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BRASIL

Bolsonaro e os militares: Um espectro ronda o Brasil

Sóstenes Brilhante*, de Feira de Santana, BA
Marcelo Camargo / Agência Brasil

Bolsonaro acompanha o comboio na Esplanada dos Ministérios

“A retarguarda militar é o poder, não atrás do trono, mas através dele”
Florestan Fernandes

O Brasil atravessa um momento de grave tensão política. Sem sombra de dúvida, hoje o perigo fascista ronda o país, um espectro perverso estimula nossos pesadelos e temores mais profundos.

No mesmo dia em que o Congresso Nacional discute a famigerada PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do voto impresso, a malfadada ideia a que se agarram as hostes bolsonaristas, ocorre uma demonstração militar em Brasília, supostamente para convidar o presidente Bolsonaro e o general Braga Neto para um exercício militar, que é anualmente realizado.

Estes são os fatos, os fatos não falam por si, mas dizem algo no específico contexto em que se inserem. Com o golpe de 2016, o regime político erguido no Brasil a partir da reforma autocrática do regime cesarista militar (Maciel, 1999) entrou em crise orgânica. Esta crise trouxe a tona ameaças golpistas e de caserna, e o então comandante das Forças Armadas, general Vilas Boas, confessou publicamente sua ingerência e a conivência do Alto Comando Militar (Conversa com o Comandante, FGV 2020) com esta ingerência que revela a tradição autocrático-militar emergindo depois de uma aparente hibernação durante os governos FHC, Lula e Dilma.

Os militares encontram-se hoje, enquanto organização, plenamente integrados ao governo Bolsonaro e revelam sua intenção de mais uma vez, como dizia Florestan Fernandes, serem não o poder atrás do trono, mas o poder através do trono. (Fernandes, 2007)

A atual conjuntura revela um conflito entre as frações da classe dominante diante do caminho a trilhar para garantir a agenda do golpe de 2016, a saber, o caminho para destruição completa e radical dos direitos da classe trabalhadora e a relocalização do Brasil no mercado mundial, que significa como tendência uma regressão de tipo neocolonial.

Esta regressão histórica é um acordo de todas as frações de classe e das frações do aparato estatal que representam a autocracia burguesa, este Estado nacional que conforme Florestan Fernandes seguiu um caminho de desenvolvimento que leva ao paroxismo, a dissociação entre desenvolvimento econômico e democracia (Fernandes, 2020). E a República de 1988 mesma não foi capaz de superar este aspecto estruturalmente histórico de nossa formação.

A eleição de Bolsonaro contou com o apoio ou condescendência de todos os setores acima conluiados no “grande acordo nacional” com “o Supremo e com tudo”. Bolsonaro, órfão da ditadura, se tornou notório ao proclamar aos quatro ventos sua admiração pelo famigerado torturador Ustra e nunca escondeu sua pretensões de “matar uns 30 mil e fazer o que a ditadura não fez”.

No entanto, a crise sanitária e econômica que se abateu sobre o país, pegando um organismo já aviltado e debilitado pelas medidas de austeridade postas em prática no espírito da “Agenda Brasil” do temeroso golpista que precedeu o atual mandatário da República, levou a que a crise orgânica se aprofundasse, a gestão genocida do atual governo no que tange a pandemia do coronavírus deixou patente mesmo a setores da classe dominante a impossibilidade de “amansar a fera”.

Neste sentido, e visando as ameaças flagrantes do mesmo ao regime de 1988, e por um motivo nada “democrático” mas visceralmente autocrático (no sentido de garantir as instituições da República de 1988 que sob a face democrática ocultam a real natureza de um Estado que opera como uma “contrarrevolução permanente”, que no dizer de Florestan Fernandes possui elementos democráticos, autoritários e fascistas amalgamados) o STF resolveu descobrir as flagrantes ilegalidades e casuísmos jurídicos utilizados contra o máximo representante da esquerda da ordem, o ex-presidente Lula, e reestabeleceu seus direitos políticos.

Disto resulta que o inominável e sua chusma, cada vez mais desesperados com a deterioração politica de seu governo, e contando com a complacência do Exército que visa se perpetuar como o poder “através do trono”, passaram a reforçar o coro pelo malfadado voto impresso, com base em alegações dignas de uma “teoria da conspiração” sobre a urna eletrônica, para a qual alegam fictícias e nunca apresentadas provas de fraudes eleitorais que supostamente teriam impedido o chefe da patota fascista de ser eleito no primeiro turno em 2018. Diversos clubes militares embarcaram na defesa do “voto impresso”, corroborando o discurso fascista que em escalada afrontou abertamente outros poderes, como a pessoa do aparentemente arrependido lavajatista (?) ministro Luís Roberto Barroso, do Superior Tribunal Eleitoral e do STF.

Freud certa vez descreveu o inconsciente como o “passado que não quer passar”. Aparentemente nos defrontamos hoje com o nosso passado, um passado infelizmente nunca superado de truculência, violência, de um país fundado em assassinato em massa, genocídio, escravidão, estupro e toda uma inominável serie de atrocidades.

A classe dominante que hoje reivindica a estátua de Borba Gato tem as mãos sujas de sangue e, a modo de Pôncio Pilatos, parece tê-las lavado, um pouco enojada com os maus modos. Tem deixado tranquilamente o rebotalho da República, o chefe dos pequenos negócios escusos, a figura obscura, o ogro obtuso que consolida e propala aos quatro ventos todos os preconceitos aparentemente recalcados por uma Nova Republica que seria “para todos”.

A burguesia não está disposta a uma quartelada, por ora, em que pese sua tradição autocrática e seu costume de conclamar os militares a salvá-la de apuros impondo um regime de repressão aberto. No momento ela prefere o regime autocrático erguido em 1988, o que permite ostentar uma fachada democrática para a brutal violência que caracteriza o exercício de dominação de classes no país, daí a reação das ditas instituições democráticas às crescente manifestações golpistas de Bolsonaro e sua trupe.

Os crimes que marcam a História do Brasil no trato dos subalternos, sua incapacidade orgânica de, no dizer de Florestan Fernandes (2020, Fernandes), incorporar os de baixo aos mecanismos de classificação social da sociedade capitalista, o racismo estrutural que impede a emergência de uma verdadeira nação no sentido burguês e moderno do termo, foram varridos para debaixo do tapete.

Érico Verissimo criou um obra ímpar da literatura brasileira, com seu romance “Incidente em Antares”, que trata do estranho caso de uma cidade que resolveu “esquecer” um evento inusitado” e “foi como se ele nunca houvesse acontecido”, esta bela metáfora do Brasil e seu modo de esquecer as vítimas que se encontram sacrificadas no altar da classe dominante cobra agora seu preço.

É preciso unidade na luta contra a aventura golpista que une fascistas e militares no Brasil atualmente. O fascismo encontra sua base de massas nas frações dominadas da classe dominante, pequenos burgueses esmagados pela dominação do capital nacional e internacional monopolistas, estes setores acreditam que a conta da crise deve ser a ferro e fogo jogada nas costas dos subalternos e que eles devem compartilhar o seu justo destino de “ subir na vida”, seu ressentimento impotente perante a verdadeira burguesia nacional (os descendentes dos bandeirantes, dos portugueses e dos poucos imigrantes que ascenderam violentamente ao status de burguesia) se volta com fúria genocida para os debaixo, seu modo plebeu não oculta seu racismo,sua misoginia e seu ódio de classe; ao contrário o proclamam em brados inflamados. Infelizmente, por erros da esquerda institucional, certos setores populares desorientados pela despolitização que grassou durante os governos de esquerda e seu projeto de conciliação de classes, aderem ao ódio pequeno-burguês. De acordo com Wilhelm Reich, o fascismo é o resultado da canalização reacionária do ressentimento do homem médio, este “Zé Ninguém”, esmagado por um sistema que não entende e que o sufoca, adere ao veneno apologético das ideias irracionalistas tão bem analisadas por Gyorgy Lukacs em “Destruição da Razão”.

Precisamos entender o passado do Brasil pois “sem perspectiva de futuro não se pode conhecer o passado, e fazer dele uma força fecunda para o presente, sem o correto esclarecimento do passado não se pode ter uma perspectiva nacional concreta de futuro” (Lukacs, 2020). É hora de realizarmos um acerto de contas com nossa história, daí que somente as energias populares podem romper este cerco. O primeiro passo é interromper o mandato presidencial, motivos não faltam, desde o grande crime da negligencia com a pandemia, às fake news disparadas durante as eleições, os esquemas escusos na compra de vacina e que demonstram o caráter decadente e venal daqueles que tentam se locupletar com o suor da classe trabalhadora e ainda escarnecer com um clássico “E daí?” de seus crimes e prevaricações enquanto a classe dominante assiste complacente e contente o “passar da boiada”.

Somente a unidade da esquerda: partidos políticos, movimentos sociais dos negros, das mulheres, dos trabalhadores do campo e da cidade, a juventude, sindicatos podem construir uma alternativa concreta de futuro para as grandes maiorias.

A defesa intransigente e radical, numa perspectiva antiautocrática, como nos ensinou Florestan Fernandes, de um programa de esquerda baseado em medidas anticapitalistas pode resolver os dilemas históricos do povo brasileiro e enfrentar o espectro fascista-golpista que nos ronda.

Aqueles que acreditam que é possível um novo governo de conciliação devem ser convencidos pelos fatos de que a linha da menor resistência nos conduziu a este beco sem saída. O fascismo coloca a alternativa radical da ordem travestida de seu contrário (uma forma de subversivismo reacionário, como diria Gramsci, ou de “revolucionários da reação” para Trotsky). É preciso que coloquemos uma alternativa radicalmente socialista, antiautocrática e que seja capaz de abrir o caminho histórico de superação dos dilemas históricos, até aqui empurrados para debaixo do tapete, de nosso povo.

Como nos ensinou a revolução cubana, expressa na frase de Che Guevara: “se o presente é de luta, o futuro nos pertence”, ou, como diria o grande Maiakavosky: “É preciso arrancar alegria ao futuro. Nesta vida morrer não é difícil. O difícil é a vida e seu ofício”.

* Licenciado em História, militante da Resistência?PSOL Feira de Santana (BA).

Referências Bibliográficas

Fernandes, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de Interpretação Sociológica. Curitiba, Kotter Contracorrente São Paulo, 2020.

Lukacs, Gyorgy. A Destruição da Razão. Instituto Lukacs, Maceió, 2020.

Maciel, David. Democratização e manutenção da ordem da transição da Ditadura militar a nova República. Dissertação de Mestrado UFG, 1999