Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.
Legião Urbana
O primeiro é Borba Gato, cruel escravizador bandeirante de indígenas e negros do Brasil Colônia que teve sua estátua queimada em São Paulo. Tal personagem é pouco mencionado nos livros de História oficial vendidos em larga escala. A segunda é a simpática e humilde maranhense de Imperatriz Rayssa Leal, que se tornou a mais jovem medalhista brasileira com treze anos. A pequena fadinha ganhou a medalha de prata no marginalizado skate olímpico, que teve sua estreia em Tóquio.No país dos contrastes, dois desconhecidos passaram a ser mais conhecidos depois do dia 24 de julho de 2021, porém em sentidos históricos totalmente opostos.
O dia vinte quatro fez nascer e fenecer dois símbolos com sentidos opostos. Raissa é fruto do passado colonial brasileiro e Borba Gato o colonizador, dois símbolos contrapostos e correlacionados e que faz parte do objetivo dessa conversa.
A queda dos símbolos racistas
O dia vinte quatro fez nascer e fenecer dois símbolos com sentidos opostos. Raissa é fruto do passado colonial brasileiro e Borba Gato o colonizador, dois símbolos contrapostos e correlacionados e que faz parte do objetivo dessa conversa.
A derrubada de monumentos que expressam um passado racista teve inicio após o dia 25 de maio de 2020 quando uma onda de protesto tomou conta dos EUA após o assassinato de George Floyd, por um policial branco em Minneapolis. É uma forma de manifestação contra a “dominação simbólica” expressa em imagens e monumentos que expressam a superioridade racial.
No dia 4 de julho de 2020, dia da independência dos Estados Unidos, manifestantes derrubaram a estátua de Cristóvão Colombo na cidade de Baltimore, na costa leste dos Estados Unidos, numa onda de ataques a monumentos ou estátuas de personagens históricos vinculados a escravidão e ao colonialismo.
No dia 24 de julho de 2021, um ano depois, algumas dezenas de manifestantes incendiaram a estátua do Borba Gato localizada na zona sul de São Paulo. Diziam eles “chora Borba Gato!” “Fascista!” “Derruba!” depois estenderam uma faixa escrita: “Revolução Periférica”.
A colonização portuguesa e espanhola tiveram como principais características a submissão e o extermínio de milhões de indígenas; apresentaram um caráter semelhante a outras colonizações europeias na Ásia e na África. Aqui na terra do pau Brasil as coisas não foram diferentes, houve um “desencontro de culturas”, que correspondeu a um grande extermínio e submissão de indígenas, tanto por meio dos conflitos com os colonizadores, quanto pelas doenças trazidas por estes, como a gripe, a tuberculose e a sífilis.
Essa “nova” forma de luta usa o método da violência contra esses monumentos que induzem as pessoas a pensarem de acordo com a história do dominador externo. Eu penso que essa seja a principal motivação da destruição das estátuas e totens que representam um passado sombrio contra os povos originários, oprimidos e afrodescendentes que sofreram os danos da escravização, da imposição cultural aos povos que tiveram de se adaptar a cultura colonial imposta.
O Maranhão e a pequena Rayssa
E por falar em colonização, escravidão, maus tratos, pobreza e vida dura, o Maranhão é um estado que merece um capítulo a parte. É o segundo estado com maior população afro descendente do país presente na ancestralidade viva até hoje na sua cultura, no povo e em pessoas como Rayssa que mora na periferia de Imperatriz.
A cultura maranhense possui uma riqueza colossal de resistência contra a escravização de corpos, mentes e símbolos dos representantes do poder colonial português e sua ofensiva escravagista. Os Borbas Gatos de todo tipo não devem ornamentar praças e monumentos construídos pelo sangue e suor do trabalho de brasileiros/as que sofreram e construíram cidades como São Luís, Belém ou Salvador.
Atualmente vários maranhenses estão fazendo uma campanha nacional contra a construção da Estátua da “Liberdade” em São Luís, pela loja Havan do bolsonarista Luciano Hang. Essa resistência ao símbolo norte americano localizado na cidade de Nova Iorque (EUA) não tem nada a ver com o Maranhão e tampouco com o Brasil, mesmo sabendo que o imperialismo norte americano está vivo em vários terrenos da cultura brasileira de forma visível e invisível. Portanto, impedir essa agressão simbólica e impositiva significa derrotar esse (neo)colonialismo que nos é enfiado goela abaixo.
impedir essa agressão simbólica e impositiva significa derrotar esse (neo)colonialismo que nos é enfiado goela abaixo.
O sociólogo francês Pierre Bourdieu, chama de violência simbólica aquele tipo de violência “invisível”, exercida por meios genuinamente simbólicos de comunicação e conhecimento, que se estabelece em uma relação de subjugação e submissão na qual resulta de uma dominação, onde o dominado é cúmplice, dado o estado dóxico [1] em que a realidade se apresenta. Embora esse campo do “simbólico” seja polêmico e questionado a partir de interesses sociais diversos, a discussão está na ordem do dia.
Os símbolos são históricos e sobre ele repousam nossas contradições e desigualdades sociais. Estas simbologias de heróis colonizadores não são abstrações, são imagens concretas construídas sobre a subjetividade coletiva de milhões de homens e mulheres, por isso, nessa luta que envolve dominantes e dominados, “heróis” e “bandidos”, vale muito a valorização das Rayssas que sirvam para apagar os Borbas Gatos.
É necessário lutar contra o mundo doente do passado e do presente, nisso Renato Russo tinha razão quando compôs a música Índios.
Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
…..
Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto como o mais importante
Mas nos deram espelhos
E vimos um mundo doente.
*Professor e militante da Resistência
Comentários