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OPRESSÕES

LGBTfobia: andar em paz eu mereço

A LGBTfobia no atual contexto brasileiro e a inflexão do debate do combate as opressões na disputa de projetos societários

Carlos Wellington Soares Martins* de São Luís, MA
Andar em paz, eu mereço
Mereço viver
Mereço amar
Mereço que parem
Todo dia morre mais de uma das minhas
Espero que isso mude
Espero que a raiva pare de andar ao meu lado
Espero que o medo pare de me acompanhar
Mas já tô cansada de esperar
Eu mereço parar de esperar
Por isso, ando com a minha navalha
(Urias)

O modo de produção capitalista, e, por conseguinte as formações sociais oriundas deste sistema são estruturadas na exploração da classe trabalhadora e trazem consigo uma forte ideologia que escamoteia a consciência de que se está sendo explorado, bem como são alicerçadas na opressão de grupos que foram, historicamente, subalternizados no processo de formação das sociedades como negros e negras, mulheres, LGBTI+, povos originários e comunidades tradicionais. Ou seja, as relações sociais são norteadas por uma matriz racializada, generificada e sexualizada.

A lesbofobia, homofobia, bifobia e transfobia, ou LGBTfobia, é inerente a esse processo evidenciada, principalmente, na reprodução social e sexual do trabalho, no modelo hegemônico de família e na discussão acerca do direito de propriedade e herança. Por mais que algumas pautas avancem em uma perspectiva de acesso a direitos inseridos em um ordenamento jurídico burguês e com forte apelo neoliberal, há uma forte constatação de que a política de identidade como início e fim, apresentada na crítica de Haider (2019), não dá conta de resolver o fim das opressões porque grande parte das LGBTI+ não tem acesso a esses direitos em decorrência de outros marcadores sociais de diferença (HIRANO, 2019) como classe, raça, sexo, região, entre outros.

Com a ascensão da extrema-direita neofascista no Brasil, tendo em Bolsonaro o seu maior representante, viveu-se uma autorização de discursos de ódio direcionado às minorias políticas e sociais chancelada por um Congresso que historicamente não vem pautando demandas do campo progressista ocasionando na judicialização da política, onde os principais avanços na agenda de gênero e sexualidade tem-se dado no âmbito do Judiciário. Pautas como casamento homoafetivo, criminalização da LGBTfobia, adoção, doação de sangue, direito a herança são demandas históricas dos movimentos sociais e que foram conquistadas nessa mediação e sendo efetivadas pelo poder judiciário devido a inércia proposital e estratégica do legislativo.

Porém essas conquistas, por mais que sejam positivas e necessárias, são insuficientes para uma reposta mais ampla ao combate as opressões e a superação de uma sociedade de classes.

Porém essas conquistas, por mais que sejam positivas e necessárias, são insuficientes para uma reposta mais ampla ao combate as opressões e a superação de uma sociedade de classes. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) e da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) o Brasil é o país que mais mata LGBTI+ do mundo, e somente no primeiro semestre de 2021 já ocorreram mais de 80 assassinatos de pessoas trans (ANTRA, 2021) mesmo com a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo ocorrida em 2019, o que indica que apenas o caráter punitivista, sem uma consolidação de uma rede que dê suporte a essa ação, é insuficiente para que a jurisprudência alcance seu objetivo.

Diariamente é noticiado, ou se tem a informação, de um caso de assassinato de pessoas trans e travestis, como o caso de Natasha que foi assassinada com requintes de crueldade, no Maranhão, quando voltava para casa com seus agressores de motocicletas passando por cima de seu corpo, ou casos notórios de descaso de socorro pela sociedade e pelo poder público, como foi com Luís Carlos, homem gay, na cidade de Porto Franco – MA, que teve um surto, tirou a roupa e andou a esmo pela cidade, enquanto as pessoas acompanhavam rindo, ridicularizando e filmando Luís para o deleite macabro das redes sociais nesse processo de espetacularização da dor sem prestar auxílio, a polícia rodoviária federal também o acompanhou, perdendo-o de vista e o Luís só foi encontrado no outro dia, morto, na beira de um rio da cidade, ou seja, a saúde mental das LGBTI+ também não entra na ordem do debate de políticas públicas, outro fato é o constante despreparo e desonestidade de veículos de informação, mesmo na imprensa e não só em blogs, que insistem em cometer um novo assassinato quando não respeitam o nome social da vítima utilizando ainda de termos ofensivos como “apelido”, “vulgo”, “nome de guerra” ou “conhecida como”, no mês de Julho, por exemplo,  em Açailândia-MA, uma travesti foi brutalmente assassinada e um dos maiores jornais do estado noticiou o crime apresentando o nome de registro e se referindo a seu nome social como se fosse um apelido entre aspas.

Em junho, no mês do orgulho LGBTI+, ocorreu o caso escabroso de Roberta, no Recife – PE, mulher trans em situação de rua, que teve seu corpo queimado por um adolescente tendo que ser hospitalizada as pressas, seus dois braços amputados, mas que não resistiu e veio a óbito. Em menos de um mês Pernambuco registrou três casos de transfeminicídio. Onde está a comoção nacional nesse tipo de caso? Onde estão localizadas as políticas públicas de enfrentamento à LGBTfobia? São vidas precárias, na concepção de Butler (2019) e vidas nuas na de Aganbem (2007), corpos destituídos de humanidade e não passíveis ao luto e comoção. O fato de nem a nível nacional, e muito raramente nos níveis estaduais e municipais, os governos fazerem levantamentos acerca das mortes letais de LGBTI+ já indicam uma omissão estratégica que ela mesma revela uma LGBTfobia institucionalizada, tanto que os dados coletados são realizados por entidades e ONGs LGBTI+ que entendem a importância do levantamento desses indicadores para a inserção do debate na agenda governamental e para a formulação e implementação de políticas públicas.

o Estado tem-se mostrado omisso a essa construção coletiva de consciência, e no contexto brasileiro se agudiza pela forte presença de uma ideologia religiosa neopentecostal nos três poderes, com o executivo rechaçando qualquer debate sobre gênero e sexualidade com desculpas de “ameaça a família” e presente no slogan “Deus acima de tudo”

A estratégia seria a formação na base, em uma perspectiva informativa-educativa, próxima ao que Durkheim (2007) chamava de “consciência coletiva” no sentido da sociedade acompanhar a discussão e entender que a diversidade é inerente a humanidade e que todas as pessoas devam ter sua integridade física garantida e no respeito às orientações sexuais, expressões e identidades de gênero diversas. No entanto o Estado tem-se mostrado omisso a essa construção coletiva de consciência, e no contexto brasileiro se agudiza pela forte presença de uma ideologia religiosa neopentecostal nos três poderes, com o executivo rechaçando qualquer debate sobre gênero e sexualidade com desculpas de “ameaça a família” e presente no slogan “Deus acima de tudo”, o Congresso tomado por parlamentares que usam a Bíblia no lugar da Constituição, sabendo de cor os versículos das escrituras e desconhecendo totalmente o texto da Carta Magna e reproduzindo discursos preconceituosos e fomentando ódio e o Judiciário que ainda era o único que fazia algum enfrentamento, mas que vêm sendo ameaçado pelas indicações estratégicas de Bolsonaro.

As eleições de 2019 demonstraram um avanço na eleição de LGBTI+ para as Câmaras Municipais brasileiras, porém a transfobia institucionalizada tem dificultado o trabalho das parlamentares trans e travestis que diuturnamente enfrentam ofensas e xingamentos de parlamentares que não toleram esses corpos e identidades no mesmo patamar que eles, assim como algumas sofreram atentados em sua residência, como foi o caso da co-vereadora Carolina Iara (Psol) da Bancada Feminista de São Paulo, e a vereadora Benny Brioli (Psol) que sofreu ameaças de morte tendo que buscar asilo temporariamente fora do país.

A “saída do armário” de Eduardo Leite (PSDB/RS) causou alvoroço no meio político e nos movimentos sociais LGBTI+, é lógico que ao se assumir publicamente como um homem gay, ainda cumprindo mandato de governador de um estado e país conservador, trata-se de uma vitória no campo do reconhecimento, porém representatividade deve ter conteúdo político com compromisso com a classe trabalhadora, o que não é o caso do Eduardo Leite que contribuiu para a ascensão do governo Bolsonaro, nunca apresentou alinhamento e respostas para as demandas sociais LGBTI+ e seu próprio discurso evidenciam isso ao dizer que é um “governador gay e não um gay governador”, essa representatividade é vazia, reproduz o discurso hegemônico da elite e da burguesia, da cisheteronormatividade e não tem compromisso com a classe trabalhadora. 

É inadmissível que pessoas alinhadas ao campo da esquerda ainda reproduzam machismo, misoginia, racismo e LGBTfobia, não se pode tergiversar em relação a isso, reproduzindo estas opressões fica evidente que não se tem compromisso com uma sociedade justa e igualitária e qualquer partido com o compromisso ético com as minorias políticas e sociais que tem em seu projeto o combate as opressões não pode tolerar qualquer tipo de preconceito. Ao usar o chavão machista, misógino e lesbofóbico de “vou te tratar como homem” e tentar usar agressão física contra a vereadora do PT Verônica Lima, o vereador Eduardo Gomes, do Psol, extrapolou todos os limites possíveis e deve pagar exemplarmente com a expulsão do partido e perda de mandato e responder por LGBTfobia.

Então decididamente, diante do cenário apresentado, não tem como entender o debate do combate as opressões como apenas “cultural” ou usar o interdito de “identitarismo” mas como forma de silenciar a pauta do que necessariamente problematizar um viés de ação liberal, já está mais do que na hora de que a esquerda compromissada com um projeto revolucionário incorpore em seu projeto societário a perspectiva mais ampla do debate das demandas LGBTI+ para além de slogans e ações pontuais. As experiências concretas do socialismo, guardada as devidas diferenças, foram exitosas no que tange a questões de gênero e sexualidade na Rússia, em 1917, e fracassadas na Revolução Cubana, em 1959, demonstram que não são questões que se resolvem magicamente com a revolução, mas que devem estar alinhadas no processo revolucionário com vistas a garantir a superação da sociedade de classes, da exploração e das opressões. Afinal LGBTI+ tem classe, e é a classe trabalhadora.

*Militante da Resistência Psol São Luís- MA. Homem cis gay. Doutor em Políticas Públicas (UFMA). Membro do Observatório de Políticas Públicas LGBTI+ do Maranhão. Bibliotecário (DIB/UFMA)

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Humanitas, 2007.
ANTRA. Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Boletim nº. 002/2021. Brasil tem 89 pessoas trans mortas no 1º semestre em 2021. Sendo 80 assassinatos, 9 suicídios. houveram ainda 33 tentativas de assassinatos e 27 violações de direitos humanos. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/07/boletim-trans-002-2021-1sem2021-1.pdf. Acesso em: 10 jul. 2021.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. São Paulo: Autêntica, 2019.
DURKHEIM, EDa divisão do trabalho social. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
HIRANO, Luis Felipe Kojima. Marcadores sociais da diferença: rastreando a construção de um conceito em relação à abordagem interseccional e associação de categorias. In: HIRANO, Luis Felipe Kojima; ACUÑA, Maurício;MACHADO, Bernardo Fonseca. (orgs.) Marcadores Sociais das diferenças: Fluxos, trânsitos e intersecções.Goiânia: Imprensa Universitária, 2019, p. 27-53.
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lgbt / lgbtfobia / lgbtqia+