França: nem Covid, nem Macron

*Texto de Léon Crémieux, originalmente publicado na página International Viewpoint e traduzido por Manuel Afonso, para a Semear o Futuro

A negligência do governo francês na área da saúde e os seus métodos autoritários estão causando crescente desconfiança e oposição frontal entre uma proporção cada vez maior da população. Isso materializa-se em grandes manifestações contra o passe de saúde e as ameaças que ele representa para os empregados e os mais precários. Contra o autoritarismo destes métodos, convém sublinhar a necessidade de uma generalização da vacinação e dos meios para a implementar, destacando os laços entre o capitalismo e esta pandemia – como infelizmente será provavelmente o caso com as do futuro. A situação exige uma política clara, baseada na emancipação da lógica dos interesses privados e do lucro ilimitado.

As manifestações desencadeadas pelos ditames relativos ao passe obrigatório de saúde e que denunciam os métodos de estado policial do presidente Macron e do ministro da educação Blanquer, a chantagem de demissão ou suspensão de salários, são justificadas. No entanto, os aspectos contraditórios dessas manifestações tornam obviamente necessário propor uma lógica global quanto às ações a serem tomadas contra a pandemia.

Isso requer duas prioridades complementares:

– Uma política de saúde pública e vacinação geral da população para combater a Covid 19 e protegê-la contra a doença. Uma política de saúde que não se proponha apenas a evitar hospitalizações e a saturação dos serviços de reanimação, mas uma política de Covid zero que visa erradicar a pandemia na França e no mundo (como tem sido praticamente o caso de outras pandemias). A partir daí, ligar esta política com a campanha de levantamento de patentes, enquanto os países da Europa e da América do Norte monopolizaram o grosso das doses, protegendo os grandes consórcios farmaceuticos e bloqueando o livre acesso às vacinas para outros continentes.

– Rejeição da política de Macron e do passe de saúde, de vacinação indiretamente obrigatória de forma hipócrita e culposa, para quem trabalha em cuidados, alunos do ensino médio e nos locais de lazer, com ameaça de suspensão do contrato de trabalho e demissão de funcionários. Uma política de criminalização que torna o controlo da saúde uma questão de ordem pública e que vira as costas a uma genuína política de vacinação e saúde pública, que deve chegar aos menos vacinados e, muitas vezes, em maior risco. Pior ainda, a política de passes de saúde e testes de PCR pagos cria uma dinâmica de evasão, levando os pacientes a esconder sua doença, outros a procurarem falsos passes de saúde, outros finalmente a cessar os testes ou tratamentos, inclusive para outras doenças.

Estas duas exigências são apresentadas como contraditórias tanto pelo governo quanto pelos antivacinas, como se os partidários da vacinação geral tivessem de apoiar o passe obrigatório de saúde, enquanto seus oponentes ignoram o imperativo da vacinação em nome da “liberdade individual”.

Devemos rejeitar este esquema binário e ser ao mesmo tempo a favor:

– de que os serviços de saúde pública e a proteção social organizem uma vacinação generalizada contra a Covid (incluindo dos mais novos);

– da rejeição dos métodos autoritários do governo que fortalecem o sistema de policiamento e segurança desenvolvido por Macron e servem como um substituto para uma campanha de vacinação organizada.

Não podemos ser vagos em nenhuma dessas posições. Devemos manejá-las, inclusive nas manifestações, ao mesmo tempo que tentamos dar uma dinâmica política progressista às atuais reações e mobilizações contra o passe de saúde e medidas governamentais, manifestações essas que continuarão nas próximas semanas (apesar do mês de agosto e da entrada em força do passe), recorrendo nomeadamente a apelos unitários contra as medidas do governo.

Para não cair em rodeios, temos de dizer claramente que somos a favor da implementação, através de uma campanha sistemática, da vacinação coletiva contra a Covid de toda a população (e certamente que esta campanha se estenda através de lembretes neste outono), a fim de tornar a contaminação o mais marginal possível. Isto pressupõe uma organização sistemática da vacinação (que hoje se baseia essencialmente numa abordagem individual, nomeadamente através da marcação de consultas via Internet no Doctolib), através de uma política activa dos serviços de saúde e segurança social, dirigida aos não-vacinados, às pessoas e às gerações que mais ficaram excluídas da vacinação, organizando campanhas, não através de culpabilização e de ameaças, mas da transparência, informação e convencimento necessários. Não é uma questão de policiamento ou chantagem no emprego ou na educação. Uma grande maioria da população é a favor da vacinação e o atraso da França, em comparação com a média da UE, no número de pessoas vacinadas deve-se mais à falta de organização e recursos do que à relutância da população. Não há necessidade de revisitar a história das vacilações do governo, que procurou esconder constantemente, por falsos pretextos, a ausência de máscaras, testes, vacinas e a organização da vacinação em massa. Por exemplo, apenas desde o início de abril que 35 grandes centros de vacinação foram abertos (anteriormente denunciados como “vacinódromos” pelo governo), desde 16 de abril que menores de 70 anos sem fator de comorbidade podem marcar uma consulta para serem vacinados (!!!) e desde 15 de junho que aqueles de 12-17 anos podem ser vacinados. Da mesma forma, lembramo-nos da insistência durante meses de que os jovens não correm risco, justificando a ausência de protocolos reais de saúde no ensino básico e médio. Ao longo dos meses, o próprio governo pairou complacentemente sobre a relutância em vacinar a população em geral, em vez de dizer claramente que se deveria organizar a vacinação global para combater o vírus.

Não somos agnósticos quanto ao lugar da vacinação nas políticas de saúde. Não é uma escolha individual, uma opinião deixada à liberdade e escolha de cada indivíduo. É um problema de saúde pública. Sempre foi assim (na ausência de contra-indicação médica para a vacinação) e as vacinações infantis só receberam recusas marginais (mesmo a introdução de 11 vacinas obrigatórias há quatro anos que foi feita de forma igualmente autoritária com total complacência para os consórcios farmacêuticos e sem qualquer democracia sobre a utilidade de novas vacinas e o uso de adjuvantes). Mas, durante os 18 meses da pandemia de Covid, os tratamentos e vacinas, especialmente na França com os erros de Macron, alimentaram o ceticismo, as teorias da conspiração e o movimento antivacinas. Se estes extrapolam os círculos habituais, é porque as teorias da conspiração (muito presentes entre os trabalhadores, e mesmo nos nossos círculos sindicais) foram reforçadas por todos os erros de comunicação governamental, pelas declarações e decisões contraditórias do presidente Macron, do primeiro-ministro Castex e companhia. Mas é também o efeito bumerangue da falta de transparência e de associação das pessoas em todos os aspectos em relação à Covid, da busca de lucro dos consórcios farmacêuticos, muitas vezes à custa da saúde dos pacientes, dos escândalos criados pelo marketing ou do uso indevido de medicamentos diversos (como Mediator, Levothyrox nova fórmula ou Distilbene), e da falta de ação do poder público nesses casos. O mesmo se aplica ao escândalo do clordecona nas Índias Ocidentais, que alimentou a relutância de parte da população em se vacinar. Tudo isso corroeu amplamente a credibilidade das comunicações governamentais na área médica, relacionadas com a falta de transparência e a uma política verdadeiramente independente face aos fundos farmacêuticos. Por fim, a cacofonia da comunicação científica tem permitido que alguns canais e redes sociais como o CNews e o BFM criem uma névoa e uma falta de referenciais racionais para parte da população, sem que haja vozes ou informações aceites como sendo mais credíveis do que outras. Em geral, a perda de credibilidade das lideranças políticas, a desorganização e falta de recursos dos serviços de saúde e de segurança social, o seu crescente distanciamento físico da população, aliados à fragilidade de um movimento social e operário com voz audível, têm acentuado este fenômeno.

Portanto, é vital que uma voz clara e audível seja ouvida sobre as questões de saúde pública. Deve fazer a ligação entre as necessidades nesta área e a luta por uma sociedade baseada nos bens comuns, na gestão pública e transparente de toda a produção e serviços vitais para a população. Isto aplica-se igualmente aos campos da saúde, transporte e energia. Da mesma forma, a pandemia destaca as condições de vida das classes trabalhadoras, que concentram diversos fatores que agravam a vulnerabilidade ao vírus e doenças em geral (habitação, alimentação, condições de trabalho, violência doméstica). Essa vulnerabilidade é, de facto, consequência de um sistema económico e político. Todas estas questões estão interligadas e tornam ainda mais necessário que nos recusemos a culpar os explorados e oprimidos, que são responsabilizados por terem uma proteção vacinal mais fraca do que as classes dominantes ou ricas. Hoje, se as manifestações reúnem muitas pessoas hostis à ideia de serem vacinadas, com tentativas de hegemonização pelas forças antivacinas e da extrema-direita, também reúnem camadas, muitas vezes militantes, de pessoas já vacinadas ou que serão vacinadas, mas que rejeitam os ditames de Macron e lutam contra o governo e sua política autoritária.

É, sim, uma questão de saúde pública, de proteger toda a população contra este vírus. É uma questão coletiva que diz respeito a toda a sociedade, como a questão global da luta contra as epidemias mortais. Foi a descoberta da vacinação pelo médico inglês Jenner, no final do século XVIII, que possibilitou a erradicação da varíola. A poliomielite, a difteria, o sarampo, o tétano e a tuberculose deixaram de ser flagelos graças às vacinas. Sempre defendemos políticas de saúde e profilaxia organizadas para proteger a população. A vacinação infantil faz parte dessas políticas. Portanto, não compartilhamos a lógica dos antivacinas, estamos lutando contra ela e, pelo contrário, somos a favor de que toda a população do planeta tenha acesso rápido e gratuito às doses necessárias para se proteger, com, claro, controlo público e transparente dos produtos comercializados. No estado atual de conhecimento disponível, as vacinas contra a Covid 19 representam uma eficácia massiva real e não apresentam nenhum risco particular em comparação com outras vacinas. Claro, não devemos negar que existem possíveis efeitos colaterais leves ou mais graves, mas alheios aos números catastróficos anunciados nas redes sociais pelo movimento antivacinas, que destaca esses riscos para recusar vacinas – e alguns deles são contra a vacinação em termos absolutos. Polémicas idênticas existiram e existem em todas as outras vacinas, varíola, hepatite B, BCG, com campanhas de vacinação que encontraram problemas reais, limitados mas reais. Como é o caso de muitos medicamentos, procedimentos médicos ou do própria internamento por doenças nosocomiais. Isso reforça a necessidade de controlar e limitar esses efeitos colaterais,  de se ter um sistema de saúde público sólido e bem equipado, da socialização dos consórcios farmaceuticos, de uma farmacovigilância pública independente dos Big Pharma e assim por diante. Mas isso não nos deve fazer entrar no campo dos céticos face às vacinas. Além disso, todos os relatórios de epidemiologistas alertam (e já alertavam antes de 2020) que com a facilidade do transporte internacional de pessoas e bens, as consequências da urbanização, o desmatamento e as mudanças climáticas, e a situação de saúde e habitação das classes populares em muitos países, devemos esperar mais desastres de saúde, incluindo zoonoses1, como a Covid 19. Portanto, podemos também tentar ser claros e consistentes. Nisso, a luta contra as pandemias e a luta contra as mudanças climáticas e os males da globalização capitalista estão direta e sustentadamente ligados.

A hipocrisia do governo esconde a necessidade de uma genuína política de saúde pública, com os recursos necessários, e de vacinação geral, ao colocar a responsabilidade de deter a quarta vaga nos trabalhadores e jovens, e por isso está fazendo uma campanha de “emergência”, para derrubar as curvas, contra essas categorias da população. Mas, desde há meses, a situação vem exigindo não fiscalizações policiais, ameaças de multas, suspensões e demissões salariais, mas vacinação coletiva, no nosso país e no mundo, com uma campanha de saúde pública, principalmente entre as mais precárias: organizando visitas de pessoal de saúde e de serviço social a bairros populares e entre os mais idosos para levar informações e vacinas a quem tem menos acesso, fazendo uso do serviço de segurança social (com pessoal e recursos necessários) e garantindo de forma sustentável um sistema de saúde que proteja a população de novas epidemias, com camas e pessoal em hospitais e em todos os serviços de proteção social.

A questão da vacinação coletiva relaciona-se imediatamente com os males gerados ou agravados pelo sistema capitalista: a deterioração da cobertura hospitalar com a falta de camas e de pessoal de saúde, a falta de pessoal de serviço social nas autarquias, a situação precária dos establecimentos de saúde, metade dos é privada, a retenção da produção farmaceutica no setor privado. Em zonas como Seine-Saint-Denis, a escassez de serviços sociais é evidente na ausência de recursos para permitir que as populações vulneráveis acedam à vacinação. Finalmente, a questão da gestão prática e financeira do isolamento ainda está em aberto. As condições de habitação de grande parte das famílias das classes populares tornam inoperante o isolamento domiciliário e não há cobertura financeira global dos custos de hotéis ou residências dedicadas.

Macron decretou a vacinação obrigatória para “certas” profissões, estigmatizando os trabalhadores “irresponsáveis” e impondo o passe de saúde para o lazer (bares, restaurantes, viagens de comboio / avião) e centros comerciais e comerciantes. Professores, policias, soldados, ferroviários e companhias aéreas (exceto hospedeiras e comissários de bordo) e funcionários dos correios ainda não são afetados pela vacinação obrigatória. Os sindicatos de saúde têm protestado com razão contra esse estigma, medida que partiu de um governo que, há poucos meses, obrigou os profissionais de saúde com resultado positivo, mas assintomáticos, a continuarem a trabalhar. Da mesma forma, a SUD Santé e a CGT, ao recusar a estigmatização dos trabalhadores da saúde, multiplicam suas exigências de uma política pública de saúde capaz de lutar contra esta pandemia e outras zoonoses que virão!

Imediatamente e nas próximas semanas, devemos obviamente avançar para a vacinação coletiva na França e garantir o levantamento de patentes, a produção e o uso gratuito de vacinas para que todas as regiões do mundo que não têm acesso às vacinas as tenham rapidamente. Pessoal, camas e serviços suficientes. Uma política de saúde pública revertendo todos os cortes feitos nos serviços de saúde pelas autoridades locais.

Lutar pela vacinação coletiva contra a Covid, como medida de saúde pública e não como “livre escolha individual”, não significa impor a vacinação obrigatória contra a Covid que, através de uma abordagem legalista, seria também uma acusação penal e repressiva! Devemos, portanto, lutar contra a vacinação compulsória hipócrita de Macron que vira as costas a uma campanha de vacinação coletiva.

Não podemos fugir da questão de ser a favor ou contra a vacinação coletiva contra a Covid como uma medida de saúde pública que visa proteger toda a população. Da mesma forma, que, em geral, não podemos escapar de uma posição a favor ou contra as vacinações infantis como existem hoje (mesmo que devêssemos ser capazes de debater a utilidade das famosas 11 vacinações obrigatórias), ao mesmo tempo que entendemos que a vacinação contra Covid provavelmente também se tornará um imperativo global nos próximos anos, o que torna ainda mais necessário fazer vacinas gratuitamente e suspender as patentes. O método hipócrita e restritivo usado para obter a vacinação (o passe obrigatório) obviamente leva a uma grande dose de raiva nunca gerada por outras vacinações obrigatórias. A escassez de hospitais, a opacidade dos controlos sobre os grandes grupos industriais farmaceuticos, as mentiras sucessivas e negligências do governo, as mentiras frequentes e a busca de lucro das farmaceuticas, os métodos autocráticos e autoritários do governo conduzem, para alguns, a uma recusa confusa da vacinação e do passe de saúde, com descontentamento generalizado e manifestações populares que lembram o início das mobilizações dos Coletes Amarelos. No entanto, estas são essencialmente motivadas pela obrigação de introdução imediata do passe de saúde e pela vacinação obrigatória sob pena de despedimento ou suspensão da retribuição. Apoiar este movimento não deve impedir-nos de combater as ambiguidades ou, pior ainda, as posições do movimento antivacinas.

Notas

Zoonoses são as doenças infeciosas que se transmitem dos animais para seres humanos, através de mutações dos respetivos agentes patogénicos que permitem não apenas a transmissão de animais para seres humanos, mas também entre humanos. Várias das epidemias recentes são zoonoses, é o caso não só da Covid-19, mas também do VIH/SIDA e do Ébola. A proliferação das zoonoses está diretamente ligada com a destruição dos ecossistemas, nomedamente das florestas, e da biodiversidade, que aumenta o contato entre populações humanas, animais domésticos e espécies selvagens, ao mesmo tempo que elimina barreiras naturais que diminuem os riscos de propagação de doenças.

 

*Texto de Léon Crémieux, originalmente publicado na página International Viewpoint e traduzido por Manuel Afonso, para a Semear o Futuro