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MUNDO

A Convenção dos Socialistas Democráticos da América – grandes conquistas e uma longa estrada pela frente

Todd Chretein, EUA | Tradução Gabriel Dayoub

A Convenção Nacional dos Socialistas Democráticos da América de 2019. (Steve Eberhardt)

Publicado originalmente em Pine and roses No borders News em inglês, e na revista Jacobin América Latina em espanhol.

Os Socialistas Democráticos da América (DSA) cresceram de menos de 10 mil membros, em 2016, para 95 mil, em 2021, tornando-se a mais importante organização socialista norte-americana desde o Partido Comunista, na Grande Depressão de 1929. Na esteira das campanhas presidenciais de Bernie Sanders, o DSA começou a utilizar seu crescimento a serviço da luta pela mudança na relação de forças, na política dos EUA.

David Duhalde, antigo membro do Comitê Político Nacional do DSA e atual vice-presidente da Fundação dos Socialistas Democráticos da América, aponta que:

Desde a disputa das primárias na eleição presidencial de 2020, a maior conquista do DSA foi a formação da coalizão pela reforma trabalhista nacional. Mais ou menos a cada 15 anos, o movimento sindical norte-americano tem a chance de pressionar pela mudança das relações de trabalho a nível federal. Até hoje, nenhuma campanha teve sucesso. Mas, para o DSA, a campanha tem sido o centro da construção de uma aliança entre entidades sindicais e organizações da sociedade civil. Já foram feitas quase um milhão de ligações para senadores, ganhando o apoio até mesmo de alguns dos mandatos do Partido Democrata. Ainda que seja improvável sua aprovação, Biden pode incluir partes da reforma em outro projeto. Isso seria uma grande conquista para o DSA e para o movimento operário dos EUA.

Por que o DSA emergiu das cinzas da esquerda dos EUA nos últimos anos?

O crescimento do DSA foi preparado por uma vitória quase absoluta da política econômica neoliberal, levada a cabo por uma impiedosa classe dominante e seus administradores em todas as gestões, democratas ou republicanas, desde os anos 1970. Em termos sociais, o neoliberalismo esmagou a representação sindical nos EUA, que despencou de mais de 30% para os atuais 10%. O índice cai para apenas 6,3% no setor privado.  Nas regiões sul e das Grandes Planícies, sindicatos são espécies ameaçadas de extinção, graças a uma rígida legislação que dificulta a organização da classe trabalhadora. Desde a Grande Recessão (2008-2009), a desigualdade explodiu. Os salários estavam apenas começando a se recuperar quando explodiu a nova crise com a pandemia de Covid-19.

De mãos dadas com o neoliberalismo veio a explosão do encarceramento nas prisões norte-americanas. Hoje, o país tem 2,3 milhões de pessoas encarceradas, e mais 4 milhões em liberdade condicional. São 77 milhões de pessoas com antecedentes criminais. Ainda mais grave, o sistema prisional mira especialmente os afro-americanos, que são apenas 13% da população, mas representam 39% da população carcerária. Esse estado de coisas, combinado à crise ecológica, a uma cultura sexista, homofóbica e transfóbica, e a uma história de violência colonial e contra os imigrantes, faz com que dezenas de milhões de jovens encarem o “sonho americano” como o pesadelo americano, como afirmou Malcom X em 1964.

Essa realidade objetiva foi a base para três saltos subjetivos. Primeiro, as campanhas presidenciais de Sanders em 2016 e 2020, que desafiaram a liderança corporativa do Partido Democrata, e introduziram para milhões de jovens, o vocabulário do socialismo e da luta de classes. Segundo, o choque com a eleição de Trump, que colocou dezenas de milhões em ação. Se é verdade que nunca foram fortes o bastante para colocá-lo em cheque, os movimentos de massa conseguiram limitar os danos causados pela gestão do republicano. Por fim, os assassinatos de George Floyd e Breonna Taylor inspiraram os atos do Black Lives Matter, o maior e mais ativo movimento social norte-americano desde a década de 1960. Esses três pontos centrais, combinados a uma importante onda de greves de professores, protestos contra a construção de dutos de petróleo e gás, liderados por indígenas, a campanha MeeToo, protestos da juventude contra as armas e a crescente influência cultural do movimento LGBTQ+, levantaram a questão do poder político nos Estados Unidos. Dezenas de milhares de pessoas, em sua maioria jovem, responderam a esse desafio reconstruindo o DSA à sua própria imagem: ativista, anticapitalista, contra as opressões, ecológico e favorável à construção de um partido independente.

Como o DSA é construído?

O DSA não é, ainda, um partido. A organização combina aspectos próprios a partidos políticos, movimentos sociais e organizações territoriais. Conta com uma equipe nacional de algumas dezenas de pessoas, um orçamento de dois milhões de dólares, e células locais em todos os 50 estados dos EUA. Dos seus 90.000 membros pagantes [que cotizam], entre 10 e 15 mil são muito ativos, outros 10 ou 20 mil apoiam campanhas específicas e a ampla maioria é politicamente passiva… ao menos enquanto membros do DSA. As ações normalmente ocorrem nas células locais, que concentram as decisões mais importantes. A organização é extremamente democrática e os grupos locais podem, na prática, iniciar qualquer campanha. A ampla maioria dos membros do DSA é branca, mas camaradas não-brancos organizaram seus próprios grupos, lideraram iniciativas importantes e conquistaram postos de direção importantes. 

É interessante comparar o DSA ao PSOL brasileiro para termos uma ideia de suas forças e debilidades, já que as duas organizações têm mais ou menos o mesmo número de filiados e membros ativos. Em minha opinião, o PSOL é cinco ou dez vezes mais forte que o DSA em termos de constituição de quadros com experiência política, aparição pública e visão estratégica. Isso não é uma crítica aos socialistas norte-americanos. Afinal, o “novo” DSA tem pouco mais de cinco anos. Diferentemente da brasileira, a classe trabalhadora dos EUA não construiu greves gerais, derrotou uma ditadura militar e elegeu o seu Partido dos Trabalhadores para a presidência. Falta tradição de organização nos espaços de trabalho e nas ruas, mas a organização está crescendo o suficiente para começar a acumular essa experiência. Almeja-se se fortalecer o suficiente para ajudar a criar o nosso próprio partido proletário, o DSA terá de aprender algumas lições duras na próxima década.

Politicamente, correndo o risco de generalizar demais, há cinco tendências políticas construindo a organização. Vale dizer, esse diagnóstico não coincide exatamente com as correntes formalmente constituídas. 

Em primeiro lugar, há uma pequena camada de membros veteranos, militantes das décadas de 1970 e 1980, que defendem posições social-democratas, referenciados em Michael Harrington. Esse grupo não é de forma alguma monolítico e, é necessário reconhecer, recebeu de braços abertos a leva de jovens, em sua maioria muito radicais, que aderiu à organização. 

Em segundo lugar, há um grupo muito importante e muito ativo de jovens socialdemocratas, que se referenciam em Michael Harrington, mas que também são lideranças orgânicas do “novo” DSA. Eles são centrais para a organização interna e provavelmente são a camada com mais experiência acumulada em campanhas sindicais e eleitorais. 

Os socialistas democráticos, a terceira e maior tendência, são jovens marxistas que entraram no DSA há um, cinco ou dez anos. Constituem o grosso da militância ativa, radicalizada pelas condições descritas acima durante as campanhas de Sanders à presidência. Esses ativistas acreditam que reformas concretas e locais – campanhas eleitorais, luta sindical, organizações de auxílio mútuo, ativismo ecológico, corte de recursos das polícias, etc. – são importantes e que será necessária uma revolução para destruir o capitalismo. Contudo, a concepção socialista democrática de revolução segue aberta à discussão. 

Em quarto lugar, há uma camada muito menor de abolicionistas penais e socialistas revolucionários, que são muito críticos ao enfoque do DSA em eleições, à relação da organização com o movimento Black Lives Matter, à sua política internacional, entre outros temas. Por último, há outro pequeno grupo de camaradas que têm como modelo o Partido Comunista dos EUA dos anos 1930 e os processos revolucionários cubano e venezuelano. Para a maior parte dos membros do DSA, as diferenças entre essas camadas é pouco clara e os acordos e desacordos normalmente não estão centrados em disputas históricas e teóricas, mas em iniciativas e campanhas concretas. 

A Revista Jacobin , ainda que não seja uma publicação oficial da organização, insere-se na tendência socialista democrática e marxista, aceitando contribuições de socialistas de todos os matizes. Com seus 70.000 assinantes e 2,6 milhões de visitantes por mês, é de longe a mais importante publicação socialista dos EUA. Sua insistência no debate político aberto é importante tanto para a educação de uma nova geração de militantes, quanto para demonstrar, na prática, porque uma organização de tendências é o melhor modelo para a esquerda norte-americana hoje. 

A Convenção Nacional do DSA de 2021

As células locais e os membros em geral do DSA elegeram 1.100 delegados para debater e votar resoluções e escolher uma direção para os próximos dois anos. Infelizmente, a Convenção está sendo feita pelo Zoom devido às restrições da pandemia. Isso dificulta muito o debate e os delegados de diferentes partes do país não poderão se conhecer, trocar ideias e discutir as divergências face a face. A pandemia limita a tarefa mais importante dos delegados: construir relações entre os quadros da nova organização. Assim, há grande risco de que os debates se polarizem e que o Zoom possa criar um clima incômodo e de frustração… Quem não está cheio de ficar no Zoom?

Felizmente, ainda que haja debates importantes, nenhuma votação irá, na minha visão, mudar dramaticamente o rumo do DSA. Aqui há uma lista completa das resoluções. É provável que haja algum tipo de consenso, com mudanças importantes, na manutenção da estratégia eleitoral da organização, no destaque para campanhas ecossocialistas, no aprofundamento da participação em lutas antirracistas, em fortalecer o trabalho sindical e no desenvolvimento de um movimento nacional de moradia, entre outras iniciativas. 

É fácil proclamar a ligação de todas essas iniciativas à construção de células locais, mas difícil de fazer. Jack Gross, membro da recém-fundada iniciativa Green New Deal Para as Escolas afirma:

Para construir uma organização de massas da classe trabalhadora capaz de disputar o poder nesse país, precisamos de iniciativas estratégicas, ligando o poder local com demandas nacionais que possam realmente mudar a correlação de forças. Nossa organização está crescendo rapidamente e, enquanto a crise climática se acelera em todos os lugares do mundo, é central o desenvolvimento de nossa disciplina e capacidade organizativa para a condução de campanhas em todos os locais, fortalecendo nosso enraizamento, desenvolvendo novas lideranças e multiplicando nossa força nacional. O Green New Deal para as escolas está organizando jovens, trabalhadores da educação e da construção civil e pais e mães por todo o país para lutar por investimentos sustentáveis massivos em bairros proletários.

No terreno eleitoral, o DSA deve continuar a lançar candidatos para as primárias democratas como meio de construir uma forte campanha por um novo partido – como fazê-lo ainda está em debate. Isso será muito importante nas eleições de 2022, quando os republicanos tentarão organizar a revanche contra Biden e o Partido Democrata. Até aqui, a estratégia funcionou bem. O DSA elegeu dezenas de representantes locais e cinco membros do Congresso Nacional nos últimos quatro anos. Vale notar que nenhum dos congressistas do DSA é branco, com maioria de mulheres. No total, o DSA elegeu aproximadamente 150 pessoas em todo o país em um total de mais ou menos 500.000 cargos eletivos… Então, temos um longo caminho pela frente!

Ao mesmo tempo, muitos camaradas consideram que o DSA, sem abandonar sua estratégia eleitoral, deveria colocar mais energia na atuação em movimentos sociais. Isso provavelmente será refletido nas resoluções da Convenção, assim como no trabalho concreto local. Militantes que trabalham em restaurantes, por exemplo, recentemente lançaram uma publicação nacional e estão pressionando a direção nacional a fornecer apoio concreto a essa importante luta.

Natalia Tylim, integrante dessa iniciativa, explica que:

O mundo se surpreendeu com as camadas de novos socialistas se radicalizando durante a campanha de Bernie Sanders. Mas a nossa realidade mudou, talvez não de forma inesperada, quando ele deixou a corrida e Biden tornou-se o candidato. O DSA não agiu bem na preparação ou no balanço desse acontecimento (…) e houve uma queda perceptível e quase generalizada na participação da convenção de 2021. 

Outros debates polêmicos giram em torno da natureza da solidariedade internacional, da democracia interna e de prioridades financeiras. Por exemplo, há dois anos o DSA votou priorizar a solidariedade à América Latina. Há amplo apoio a essa orientação e a organização em breve deve começar a traduzir algumas de suas publicações e declarações para o espanhol. No entanto, há um debate sobre como conduzir essas iniciativas. Alguns camaradas insistem que o DSA deveria priorizar relações com os “partidos de massas” da América Latina. Mas o recente envio de uma delegação para a Venezuela, a crise cubana e as eleições no Equador e na Bolívia provocaram discussões sobre como os esforços por “estabelecer relações” com, por exemplo, o MAS boliviano ou o PSUV venezuelano, encaixam-se com a construção de laços mais profundos com movimentos sociais, sindicatos e outras correntes socialistas na América Latina, assim como sobre o entendimento da natureza dos governos da “Onda Rosa” latino-americana.

Desafios nos próximos anos

Além desses debates específicos, o DSA enfrenta desafios estratégicos. Como afirma Marianela D’Aprile, integrante do Comitê Político Nacional:

A excitação foi grande quando o DSA explodiu, em 2016. Eu me lembro que na convenção de 2017 um camarada de Portugal nos disse que militantes de todo o mundo estavam esperando por nós, os socialistas americanos. Mas não havia garantia que o espírito daquele momento e o crescimento da organização durariam. Eu acredito que consolidar aquela expansão e transformá-la em uma estrutura estável, que pode sobreviver até mesmo a uma pandemia altamente desagregadora, foi a maior conquista do DSA nos últimos dois anos. Nosso desafio no próximo período será desenvolver um programa socialista democrático coerente, pelo qual possamos lutar de maneira independente e coordenada, em níveis local e nacional. 

E, como Marx disse certa vez, o DSA não pode se dar ao luxo de desenvolver esse programa em condições de sua escolha. Ao contrário, terá de enfrentar enormes mudanças econômicas e ecológicas, entender se o governo Biden marcará ou não o distanciamento da ordem capitalista em relação ao neoliberalismo, confrontar uma potencial nova Guerra Fria contra a China, o resiliente perigo do trumpismo e os métodos de cooptação e coerção do Estado norte-americano.

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DSA / estados unidos