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OPRESSÕES

Rafaella, professora de Vitória (ES), atacada por vereador bolsonarista: “Ele está ameaçando a nossa existência”

Por Gustavo Sixel, da redação
Isabelly Bicalho

Ato em solidariedade, no dia 21

Rafaella Machado dos Santos, 35, é professora de Língua Inglesa na Escola Estadual de Ensino Médio Professor Renato José da Costa Pacheco, em Vitória (ES). Na sexta-feira, 18, ela foi abordada dentro da escola por um vereador bolsonarista, Gilvan da Federal (Patriota), que foi questionar uma atividade que Rafaella havia passado para a turma do Primeiro Ano do Ensino Médio, com a temática do Dia do Orgulho LGBT. O vereador, em áudio que circulou na cidade, afirmou que iria acuá-la e que iria retornar na segunda-feira, 21, para “bater boca” e filmá-la. No dia marcado, o vereador não apareceu na escola. Mas estavam lá centenas de alunas, ex-alunas, professores e militantes, em um ato de solidariedade à professora, que já o denunciou ao Ministério Público e pretende fazer o mesmo na Câmara de Vereadores.

Nesta entrevista ao Esquerda Online, Rafa fala como foi a abordagem do vereador, a emoção no ato de solidariedade, os debates em sala de aula, a importância de uma educação inclusiva e sobre a potência das mulheres capixabas. Professora, com mestrado na UFES, negra, LGBTQI+, amante do carnaval e da música, educadora e militante da Resistência Feminista, Rafaella, após o choque inicial, está fortalecida: “Senti que estou no caminho certo”.


EOL – Como foi a abordagem do vereador, quando ele esteve na sua escola?

Rafaella – Eu estava em uma reunião com outros professores, e quando saí, ele estava na recepção. Estavam com a mãe de uma aluna e outro homem, que não sei quem é. Eu passei, ele disse que gostaria de falar comigo sobre a minha atividade. Eu pedi que procurasse a pedagoga, mas ele insistiu. Eu falei que não e entrei para buscar minhas coisas. Quando saí da sala dos professores, ele veio atrás de mim e chegou a passar de um portão, que é um limite. Ele insistiu várias vezes. Quando percebeu que não iria falar com ele, o tom de voz foi mais agressivo, ameaçador, falou que ia tomar providências sobre a atividade LGBTQI+ e que eu não poderia falar sobre isso em sala.

Eu fiquei um pouco assustada, né? Porque nunca um responsável de aluno – e ele nem é pai de aluno – me tratou assim em escola nenhuma, tentando me acuar. Eu dei as costas e fui dar aula.

Eu já sabia quem ele era e como está agindo em outras escolas, perseguindo profissionais da rede municipal. Tem vários casos, inclusive de uma professora que fez uma atividade com o tema família, na qual havia uma imagem de uma família LGBTQI+.

Como foi a atividade que você passou aos alunos?

Rafaella – Eu passei um texto [em inglês] sobre a origem do Dia do Orgulho LGBT, que é 28 de junho de 1969, contando sobre a Revolta de Stonewall em Nova York. A atividade tem também um trecho de um artigo de um professor e uma terceira parte, com definições de palavras como homofobia e cisgênero, retiradas de um dicionário.

Há uma lacuna de conhecimento sobre esses temas na escola, muitos alunos nem sabem o que é a palavra cisgênero. Como o inglês permite a promoção desse conteúdo transdisciplinar, minhas aulas dialogam com disciplinas de geografia, história, sociologia, filosofia e até de matemática.

Eu trabalho esse tema do orgulho LGBTQI+, desde 2017 na escola. E outros professores também trabalham estes temas. Não tem nada de errado nisso. Está em todos os documentos oficiais da educação, são temas transversais, que abarcam a diversidade. A pluralidade está prevista na Constituição.

Como se sentiu com o áudio no qual o vereador diz que vai te deixar acuada?

Reprodução

Rafaella – Eu fui alertada sobre o áudio por alunas, dizendo que ele me ameaçava. Mas eu não quis escutar. Depois que ele esteve na escola, ai eu pedi o áudio e enviei diretamente para advogados, que me orientaram a registrar um boletim de ocorrência. Só fui ouvir o áudio no sábado e não fiz imediatamente, por medo mesmo. Tive medo. Só registrei no sábado à noite, online.

Na mensagem, o vereador pede à mãe de uma aluna, para que a jovem não entregue o trabalho e fale com as amigas da turma. É gravíssimo isso, não?

Rafaella – É aliciamento! Ele está aliciando jovens. Esse vereador, definitivamente, não entende a capacidade dos nossos jovens, dos nossos adolescentes. Ficou claro que ele estava tentando colocar as alunas contra mim.
Mas isso provocou uma reação contrária: muitas alunas vieram me falar que não tinham feito a atividade, mas que agora iriam fazer!

Vitória tem um prefeito negacionista e um dos piores índices de mortes por covid. Como você avalia a situação política do Espírito Santo?

Rafaella – Olha, eu não acho que seja muito diferente do resto do país. Eu, sendo natural daqui, posso dizer que o Espírito Santo é um estado muito bolsonarista, talvez em uma expressão maior que em outros estados, e especialmente em Vitória.

Mas essa também é uma cidade com muito potencial de resistência. Existe muito movimentação cultural, artística, que tenta combater esse discurso de ódio e essas violências.

E quero enfatizar o papel das mulheres nessa cidade. Vitória tem um potencial feminino muito grande. As mulheres têm sido cada vez mais protagonistas, em situações que demonstram a força das capixabas. Temos aquela mulher que foi no aeroporto com um cartaz com as 500 mil mortes e que, apesar de todo o discurso de ódio, se manteve firme, com a cabeça erguida. Temos as vereadoras Camila Valadão (PSOL) e Carla Cozer (PT) na Câmara Municipal.

Ele acredita que vamos nos sentir acuadas. É um erro grotesco

A vereadora Camila também sofreu uma violência do vereador Gilvan, que no 08 de março, criticou a sua roupa, disse que ela não se dava ao respeito. Ela denunciou e o caso foi arquivado! Esse vereador parece preferir sempre atacar as mulheres, acho que ele acredita que nós vamos nos sentir acuadas. Isso é um erro grotesco dele, principalmente quando se trata da cidade de Vitória e das mulheres daqui.

Assistindo a transmissão, o ato foi muito empolgante e com muitas mulheres. Como você se sentiu?

Rafaella – O ato me surpreendeu. Ele foi todo organizado pelas alunas e eu tive notícia de que nenhum adulto, ninguém, estava tomando o protagonismo delas. Todes respeitaram o lugar delas. Fiquei sabendo que as alunas conduziram tudo, desde a organização, as falas, tudo no ato.

E, uma coisa importante, elas são minhas alunas há pouquíssimo tempo. Porque o ano começou agora, a gente quase não teve aula presencial, antes a gente estava remoto, e com turmas grandes…

Quando o ato chegou na frente da escola, eu fiquei emocionada. Eu chorei um pouco, porque não imaginava que esse tanto de gente pudesse ser mobilizada em 24 horas. Havia amigos, colegas da educação e, um destaque especial, muitas alunas e ex-alunas, algumas hoje calouras em universidades federais. Eu me senti apoiada. Fiquei surpresa, mas muito feliz. Senti que estou no caminho certo.

Ato na frente da escola
Ato em frente à escola. Foto: Isabelly Bicalho

No ato, você disse que não iria deixar de falar sobre empoderamento, sobre homofobia, sobre racismo… Qual a importância de debater esses temas?

Rafaella – A importância é porque essas pessoas existem. Nós, LGBTQIs, existimos. Nossos alunos existem. E quando um vereador faz um ataque desse tipo, ele não está atacando somente a liberdade de cátedra, ele está também atacando a nossa existência, a existência de pessoas que existem na sociedade toda, inclusive dentro das escolas.

Ele não está atacando somente a liberdade de cátedra, ele está também atacando a nossa existência

Eu não incentivo meus alunos a serem gays, porque eu sei que isso não é uma escolha. Eu sou LGBTQI+, os meus alunos sabem que eu sou, respeitam quem eu sou e entendem que todo o meu discurso em sala de aula é feito com o intuito de promover inclusão e combater preconceitos. Eles têm muita consciência disso.

Como é a relação em sala, como acontecem os debates?

Rafaella – Sem romantizar a profissão de professor, eu acredito no poder da afetividade. E muitos alunos e alunas sabem que eu estou sempre muito disposta a ouvi-los.

Os meus alunos sempre tiveram voz ativa. Todos mesmo, não importa a ideologia que vem de casa, a ideologia política, não importa. E nunca permiti que meus alunos em sala coagissem ou de qualquer forma ridicularizassem um aluno que, por exemplo, fosse a favor de Bolsonaro. Ninguém vai ofender ninguém por defender partido A ou partido B. Quando perguntam minha opinião, respondo, pontuando que é minha opinião. A única coisa que não permito é divulgação de notícias falsas, inclusive neste momento estamos fazendo uma atividade sobre fake news.

O Congresso está discutindo um projeto que pode permitir o homescholling, a educação domiciliar. O que você pensa a respeito?

Rafaella – Eu sou contra. A educação não é somente conteúdo técnico. Como educadora crítica, que tem como uma de suas bases Paulo Freire, não consigo imaginar uma educação inclusiva e plural sendo promovida somente no ambiente familiar. E digo isso independentemente da ideologia da família. Educação se faz com diversidade, com sociabilidade, e isso se faz em sala de aula, onde a gente consegue promover o diálogo. Os alunos necessitam – e gostam – da interação. Eles passam anos da vida na escola e é onde também se formam como cidadãos. Acho que esse projeto, se passar, vai prejudicar muito as próximas gerações.

Como dialogar com os responsáveis de alunos que acreditam que o tema da sexualidade não deve ser tratado na escola, mas somente em casa. O que você diria para eles?

Rafaella – Há toda a legislação que prevê o debate desses temas na escola, mas acho que o principal é o seguinte: cuidado com o ambiente que está sendo criado dentro de suas próprias casas. Porque sexualidade não é uma opção e muito menos fruto de uma má educação. Se seus filhos forem LGBTQI+, eles precisam saber que estão em um ambiente acolhedor. Não vão sofrer tanto em uma sociedade onde já são muitas as violências. E se não forem, esses temas farão com que não se tornem adultos preconceituosos.

É muito triste saber que os jovens têm que enfrentar violência dentro de suas próprias casas. Muitas vezes cria-se um ambiente hostil à diversidade. Se o intuito é garantir a felicidade de seus filhos, a melhor forma de fazer isso – e a única – é aceitando como eles são.