Sobre a militância (31): Luta pela direção e conflitos geracionais

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A velhice é a mais inesperada de todas as coisas que acontecem na vida

Leon Trotsky

 

As lutas internas na esquerda são ásperas. Mas amargas mesmo e, não poucas vezes, brutais são as disputas pessoais. Precisamos conversar sobre o porquê das lutas pela direção dentro de nossas organizações. Elas repousam, certamente, na defesa de ideias. Mas devemos admitir que há, também, as rivalidades pessoais, pelas mais variados fatores. Um deles são os conflitos geracionais.  

Há muitas razões pelas quais cada um de nós se engaja na luta socialista. As pessoas são muito diferentes umas das outras. Há os que lutam porque não podem deixar de resistir. Há aqueles que perseveram porque são idealistas. Alguns são movidos, sobretudo, pela indignação e raiva, outros pela esperança e solidariedade. Há os que lutam pelos seus, os que lutam pelos outros, os que odeiam a injustiça, os que se apaixonam por uma ideia, os que temem a catástrofe ambiental, ou o perigo das guerras. Não são melhores uns do que outros. O melhor impulso é aquele que dura mais tempo.

Por que alguns entre nós aceitamos o desafio de assumir tarefas de direção? Cada um de nós deve se colocar para si mesmo esta pergunta de forma, radicalmente, honesta. Assim como a decisão de se organizar para a militância, há muitas, diversas e boas razões para assumir a liderança. Mas é indispensável uma vontade apaixonada de fazer a diferença. Não vale autoengano na forma dissimulada de desprendimento, desapego ou humildade que, frequentemente, é o medo da responsabilidade. 

A militância deve ser um compromisso de vida, não uma carreira. A luta política exige especialização, mas não pode ser um projeto pessoal. Não é ilegítimo ter aspirações pessoais, mas o arrivismo é inaceitável. Imaginar que a esquerda seria invulnerável ao carreirismo, personalismo e individualismo seria pura ingenuidade. 

A ambição degenera, facilmente, em prestigismo e, em sua forma mais exaltada, em messianismo. A esquerda não precisa de líderes “salvadores”, “escolhidos”, “redentores”, “eleitos”. Esse perigo não é irrelevante, em um país como o Brasil, porque a tradição do caudilhismo, por variadas razões, é imensa. A armadilha de idealização de lideranças é fatal. Não é somente o dinheiro que corrompe. O apetite de poder deforma, também, o caráter.   

O pior padrão de funcionamento é aquele que repousa na autoridade de um chefe inquestionável. A grandeza do grande dirigente é, invariavelmente, uma ilusão de ótica. Ninguém é infalível. A alternativa não precisa ser um triunvirato no papel de arbitragem. Direções coletivas são mais complexas e lentas, mas mais fortes e equilibradas.  

Já dispomos de um amplo repertório de experiências sobre os modelos de sucessão. As transições, passagens, mudanças podem ser naturais ou artificiais, democráticas ou manipuladas, construídas ou caóticas, planejadas ou turbulentas, consensuadas ou conflitivas, transparentes ou palacianas, justas ou injustas. Sempre complicadas, e errar é comum, portanto. 

Conflitos geracionais são incontornáveis. Respeito, lealdade, e confiança são chaves.

Conflitos geracionais são incontornáveis. Respeito, lealdade, e confiança são chaves. O convívio entre gerações no interior de organizações de esquerda não é simples nem fácil. Existem, potencialmente, dois perigos. O primeiro é a força de inércia da autoridade dos mais velhos. Ela pode se transformar em um obstáculo para o crescimento dos mais jovens. Uma gerontocracia não pode ser o modelo de direção de uma corrente socialista. 

O segundo é a ruptura geracional, a substituição abrupta e, em consequência, a desmoralização dos veteranos. A ruptura do fio de continuidade pode precipitar uma deriva e até a fragmentação. 

Qual dos dois perigos é maior? Depende da história e do contexto de cada corrente. As pressões conservadoras de preservação das lideranças com mais experiência e prestígio são inexoráveis. As necessidades que sentem os quadros mais jovens de serem respeitados, também. 

A luta interna é incontornável em qualquer agrupamento político. Mas quando o desenho das disputas de posições coincide com uma fratura geracional se abre uma etapa perigosa de luta pela direção. A maior responsabilidade repousa nas mãos dos mais velhos. Os jovens têm direito á afoiteza, à precipitação, à ousadia. 

Três fatores merecem ser examinados: (a) a direção mais forte é a mais representativa do coletivo, tradição e renovação, reputação e lealdade; (b) experiência não deve se confundir com capacidade; (c) disposição não deve se confundir com força; 

Dois modelos são perigosos: (a) não se prepara a sucessão e os mais velhos permanecem intocáveis; (b) se estabelece uma solução jurídica para um problema político com limite inflexível de mandatos, e os mais velhos são excluídos.

O desafio da construção de instrumentos de luta estáveis e úteis é uma aposta em um processo que tem dimensões históricas e supera a escala de anos. Deve ser pensada na escala das longas durações. Uma medida que vai além do papel que, individualmente, nenhuma pessoa pode cumprir. A formação de novas lideranças é o desafio de qualquer direção.Essa é a força dos coletivos. 

Juntos não somos, somente, mais fortes. Podemos ser melhores.