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CULTURA

O adeus de José Ramos Tinhorão: o fim de uma era

Eduardo Pontin

Partiu aos 93 anos de idade José Ramos Tinhorão, verdadeiro divisor de águas nos estudos da música popular brasileira.

Tinhorão foi o maior historiador de nossa música popular urbana, com 30 livros publicados sobre o tema.

Também foi o crítico musical mais temido e detestado pelos grandes nomes da MPB.

Questionador feroz da música pré-fabricada, defendia a música que nasce livre, em meio ao povo.

Por isso, quando se fala em Tinhorão, só há duas possibilidades: ou as pessoas se enfileiram aos que o admiram ou fazem coro aos que o desestimam, mas indiferente ninguém fica.

Tinhorão começou a escrever sobre nossa música popular em 1953 para a revista Guaíra, de Curitiba, quando contava com 25 anos.

Dono de um dos textos mais bem acabados do jornalismo brasileiro, o seu 1º livro sobre o assunto foi uma compilação de artigos já publicados na imprensa, “Música Popular – Um Tema em Debate” (1966).

Como historiador, foi um incansável e minucioso vasculhador de dados, não ignorava nenhuma possível fonte.

Notas de rodapé de livros do Brasil colonial que abordavam passageiramente detalhes sobre nossa música ganhavam grande vida em sua obra.

Tinhorão é responsável por reconstituir a história da música popular brasileira entre os séculos XVI e XIX, em livros como: “Música Popular: de Índios, Negros e Mestiços” (1972) e “Música Popular – Os Sons que vêm das Ruas” (1976).

Já como pensador, Tinhorão foi um grande guardião da música popular brasileira urbana, representada por gêneros como o Samba, Choro, Baião e o Maxixe.

Além disso, lutou pela música rural que começava a ganhar o mercado fonográfico e a se estilizar a partir de gêneros como Cantoria de Viola e o Carimbó.

Assim, Tinhorão foi um voraz defensor de músicos e criadores do povo brasileiro, principalmente os dotados de profundo talento e marginalizados pelo grande público e por boa parte da imprensa de então.

Guerreou em favor do protagonismo do músico do povo brasileiro, muitos deles analfabetos vivendo em condições de subsistência, mas poetas e melodistas dos mais nobres e distintos.

Colecionou desafetos de artistas que ele considerava arrivistas de nossos músicos populares.

Por outro lado, foi aplaudido de pé por sambistas que partilhavam da sua visão, como Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, Nelson Cavaquinho e Monarco.

Em 1982 foi demitido do Jornal do Brasil, pois o novo editor do periódico considerava irrelevante gastar com um jornalista que escrevia sobre músicos do povo que arduamente conquistavam o mercado fonográfico mas que não geravam lucro às gravadoras.

Depois disso abandonou o jornalismo e nesse mesmo período foi morar na lendária quitinete da Rua Maria Antônia no Centro de São Paulo.

Na quitinete moravam Tinhorão e o seu gigantesco acervo de música popular brasileira: mais de 30.000 partituras; cerca de 10.000 fotografias; aproximadamente 7.000 livros; cerca de 12.000 fonogramas de 76 e 78 RPM, 4.000 LPs e muito mais.

Com tanto material em sua casa, a falta de espaço era natural, o que levou Tinhorão a viver sem fogão nem geladeira e a dormir num colchão de ar.

Para se alimentar, fechava um pacote mensal num boteco da região. Era um “troglodita urbano”, como definiu na época.

Todos esses esforços e privações eram feitos para que ele pudesse documentar a música popular brasileira da maneira mais fiel e verdadeira possível, numa prova de devoção e paixão pelo que fazia.

Por essa época publicou importantes obras, como “Os Sons dos Negros no Brasil” (1988); “História Social da Música Popular Brasileira” (1990) e “A Música no Romance Brasileiro”, este em 3 volumes (1992/2000/2002).

Apesar de muitos conhecerem o polemista, outros conhecerem a sua obra, somente alguns puderam conhecer Tinhorão como pessoa.

Com inteligência aguda, falava como se estivesse escrevendo, formulava frases que, caso postas no papel, bem poderiam ser publicadas enriquecendo a literatura.

A ironia e o bom-humor também eram sua marca, rapidamente montava um jogo de palavras que definia com exatidão determinada ocasião.

Mas a sua maior característica foi ter sido um ser humano atencioso e, principalmente, generoso.

Atendia a todos que o procuravam com a mesma recepção e disposição, desde sambistas e pesquisadores de nossa música a estudantes e curiosos.

Com a partida de José Ramos Tinhorão uma era se encerra: a dos que escrevem sobre a música popular brasileira por paixão, porque precisam, porque são arrebatados com tanta beleza e com tanto fulgor.

Aos que o criticavam a esmo, Tinhorão antes mesmo de publicar o seu 1º livro escreveu: “Quem achar que não é assim que conte outra, mas o faça documentadamente”.

Vida longa a obra de José Ramos Tinhorão!

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