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BRASIL

RESENHA: “General Villas Bôas: conversa com o comandante”

Cauê Campos, de Campinas (SP)
Valter Campanato/Agência Brasil

O Presidente Jair Bolsonaro na solenidade de passagem de Comando do Exército do general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas ao general Edson Leal Pujol, em 2019.

RESENHA: “General Villas Bôas: conversa com o comandante” organizado por Celso Castro – 2021.

Tenho lido e ouvido algumas coisas para tentar entender o Bolsonarismo. Recomendo fortemente os livros “A República das Milícias” de Bruno Paes Manso, “A máquina do ódio” da Patrícia Campos Mello, e “Dano colateral: A intervenção dos militares na segurança pública” de Natalia Viana. Os podcasts: “Retrato Narrado” da Carol Pires da Revista Piauí e “A Vida Secreta de Jair” da Juliana Dal Piva da UOL. E, de maneira diária, o ironicamente maravilhoso “Medo e Delírio em Brasília” do Pedro Daltro e Cristiano Botafogo, da Central3.

Nessa empreitada, acabei de ler “General Villas Bôas: conversa com o comandante”, entrevista conduzida e livro organizado por Celso Castro da FGV. Com certeza, está entre as piores coisas que já li na vida – talvez seja a pior, deve ter um nível de masoquismo nessa minha escolha de leitura; mas é importante ler direto na fonte, ver os encadeamentos lógicos (ou ilógicos?) produzidos pelos próprios agentes.

A fraqueza analítica e argumentativa chama a atenção e deve ser o pontapé da discussão. Villas Bôas é um general de quatro estrelas do Exército, que chegou ao posto máximo das Forças Armadas (FFAA) em tempos de paz. Dentro da ala militar do Bolsonarismo, é uma das mentes mais importantes, com elevada capacidade argumentativa, organizativa e aglutinadora.

Após 244 páginas lidas, fica o espanto: se essa é das mentes mais proeminentes do Exército Brasileiro, imaginemos as mais limitadas. Não é de se estranhar o déficit cognitivo e de oratória do Bolsonaro, capitão “convidado a se retirar” das Forças Armadas do Brasil.

Para o período “pós-Bolsonaro”, além da Justiça de Transição, as FFAA precisam de uma educação holística e humanista, não só por motivos políticos, mas também pela capacitação militar dos quadros dirigentes das Forças Armadas. Mais do que o preparo físico e bélico, os militares precisam entender de história, direito e geopolítica – no mínimo – e, pelo depoimento de Villas Bôas é nítido que isso não acontece. O general de quatro estrelas comete erros crassos, como reproduzir o discurso roto sobre a Amazônia do Exército Brasileiro.

Questão Amazônica

Para a “intelligentsia” militar, a Amazônia seria o grande problema brasileiro, considerada um vazio demográfico e, por isso, em constante ameaça de invasão pelos países vizinhos amazônicos. Há, ainda, a mais descabida a ideia de que as terras indígenas seriam um passo para a declaração de autonomia e independência destas. Atualmente, com a ampliação do debate da preservação ambiental, acrescenta-se a esse discurso a ameaça dos países centrais “recolonizarem” a Amazônia com uma desculpa ambientalista, quando, na verdade, buscariam pilhar nossos recursos naturais da região. Esse discurso é constantemente reproduzido por Bolsonaro e resumido no lema da Ditadura Militar: “integrar para não entregar”.

Contudo, isso não se sustenta à mínima análise geopolítica. Antes de tudo, não há vazio demográfico, a Amazônia é – e sempre – foi ocupada pelos indígenas, donos legítimos dessa terra, conta com séculos de migração de outras regiões do Brasil e países vizinhos. A lógica de que seria uma região sem habitantes desumaniza e invisibiliza os povos indígenas que vivem ali.

Segundo, não há (e não houve ao longo do século XX) qualquer ameaça dos vizinhos latino-americanos no sentido de ocupar territórios brasileiros, principalmente, na Amazônia. Embora o Exército brasileiro seja capenga, ainda é superior aos correlatos vizinhos. Terceiro, não há – e não houve – qualquer movimentação independentista dos povos originários ou dos estados amazônicos.

Por fim, de fato, há interesses imperialistas sobre os recursos naturais amazônicos. Notoriamente expressos, por exemplo, na mineradora canadense BeloSun, que busca lucrar milhões com a diminuição do leito do Rio Xingu após a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte – feita por Lula e Dilma, mas idealizada pela Ditadura Militar. A questão ambiental é fundamental e não podemos renegá-la em nome do desenvolvimento econômico, seja para o capital nacional ou internacional. Preservar a Amazônia hoje é um dever humanitário com as próximas gerações.

Ademais, comprovado cientificamente que a demarcação de terras indígenas é a melhor forma de preservar as florestas, afinal os povos originários têm uma relação muito mais orgânica com a natureza do que a sociedade ocidental, branca, patriarcal e capitalista.

Gostaria de destacar cinco elementos da narrativa de Villas Bôas fundamentais para compreensão da adesão dos militares ao projeto Bolsonarista, ou mesmo, do fomento dessa ideologia.

1. Disciplina, hierarquia e política

Duas frases podem resumir a relação dos militares com a política, a primeira, do General Mourão, em março de 2020, durante o motim da PM do Ceará: “se a política entra pela porta da frente de um quartel, disciplina e hierarquia saem pela porta dos fundos”; e, a segunda: “homem armado não ameaça”, proferida no último mês pelo Comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar, Carlos de Almeida Baptista Junior.

As Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo. Se os militares devem ter ampla liberdade de opinião e atuação política fora dos quartéis, isto não é possível dentro dos quartéis. O Estado Democrático de Direito necessita da maior lealdade possível dos militares à Constituição. Afinal, são homens e mulheres com acesso irrestrito às armas e estruturas bélicas do país, caso haja ameaças das FFAA às demais instituições do Estado, teremos sempre uma democracia sitiada (e tutelada) pelos militares.

Quando o tenente-brigadeiro, Baptista Jr., afirmou que “homem armado não ameaça”, ele já estava, na verdade, ameaçando e somando-se aos diversos discursos golpistas da alta cúpula militar e de Bolsonaro promovidos recentemente. Como já dito, os militares têm direito a se expressar politicamente, basta que abandone as armas e entrem para a reserva.

Villas Bôas reconhece a importância da hierarquia e disciplina dentro das FFAA quando diz que o lema do Exército para o Brasil é o tripé: estabilidade, legalidade e legitimidade. No entanto, o próprio general rompeu esses três princípios com seu tuíte em 2018, ameaçando o STF ao comentar o habeas corpus do ex-presidente Lula; Mourão também o fez, em 2015, quando criticou Dilma em palestra a subordinados da tropa e, novamente, em 2018, ao criticar Temer, criticas estas acompanhadas de ameaças de intervenção militar. Além disso, todo o Exército Brasileiro rompeu com a hierarquia e disciplina ao permitir, desde 2014, que Jair e toda a família Bolsonaro utilizasse as formaturas de militares como palanque eleitoral.

Parece haver em Villas Bôas um ressentimento com a volta dos militares às casernas após a Ditadura, ao classificar o Exército como “o grande mudo”, como se fosse proibida a expressão das Forças Armadas sobre qualquer tema do país – o que não é verdade, sendo vetada apenas a interferência na política e nas demais instituições de Estado.

Assim, o Comandante do Exército, Villas Bôas, buscou promover a mudança dessa postura, reinserindo, aos poucos, pronunciamentos do Exército em temas nacionais nas mídias sociais comandadas pelo General Rêgo Barros – atual Porta-Voz da Presidência -, na época, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército. Villas Bôas pode ser, facilmente, responsabilizado pela volta do Exército ao centro da vida política brasileira.

Ainda sobre o lema de “estabilidade, legalidade e legitimidade” atribuído por Villas Bôas ao Exército, parece, no mínimo, curioso que o vice-presidente Temer tenha procurado Villas Bôas e o chefe do Estado-Maior do Exército, Sérgio Etchegoyen, antes da aprovação do impeachment de Dilma em 2016, perguntando sobre a atitude do Exército mediante o afastamento da presidente, sendo respondido pelos generais um genérico “cumprir o que estabelece a Constituição”.

Este balanço certamente não foi feito pelas Forças Armadas, mas já é nítido: o que ocorreu em 2016 foi um golpe parlamentar que retirou inconstitucionalmente a presidenta Dilma do cargo. Villas Bôas diz que o mesmo ocorreria se fosse revertido o pedido de impeachment. Será mesmo? O que mais houve nessa conversa entre o vice-presidente e os principais generais do Exército Brasileiro?

2. Comissão Nacional da Verdade

Ao contrário do que pensa o general, com o fim da Ditadura e a anistia ampla e irrestrita, os militares não voltaram, propriamente, para a caserna e seguem tendo muita importância na estrutura política do país. A própria eleição do ex-capitão do Exército, Bolsonaro, em 1988 como vereador no Rio de Janeiro e em todas as eleições para deputado federal desde 1990, é prova disso.

Mas, de fato, entre 1989 e 2016, estes perdem a centralidade que vivenciaram no restante do século XX. Exemplo disso é a criação do Ministério da Defesa, em 1999, que, desde então, foi ocupado por um civil – o que colocava os militares sob direção política direta de um civil – até a nomeação do General Joaquim Silva e Luna por Temer, em fevereiro de 2018.

Acontece que, em 2003, o Partido dos Trabalhadores chega ao poder, tendo entre suas lideranças militantes históricos da resistência armada à Ditadura Militar, como José Genuíno e Dilma Rousseff. Os militares temiam que, finalmente, o Brasil teria julgamento e punição dos responsáveis pelos crimes de Estado praticados entre 1964 e 1985. Contudo, isso não ocorre no Governo Lula, somente no Governo Dilma é que se instaura a Comissão Nacional da Verdade, que timidamente buscava reparar os danos causados pelos militares no poder.

Ao contrário do que os militares imaginavam, a relação com os governos de esquerda, Lula e Dilma, foi notoriamente tranquila – e talvez este seja um problema para a esquerda. Por diversas vezes ao longo do livro, Villas Bôas assume que o governo Lula reverteu uma lógica de sucateamento das Forças Armadas Brasileiras presentes nas últimas décadas (inclusive durante a Ditadura), investindo pesadamente em logística, equipamentos e treinamentos para os militares.

Vale lembrar que a tentativa de ação terrorista de Bolsonaro ocorre apenas dois anos depois do fim da Ditadura, em 1987, por reclamações do soldo dos oficiais; ou seja, mesmo recém-saídos da própria Ditadura, os militares recebiam pouco. Isto só foi revertido ao longo do governo Lula e, atualmente, com Bolsonaro, quando os altos oficiais tornaram-se altamente favorecidos, em detrimento do resto da população que amarga inflação galopante, arrochos salariais e reforma da previdência – que não afetou os militares.

A origem do revanchismo dos militares contra a esquerda não é da ordem material, mas política: não aceitaram a Comissão Nacional da Verdade, o que fica evidente na afirmação de Villas Bôas: “a Comissão nos pegou de surpresa, despertando um sentimento de traição em relação ao governo. Foi uma facada nas costas, mesmo considerando que foi decorrência de antigos compromissos assumidos pela presidente Dilma”.

A lógica dos militares e do Bolsonarismo é equiparar os crimes de Estado com as ações de resistência à Ditadura, como se fosse possível julgar, igualmente, agentes de terrorismo de Estado e aqueles que combatiam essa própria violência, quando a proporção é daqueles que combatem com metralhadores e aqueles que lutam com paus e pedras.

Para Villas Bôas, ao julgar “apenas” os militares, a Comissão da Verdade estaria legitimando a “violência dos terroristas comunistas” e, seguindo na lógica do general, isso teria criado um “revanchismo ao contrário”. A bem da verdade, esse revanchismo é de mão única: dos militares contra a esquerda e a primeira fagulha de toda ação golpista impetrada pelos militares de 2015 até hoje; não aceitar a punição aos criminosos e a reparação das vítimas, como ocorreu nos nosso vizinhos latino-americanos, é raiz do golpe de 2016 e da eleição de Bolsonaro.

A desonestidade intelectual e manipulação do Exército e do Bolsonarismo nesse assunto é explicitada quando o repórter pergunta sobre a mudança dos membros da Comissão da Verdade – supostamente realizada por Bolsonaro em 2019 -, o que Villas Bôas manifesta positivamente de que ela se tornaria mais isenta, por estar presentes os dois lados.

Primeiro, Bolsonaro não alterou os membros da Comissão Nacional da Verdade, pois esta foi extinta em 2014 por concluir seus trabalhos. Bolsonaro alterou os membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a qual, ainda que correlata, tem a função apenas localizar mortos e desaparecidos pelo Estado entre 1961 e 1979, não de reparação histórica e financeira das vítimas do terrorismo de Estado.

Além disso, não pode haver “dois lados” quando um deles é um regime autoritário e terrorista. Seria como esperar que os nazistas estivessem julgando seus pares no Tribunal de Nuremberg. Na lógica da Justiça de Transição, não há qualquer intenção de condenar todos os militares, afinal há aqueles que não compactuaram com os crimes da Ditadura, ou, até mesmo, de condenar enquanto instituições as FFAA, mas perceber os erros, o que os provocaram e impedir que se repitam.

3. Ameaça ao STF

Desdobramento da saída dos militares da caserna para o centro da política nacional é o tuíte de 2018, quando o General Villas Bôas, então Comandante do Exército, ameaça o STF na época do julgamento do habeas corpus de Lula. Com um entrevistador amistoso, sem ser pressionado ou mesmo perguntado, sem nem corar, Villas Bôas confessa que aquele tuíte foi discutido e preparado com o Estado-maior do Exército Brasileiro durante todo o dia antes de ser publicado. Ou seja, não foi uma ação isolada de um general transloucado em um momento de perturbação. Pelo contrário, foi premeditada e com claro objetivo de ameaçar o STF.

Contudo, chama atenção o cinismo do General quando diz que era apenas um “alerta”, demonstrando a preocupação e atenção do Exército com a situação de Lula, e ao afirmar que caso Lula fosse inocentado à época, o Exército obedeceria a legalidade. Para que um “alerta” se o Exército não interferiria nas decisões do STF?

Neste momento, o Supremo Tribunal foi sitiado e sequestrado politicamente: o General, também quatro estrelas, Fernando Azevedo e Silva foi nomeado assessor de Dias Toffoli, então presidente do Supremo Tribunal Federal, durante as eleições de 2018, e meses depois assumiu o Ministério da Defesa. Segundo o próprio Bolsonaro, Azevedo e Silva foi indicação de Villas Bôas para o ministério.

Também espanta a desfaçatez com que Villas Bôas corrobora o discurso feito por Bolsonaro na posse de Azevedo e Silva como Ministro da Defesa em 2019: “General Villas Bôas, o que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”, ao repetir, no livro, que morrerá entre eles. O que tanto conversaram que morrerá com Villas Bôas e Bolsonaro?

Articularam o tuíte do General ameaçando o STF quando do julgamento da prisão de Lula? Articularam um golpe caso Bolsonaro perdesse a eleição de 2018? Articularam a sustentação do Exército ao Governo Bolsonaro, mesmo quando cambaleante? Articularam o apoio do escuso centrão ao frágil Bolsonaro? Articularam uma tentativa de autogolpe se necessário? Articularam um golpe caso Bolsonaro perca as eleições de 2022?

Bolsonaro declarou isso em 1º de janeiro de 2019, ou seja, essa conversa com Villas Bôas aconteceu antes de ser presidente. Um general, comandante máximo do Exército Brasileiro, deveria conspirar com um reles deputado federal? Se não é ilegal, é, no mínimo, imoral.

Se pudesse apostar, eu diria que essa conspiração entre Bolsonaro e Villas Bôas é mais antiga e remete ao período em que Bolsonaro era apenas um deputado do baixo clero em Brasília. A vontade de ser presidente repousa em Bolsonaro desde sua adolescência, mas eram derivadas mais de uma mente psicopática, embebida em megalomania e ego desproporcional, não na realidade.

Ainda que desejasse, mesmo Bolsonaro sabia que não havia chances reais. Contudo, com o descontentamento dos militares com a Comissão da Verdade e a percepção de que o descontentamento popular com governo Dilma crescia, me parece que os militares veem a necessidade e a possibilidade de barrar o acerto histórico com a Ditadura Militar e passam a patrocinar (talvez até financeiramente) o clã Bolsonaro. A partir de 2014, Bolsonaro, enquanto deputado, passa a acompanhar formaturas de turmas militares Brasil afora e a discursar para suas bases – o que é completamente ilegal.

A primeira etapa para barrar a Justiça de Transição dá-se com o golpe de 2016, não é à toa que Temer nomeia o General Joaquim Silva e Luna como Ministro da Defesa em fevereiro de 2018. A segunda etapa – e pá de cal – é a eleição de Bolsonaro, com a composição de um governo com mais militares do que na época da Ditadura Militar.

Sem o apoio do generalato, Bolsonaro seguiria sendo um deputado do baixo clero, verborrágico, que agradava sua base de protofascistas, mas não alçava voos mais perigosos. Portanto, os militares são os fiadores de Bolsonaro – junto com o Guedes para o setor financeiro. Mais do que isso, Bolsonaro é um instrumento dos militares. E agora, quando o apoio popular do governo derrete e se acumulam as denúncias de corrupção, o Exército não consegue se desvencilhar de Bolsonaro e estão, inclusive, enlameados até os ossos com a corrupção no Ministério da Saúde do General da ativa, Eduardo Pazuello e do Coronel da reserva, Élcio Franco.

Meses depois da posse, o vice-presidente Mourão, afirmou: “se o nosso governo falhar, errar demais – porque todo mundo erra –, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas”. Não tenho a mesma certeza do vice-presidente de que essa conta irá para as Forças Armadas – já não foi em 1985. Mas, sem dúvida, precisamos de um acerto histórico do Brasil com os militares pela Ditadura de 1964-85 e pelo Governo “civil” de Bolsonaro.

4. Haiti e as GLO

Há dois elementos centrais para o “empoderamento” das Forças Armadas do Brasil, como percebe Natalia Viana, em seu livro “Dano colateral: A intervenção dos militares na segurança pública”, que chamam a atenção, na verdade, pela ausência: o comando do Exército brasileiro na MINUSTAH1 da ONU na ocupação militar do Haiti e o crescimento das ações de Garantia da Lei e Ordem (GLO) em áreas de insegurança pública, principalmente, nas favelas do Rio de Janeiro.

Ainda que cite essas ações, Villas Bôas não demonstra a importância delas para o “empoderamento” do Exército. Se até o começo dos anos 2000, as FFAA eram reconhecidas por poucas ações no front, a partir de 2004, o Exército Brasileiro é designado para tentar reestabelecer a ordem no Haiti – seja lá o que isso signifique.

Como assume o próprio Villas Bôas, as ações no Haiti desenvolveram as “regras de engajamento” que, em seguida, foram adaptadas para “nossa realidade”, para as GLO. Preocupante saber que durante e, sobretudo, depois da MINUSTAH, os “capacetes azuis”2 foram amplamente denunciados por violência excessiva, execuções sumárias, sevícias e até estupros de haitianas.

As ações de Garantia da Lei e Ordem são operações das FFAA autorizadas diretamente pelo Presidente da República em solo brasileiro quando há esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em situações graves de perturbação da ordem ou durantes grandes eventos.

Na última década, as GLOs foram utilizadas, principalmente, para garantir a instalação das Unidades Policiais Pacificadoras (UPPs) nas favelas do Rio de Janeiro que antecederam a Copa do Mundo de 2014 e as Olímpiadas de 2016.

No Governo Lula (2003-2010) foram, em média, 4,9 GLOs por ano. Já no Dilma (2011-2016), 5,6 GLOs/ano e Temer (2016-2018), 5,6 anuais. No governo Bolsonaro, essa média cai para “apenas” 3,5 GLOs por ano.3

Obviamente, isso não se dá por uma política pacificadora de Bolsonaro ou por um sucesso na segurança pública no período. Na verdade, Bolsonaro expressa uma demanda dos militares: o “excludente de ilicitude” para as ações das Forças Armadas nas GLOs – em bom português: licença para matar. Ao não permitir GLOs, Bolsonaro busca chantagear o Congresso para dar mais liberdade de tiro ao militares. Em seu relato, Villas Bôas descreve isso como um drama militar:

“O Exército tira um menino da convivência da família, por força do serviço militar obrigatório, submete-o a treinamento, emprega-o em operações, ele age de acordo com o que lhe foi ensinado e nós o devolvemos à família na condição de criminoso. Essa é uma história real, ocorrida nas ações de GLO, no morro do Alemão. Dois soldados, em um enfrentamento, mataram um traficante. Por essa razão, foram enquadrados no dispositivo legal segundo o qual, por tratar-se de crime doloso, deveriam ser submetidos a júri popular.”

Esquece-se, muitas vezes, que os mortos pelo Exército e forças policiais no Brasil são, em sua maioria, inocentes. Como aconteceu com Evaldo, músico assassinado por soldados, com 81 tiros, quando ia para um chá de bebê com a família, no Rio de Janeiro, em 2019.

Como afirmou o General Porto Pinheiro “as Forças Armadas, mas principalmente o Exército, foram para o Haiti adolescentes e voltaram maduras”. Essa maturidade é a utilização da brutal violência estatal contra as populações pretas, pobres e periféricas, tanto no Haiti, como nas favelas brasileiras. As violações ocorridas lá, repetem-se aqui cotidianamente.

O desdobramento máximo dessa militarização da segurança pública é a intervenção federal-militar no Rio de Janeiro, em 2018. Promovida por Temer e comandada pelo General Braga Neto, atual Ministro da Defesa, foi a reta final da volta dos militares ao central da política – como se somente eles pudessem salvar o estado do Rio de Janeiro de sua sina “purgatório da beleza e do caos”.

Portanto, o empoderamento das Forças Armadas, principalmente do Exército, dá-se em três atos: MINUSTAH, as GLOs e Intervenção Federal-militar no Rio de Janeiro, e isso está na raiz da ascensão dos militares ao poder com Bolsonaro. Dos nove comandantes militares máximos da MINUSTAH vivos em 2019, seis fizeram ou fazem parte do governo Bolsonaro.

5. Masculinidade e saúde mental nas FFAA

As Forças Armadas e policiais são as instituições exemplares da masculinidade, mas também são as mais contaminadas pelo caráter tóxico da masculinidade. O livro expressa a dificuldade de Villas Bôas anunciar que tinha ELA4, doença degenerativa, como se isto pudesse manifestar uma fraqueza do General.

Mais do que isso, em 2018, dois anos depois do diagnóstico, Villas Bôas caiu após discursar em um solenidade oficial ao lado de Temer. Não bastasse toda a negação em demonstrar “fraqueza”, como utilizar bengala, cadeira de rodas, discursar sentado, etc., após a queda, o atual vice-presidente, General Mourão, disse a expressão máxima da masculinidade tóxica: “engole o choro”, como se um homem militar não pudesse cair, não pudesse ficar doente, não pudesse chorar. Trágico.

Não é à toa os elevados índices de problemas psicológicos, como depressão, e as taxas de suicídio das Forças Armadas e policiais. O próprio Villas Bôas sofre com depressão, diagnosticada desde 2002 quando era Coronel lotado como Assessor Parlamentar do Exército, e relata a dificuldade em informar que sofria com a doença.

As taxas de suicídio em militares crescem em todo o mundo. Não foi encontrado dados sobre a situação do Brasil, mas podemos correlacionar o crescimento notório do suicídio entre os policiais do país, principalmente, de PMs e homens, com o problema cultural institucional das Forças Armadas e policiais.

Conclusão

Este buraco que estamos enfiados, chamado Bolsonarismo, não se construiu hoje. Além de outros elementos, tentei analisar aqui a relação dos militares com o Bolsonarismo, o que era possível pelo livro. Se hoje vivemos o governo mais militar desde a Ditadura, responsável pela maior tragédia humanitária do Brasil desde a colonização, é porque não tivemos justiça de transição após o fim da Ditadura.

Os idealizadores, gestores e agentes, sejam militares ou civis, do regime de torturas, sevícias e demais formas de violência estatal não foram julgados e punidos. As Forças Armadas não acertaram suas contas com o povo brasileiro e com a História; sem isso, viveremos perpetuamente em uma democracia (se tanto) tutelada e recorrentemente os militares voltaram ao poder.

Quando o Governo Dilma tentou, timidamente, promover alguma justiça de transição com a Comissão Nacional da Verdade, os militares se sentiram “traídos”, afinal seriam expostos seus crimes e erros, o que parece impensável para eles. E isto é suficiente para que promovam um avanço do Exército ao centro da política nacional, simultaneamente ao avanço do discurso golpista, promovido pelos Bolsonaros, mas também pelos generais Mourão, Braga Neto, Heleno e o próprio Villas Bôas.

Ao mesmo tempo, o governo Dilma, em continuidade ao de Lula, manteve a MINUSTAH e ampliou as GLOs, empoderando o Exército Brasileiro como há muito não acontecia. De um lado, o revanchismo político, de outro, uma estrutura militar muito mais forte do que nas décadas anteriores e a recuperação da centralidade na vida política nacional.

A conjuntura política e econômica favorece a escalada golpista dos militares com o avanço da crise econômica desde 2014 e as denúncias de corrupção que atinge, principalmente, o PT – por mérito e interesse da mídia e do Judiciário – mas toda a casta política. Assim, os militares aparecem como eficientes, incorruptíveis e honestos – quem conhece a história do país sabe que são, exatamente, o contrário.

Assim, parece que se forma a “tempestade perfeita” para os militares: crise do principal partido da esquerda, crise de confiança nos partidos políticos, Exército “empoderado” e pressão por outsiders da política. Então, Bolsonaro destaca-se como esse “apolítico” que poderia liderar a revanche militar contra a História e a Democracia. Portanto, inicialmente, Bolsonaro foi muito mais um instrumento do que utilizava os militares para seus interesses. Cabe análises de como está essa relação atualmente, depois de 30 meses de governo.

Por fim, não me parece grandes novidades, mas para o estabelecimento de um Estado democrático de direito no Brasil de fato, precisamos, urgentemente:

a) da aplicação de uma Justiça de Transição que julgue e puna os agentes Estado criminosos durante a Ditadura Militar, bem como julgue e puna os atuais agentes, principalmente aqueles que negligenciaram a pandemia e roubaram na compra de vacinas contra a COVID-19;

b) para o bem das próprias Forças Armadas e do povo brasileiro como um todo, os militares precisam ter uma grande formação técnica, bélica, mas também holística e humanística. As casernas não devem ser sinônimo de negacionismo e obscurantismo;

c) é preciso uma Emenda Constitucional sobre a participação política dos militares, regulamentando a interferência dos militares na política e nas demais instituições, punido os excessos a contento, e da participação de militares da ativa nos cargos políticos e de confiança da administração pública – para que não se repita casos como do General Pazuello;

d) é preciso investimento na formação, tecnologia e estruturas das Forças Armadas, não para se voltar contra a própria população, mas para, de fato, servir a esta.

 

Referências:

1 Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti
2 Como eram conhecidos os militares na operação da ONU.
3 Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/forcas-armadas-em-acoes-de-seguranca-publica-tem-legado-questionado-por-militares-e-civis.shtml
4 Esclerose lateral amiotrófica