustíveis fósseis os teria aproveitado e inadvertida e propositalmente teria colocado as engrenagens da mudança climática em movimento. O dolo único do capitalismo, porém, está em sua incapacidade de reverter a tendência. Já sabemos sobre as causas e efeitos da mudança climática por várias décadas, mas a prioridade do capitalismo em maximizar os lucros no curto prazo excluiu a necessidade de fazer a transição do nosso sistema de energia.

Não somos todos igualmente responsáveis pela degradação do clima. Nossos comportamentos individuais, mesmo considerados no coletivo, não podem impulsionar uma descarbonização rápida e justa sem uma transformação planejada da economia. Podemos escolher entrar em uma política climática misantrópica que coloca a humanidade em geral sob risco enquanto ofusca a verdadeira causa da crise – ou podemos abraçar uma visão humanista e socialista de justiça climática que conta uma história do potencial humano e da possibilidade de um mundo melhor, aproveitando ao máximo o clima que nos é inerente.

O Mundo em 1,5°C

Se 1.5°C de aquecimento é o melhor que podemos almejar, e se, como nos diz o Sexto Relatório de Avaliação, tantas mudanças no clima são agora inevitáveis e irreversíveis, então os atuais incêndios florestais na Grécia, Turquia e Argélia são apenas o início de um novo normal. Nesse contexto, precisaremos desbloquear as melhores características da humanidade, em vez de enfatizar as piores. Além de lutar contra cada fração de grau Celsius de aquecimento, devemos também aceitar a permanência de um clima ainda mais perigoso do que aquele em que vivemos atualmente. É aqui que os princípios de solidariedade e justiça se tornam tão cruciais.

Nossa missão principal é a de limitar o aquecimento através da descarbonização o mais rápida e equitativamente possível. Devemos também considerar como nos adaptamos a este novo clima. A Esquerda e o movimento climático devem exigir, e integrar em nossa própria plataforma política, um programa de adaptação justa às mudanças climáticas. Precisamos ver edifícios e infraestruturas resistentes e flexíveis, defesas contra enchentes, planos de evacuação, serviços de emergência bem financiados, seguro garantido pelo Estado para cobrir perdas e danos e políticas para aceitar e apoiar refugiados. Estes não podem ser o ponto final da nossa ambição política ou servir de pretexto para abandonar a luta pela descarbonização, mas devem levar em consideração qualquer visão de justiça em um mundo em 1.5°C.

Como o relatório do IPCC deixa claro, existem vários cenários de aquecimento nas próximas décadas. Em alguns desses cenários está implícito o fracasso dos governos e dos movimentos climáticos em reduzir as emissões na escala de tempo exigida. Claro, nossa ambição deve ser a de capturar o poder do Estado e usá-lo para transformar a economia e fazer justiça. Devemos também estar preparados para operar em cenários onde os políticos defendem o status quo e não descarbonizam, ou onde a descarbonização acontece em benefício dos ricos enquanto sacrifica os pobres e marginalizados. Nestes cenários de relativa derrota, devemos estar preparados para nos defender, construindo poder e solidariedade em nossas comunidades. Devemos estar preparados com resiliência coletiva para, quando o estado fracassar em fazer isso, sermos capazes de criar sistemas robustos de distribuição de alimentos, abrigo de emergência e resgate. 

É compreensível que momentos como esses, em que os relatórios do IPCC são publicados em meio a um clima extremo, implacável e devastador, induzam a um sentimento coletivo de desespero, ansiedade e impotência. Toda a minha vida profissional, na maioria dos cenários modelados do IPCC, acontecerá no contexto de um planeta em aquecimento. Devemos reconhecer e respeitar esses sentimentos, sem deixar que eles nos levem ao desespero ou à misantropia.

Apesar do que nos dizem a mídia, a classe dominante e até os cientistas, “nós” não temos culpa pela crise climática. Mas aqueles que são culpados não planejam fazer nada significativo sobre isso – então, de qualquer forma cabe a nós fazê-lo. Sabendo disso, podemos formar um movimento de massa militante e radical preparado para construir uma nova economia baseada na equidade, justiça e prosperidade compartilhada. Sabemos que teremos que viver com o legado do capitalismo fóssil de qualquer maneira, mas podemos ter certeza de que o relegaremos à história, remetendo-o ao esquecimento, aos livros de história.

 

*Chris Saltmarsh é cofundador do Labor for a Green New Deal (Laborismo por um Novo Acordo Verde).

NOTAS

[1] David Icke é um produtor de teorias da conspiração, de conteúdo antissemita (cujas origens remontam aos Protocolos dos Sábio de Sião, obra produzida em 1903 pelo regime czarista na Rússia, denunciando uma suposta conspiração judaica para dominar o mundo. Durante a atual pandemia, como não poderia deixar de ser, é um negacionista em relação a ela. Icke classifica as pessoas em tipos variados. Os “Illuminati”, por exemplo seriam seres superiores e dominadores.