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MUNDO

Desafios do Governo Castillo, no ano do Bicentenário da Independência do Peru

David Cavalcante*, de Recife, PE
Jose Carlos Angulo/AFP

A posse do Professor Pedro Castillo, no Dia 28 de Julho, como Presidente eleito do Peru, após vencer 17 candidatos presidenciais no 1º turno, e passar para o 2º turno onde emplacou a vitória com 8.836.380 votos (50,13%) contra a filha do ditador Fujimori, foi uma histórica batalha vencida pelo povo explorado e oprimido do país andino. 

Comício de Pedro Castillo, Peru Livre e apoiadores, em Cusco. Foto: @pedrocastillopresidente2021

A decisão das urnas somente foi respeitada pelos tribunais e pelo Congresso, que continua a ser presidido pela direita, porque houve uma maré vermelha de mobilizações populares, camponesas e indígenas pelo país, apoiada e organizada pela maioria das organizações populares e da esquerda, seguidas de marchas, paralisações e protestos de rua para assegurar a proclamação da votação.

Após o segundo turno que ocorreu em 6 de junho, a proclamação do resultado pelo JNE (o tribunal eleitoral superior do Peru) convalidando a vitória de José Pedro Castillo Terrones, Presidente do Peru, e Dina Ercilia Boluarte Zegarra, Vice-Presidente, ocorreu somente no dia 19 de julho, e a diplomação dos vencedores pelo mesmo organismo judicial, em 23 do mesmo mês, ou seja, quase 50 dias após as eleições.  

A velha direita peruana fujimorista apoiada pelas demais facções, representando também os interesses de grandes grupos privados e de boa parte da grande mídia empresarial, clamaram por fraude desde o dia da derrota e passaram a convocar agitações de rua e ingressaram com mais de 1.200 recursos nas várias instâncias jurídicas, demonstrando que não iriam aceitar o resultado facilmente. Ao ponto de provocar a renúncia de 1 dos 5 membros do Jurado Nacional de Eleições-JNE.

Por isso, o resultado eleitoral e a posse de Castillo e Dina, enfrentando toda sorte de discriminação patrocinada pela extrema direita e pelas oligarquias do país contra os povos camponeses, indígenas e contra o movimento dos trabalhadores, são carregados de toda simbologia de resistência contra as opressões. Inclusive houve um ato político com a presença de Castillo, após a posse, na região onde ocorreu a Batalha de Ayacucho, uma das mais importantes para expulsar definitivamente os colonizadores e a monarquia espanhola do continente, em 9 de dezembro de 1824, consolidando a Independência do Peru que havia sido proclamada pelo general argentino, José de San Martin, em 1821. 

Diante dessa vitória espetacular das eleições do Bicentenário da Independência, grandes desafios se postulam para o governo de esquerda e obviamente sabe-se que a direita e extrema direita e seus aliados liberais, tentarão toda sorte de manobras e táticas desestabilizadoras para derrubar o governo. Assim fizeram na Venezuela, em Honduras, no Brasil e na Bolívia, não será diferente no Peru. 

Comício de Pedro Castillo, Peru Livre e apoiadores, em Lima. Foto: @pedrocastillopresidente2021

A importância da mobilização permanente para garantir a Constituinte 

Uma nova Constituição é estratégica para o país, não somente para jogar no lixo a Constituição autoritária fujimorista, resultante de um regime autocrático, mas também para se garantir o marco legal para um novo Estado plurinacional e social, que possa indicar importantes medidas legais e econômicas de transição, com nacionalizações de setores estratégicos da economia, rumo a um Estado soberano e que promova a igualdade entre os povos. 

No seu discurso de posse, Castillo reafirmou seu principal ponto de programa: a convocação da Assembleia Constituinte. Uma nova Constituição é estratégica para o país, não somente para jogar no lixo a Constituição autoritária fujimorista, resultante de um regime autocrático, mas também para se garantir o marco legal para um novo Estado plurinacional e social, que possa indicar importantes medidas legais e econômicas de transição, com nacionalizações de setores estratégicos da economia, rumo a um Estado soberano e que promova a igualdade entre os povos. 

Para tal, as primeiras medidas de emergência do Governo devem indicar o combate à extrema desigualdade que existe no país resultante da sangrenta colonização e da pilhagem histórica dos povos originários e dos recursos naturais, além da superexploração do grande capital à força de trabalho, agravadas pela pandemia e seus efeitos catastróficos econômicos e sociais, que hoje já somam 200 mil mortes e mais de 2 milhões de casos confirmados para uma população de 32,5 milhões de habitantes.  

Os grandes opositores do novo governo já começaram a se mexer. O principal obstáculo será o próprio Congresso Nacional que é unicameral. A velha direita conseguiu se unir e derrotar o bloco governista de esquerda, elegendo a Presidência da casa legislativa e a Presidência das principais Comissões que são a Comissão de Constituição, por onde passa a apreciação de qualquer projeto de convocação de Constituinte, e a Comissão de Fiscalização, que atua fiscalizando o Poder Executivo. As duas comissões serão presididas pelo partido da Keiko Fujimori e principal opositor de extrema direita, o Força Popular. 

Destaque-se que não há previsão legal explícita na atual Constituição fujimorista para convocação de uma Assembleia Constituinte e que a maioria parlamentar de 66%, ou 86 votos, pode iniciar um processo de vacância do Presidente, como ocorreu com o golpe parlamentar de direita que derrubou Martin Vizcarra, em novembro de 2020. Tudo isso, no contexto de um complexo regime político, onde há um híbrido entre presidencialismo e parlamentarismo, com forte poder do Congresso para aprovar facilmente impedimentos da Presidência.  

Outro grande opositor será o chamado “mercado”, palavra sem conteúdo que os analistas da burguesia, nos grandes meios de comunicação privados, denominam os grandes grupos empresariais e os especuladores do mercado financeiro, ou seja, as grandes corporações do capital. As mesmas que tentaram sem sucesso eleger Keiko e foram derrotados, e agora tentaram emplacar nomes de sua confiança para os principais ministérios e que tentarão elevar ao patamar de crises e motivos de rachas, as mínimas falhas do governo. E que Já nas semanas após o resultado eleitoral e próximo à posse dos Ministros, geraram também especulações de preços para aumentar suas margens de lucro e das taxas de câmbio de dólar.  

O Ministério de Castillo possui integrantes dos movimentos de esquerda e centro-esquerda, além de intelectuais e acadêmicos representativos do pensamento progressista nacional. O Conselho de Ministros é encabeçado pelo Chefe do Gabinete Ministerial, popularmente chamado de Primeiro Ministro, o Guido Bellido. 

Guido foi motivo de críticas na grande imprensa por declarações homofóbicas e machistas em suas redes, um militante de Peru Livre com referências declaradas no castrismo, e cujo Ministério Público já desencadeou investigações por suposta “apologia ao terrorismo” em alusão ao Sendero Luminoso. É da relação de confiança do principal dirigente do Peru Livre, Vladimir Cerrón, que vem travando batalhas jurídicas em processos que o envolvem em acusações de corrução e que foi impugnado pelo JNE como candidato a 2º Vice-Presidente na Chapa de Castillo.  

O próprio nome de Bellido foi uma surpresa e um incômodo para setores da equipe que seria nomeada para o próprio Ministério, gerando momentos de incerteza de aceitação de dois importantes Ministros, o da Economia, Pedro Francke (ligado ao Novo Peru/Juntos por Peru) e o da Justiça e Direitos Humanos, Aníbal Toerres (um jurista de esquerda). Os dois somente foram confirmados e tomados seus juramentos um dia depois, separados da maioria da equipe, segundo se especula por exigências cumpridas de que Bellido fosse a público nas redes sociais condenar o terrorismo e se comprometer em combater o machismo e a homofobia. 

Não haverá reformas mínimas ou medidas sociais que retire do grande capital e redistribua renda e propriedade para os camponeses, indígenas e trabalhadores sem que haja reiteradas mobilizações sociais e sem que haja estímulo auto-organização popular para lançar as bases para um novo tipo de poder que seja o reflexo das necessidades das maiorias exploradas e oprimidas do país.

Agora com o gabinete completo, que inclusive somente possui 2 mulheres como Ministras, iniciam-se a principais batalhas. Haverá toda sorte de barreiras e manobras e golpes sujos da direita para que o governo seja bloqueado e que se gere as condições para a “vacância”. De modo que será decisivo que Castillo, Peru Livre e demais organizações que compõe o Governo e a bancada parlamentar no Congresso não se enredem na armadilha de priorizar somente a institucionalidade sem que haja mobilizações e apoio popular. Para que as reformas sociais em prol das maiorias, prometidas na campanha, sejam adotadas já nos primeiros meses de governo é preciso redobrar a força das relações com todos os movimentos sociais.  

Não haverá reformas mínimas ou medidas sociais que retire do grande capital e redistribua renda e propriedade para os camponeses, indígenas e trabalhadores sem que haja reiteradas mobilizações sociais e sem que haja estímulo auto-organização popular para lançar as bases para um novo tipo de poder que seja o reflexo das necessidades das maiorias exploradas e oprimidas do país. E que mesmo depois da Independência de 1821 não foram superadas, ao contrário, a República oligárquica, inaugurada com a Independência, não foi capaz de impedir a semi-escravidão das populações originárias e nem a superexploração dos camponeses pobres e dos trabalhadores. Nem tampouco libertou o Estado Nação das relações de dominação que são ditadas na geopolítica pelas grandes potências imperialistas.  

O machismo e a homofobia que se refletem nas relações estruturais da sociedade peruana, inclusive em setores das esquerdas, igualmente, só poderão ser superados com amplas mobilizações que possam inserir demandas reais numa Assembleia Constituinte, Plurinacional, Livre, Soberana e Paritária.  

*Cientista Político e militante da Resistência/PSOL