Trix Gomes*, de Teresina, PI
Aviso: texto escrito em linguagem neutra.
O que é Bissexualidade?
Costumo dizer que não existe uma definição simples e fechada de bissexualidade. São muitos os significados que encontramos por aí, muitos errados e outros que se complementam em um jogo de fluidez que é comum às monodissidências. Esta por sua vez é uma categoria político-comunitária proposta por Dani Vas (coletivo Bi-sides), na qual contempla todes aquelus que se atraem sexual e/ou romântica por mais de um gênero e tem como finalidade criar estratégias de enfrentamento ao monosexismo (ideia de que só existem duas sexualidades opostas e lineares: heterossexualidade, normal, e homosexualidade, patológica). Assim, pensar a bissexualidade e demais sexualidades monodissidentes, é iniciar um caminho árduo de enfrentamento a uma sociedade monosexista, (cis)heteropatriarcal e binária.
“Freud explica?”: o saber médico e o fazer bissexual
No fim do século 19, com o avanço das ciências psicológicas europeias, em especial da psicanálise, ampliaram-se os debates de categorização sobre corpos, desejos e sexualidades. Teoria da Inversão, Perversidade, Complexo de Édipo, Sexualidade Primitiva; são alguns dos conceitos que vão desencadear no aparecimento da bissexualidade enquanto um campo especificamente biomédico. Freud e a psicanálise vão ser responsáveis por alguns dos seguintes estigmas (bifobias) frequentes: “todes são bissexuais”, “bissexualidade não existe”, “bissexualidade é uma fase”. Vale destacar, que a teoria de que a bissexualidade seja uma fase reprimida do desenvolvimento sexual, ainda é adotada por algumes psicológues e profissionais da saúde mental.
Embora a bissexualidade não tenha sido patologizada da mesma forma que a homossexualidade, sujeites Bis enfrentam preconceito e intimidação para se adequarem a qualquer monosexualidade, preferencialmente para a heterossexualidade, mas, em alguns casos, a homossexualidade é cogitada como um campo de direcionamento. Assim, o monosexismo opera e reverbera também nos altos índices de vulnerabilidade mental bissexual, proporcionando um aniquilamento de corpes e subjetividades.
O biólogo Kinsey é outro nome conhecido, devido a popular escala que leva seu nome. Conforme ele, uma pessoa verdadeiramente Bi seria aquela que fica no meio, ou seja, que direciona os desejos sexuais para homens e mulheres da mesma forma e na mesma intensidade (atente-se aqui aos gêneros). Seria o que entendemos (erroneamente) enquanto bissexualidade: 50% hétero, 50% homo. Kinsey também é responsável pela ideia popular (errônea) de que “todes temos tendência a bissexualidade ou de que a bissexualidade seja atração por ambos os sexos e/ou dois gêneros”.
Somente nos anos 70 que o movimento bissexual ganha autonomia e separa-se do movimento gay e lésbico. Em 1990, tem-se um importante marco para Bi-ativistas: lançamento do “Manifesto Bissexual” publicado na revista “Anything that moves” (“Qualquer coisa que se mova”).
“Nós estamos cansades de sermos analisades, definides e representades por outras pessoas que não nós mesmes, ou pior ainda, não considerades em absoluto. Nós somos frustrades pelo isolamento imposto e pela invisibilidade que vêm de nos dizerem ou esperarem que escolhemos ou uma identidade homossexual ou heterossexual. Monossexualidade é um ditame heterossexista usado para oprimir homossexuais e para negar a validade da bissexualidade. Bissexualidade é uma identidade completa e fluida. Não presuma que bissexualidade seja binária ou duogâmica por natureza: que temos “dois” lados ou que devemos nos envolver simultaneamente com ambos os gêneros para sermos seres humanos completos. De fato, não presuma que só existem dois gêneros. Não confunda nossa fluidez com confusão, irresponsabilidade, ou incapacidade de ter compromisso. Não iguale promiscuidade, infidelidade, ou comportamento sexual inseguro com bissexualidade. Esses são traços humanos que cruzam todas as orientações sexuais. Nada deveria ser presumido sobre a sexualidade de qualquer ume, incluindo a sua. Nós nos zangamos com aquelus que se recusam a aceitar nossa existência; nossas questões; nossas contribuições; nossas alianças; nossa voz. É hora de a voz bissexual ser ouvida.” (tradução de Vitor Rubião, disponível aqui)
Breve síntese do movimento bissexual brasileiro
O movimento organizado Bi ainda é recente. Um dos coletivos brasileiros mais conhecidos, Bi-Sides, surge em 2010. Mas antes, já havia ações auto organizadas voltadas para as pautas, tais como o Espaço B, os extintos CBB – Coletivo Brasileiro de Bissexuais e o Núcleo Bissexuais do Estruturação – BIS.
A partir daí, surgem diversos coletivos pelo Brasil, tais como o Coletivo BIL – Coletivo de Bissexuais e Lésbicas (MG), MovBi – Movimento de Bissexuais (PB), ComBI – Coletiva de Mulheres Bissexuais (SC), Frente Bissexual (BH/MG), Coletivo Amora (RS), Maria Quitéria – Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (PB), Frente BI (PI), Bisibilidade (RJ), dentre outros. Em 2014, houve a alteração do antigo SENALE (Seminário Nacional de Lésbicas e Mulheres Bissexuais) para SENALESBI, dando assim visi-BI-lidade. E no ano de 2020, nasce a Frente Bissexual Brasileira – FBB, uma articulação em rede de caráter anti-racista, transaliade e anti-capacitista.
Ativismo Bi, feminismo, antirracismo, transgeneridade e anticapitalismo
A saída para Bi-intervenções, perpassa uma localização sócio-histórica. Aqui, faço questão de dizer que não se pode construir um ativismo bissexual sem estar atente às estruturas de dominação que tanto nos causam sofrimento, exploração e morte.
O capitalismo, aliado ao colonialismo e ao racismo, fortificou formas de regulação dos corpos, tais como a heteronormatividade, a binariedade de gênero e o conceito de família. Assim, para o sistema capitalista, as desigualdades de gênero, violência contra mulheres e LGBs, genocídio do povo negro e da população Trans e a marginalização de PCDs são fundamentais para a manutenção de poder concentrada em uma minoria.
É incoerente pensar uma luta Bissexual que não esteja pautada em um projeto político feminista (negro e trans) de superação patriarcal, de defesa das liberdades sexuais e reprodutivas, de subversão e desvio da heteronorma e binariedade de gênero ou que não discuta masculinidades. O movimento bissexual é misto e isso possibilita a construção de novas noções de masculinidades, que destoam da hegemônica (branca, cis, hétero, burguesa).
É importante destacar, por exemplo, como os estigmas operam de forma diferente entre homens, mulheres e demais gêneros. A bissexualidade é tida (equivocadamente) como exclusivamente sexual. Aos homens, recai o vetor de ISTs, às mulheres, a hiperssexualização e às pessoas não binárias, a exclusão. Da mesma forma, o preconceito se mostra diferente pelo aspecto racial. A hipersexualização de corpes negres (em especial das mulheres pretas), a solidão da mulher negra, a construção da masculinidade e do afeto do homem negro, são temáticas que interseccionam com os debates Bissexuais.
Ademais, bissexualidade e transgeneridades se encontram ao cruzarem as fronteiras de sexualidade e gênero, respectivamente. E isso não significa que estou dizendo que as duas são a mesma coisa ou que pessoas BIs e Trans sofrem da mesma forma. Lembremos que o Brasil é o país do Transfeminicídio. O que quero dizer é que, particularmente, para mim, a minha vivência da bissexualidade me fez poder viver de fato a experiência do meu gênero (não-binário). A bissexualidade, como já venho dizendo anteriormente, não é binária, nem trans excludente.
Muito se diz, também, que a Bissexualidade e as demais monodissidências sejam moda entre a juventude devido à ampla aceitação e grande número de jovens reivindicando essas sexualidades para si. Se pararmos para analisar a recente trajetória desse movimento, é de se esperar que com uma maior visi-BI-lidade nessa última década, maior seja o número de pessoas que se identifiquem com tais sexualidades. Ainda mais, a juventude que acompanhou todo um processo de surgimento de coletivos e fóruns nas redes sociais brasileiras. A ideia de que seria uma moda específica da nova geração, minimiza a existência de um movimento organizado e ignora a urgência do debate.
Podemos fazer, também, a análise de que o boom desses coletivos, a partir de 2013/2014, se dá como uma criação de espaços seguros e resposta ao crescimento do fundamentalismo e do neofascismo no Brasil, que tem como uma das características principais o conservadorismo e a ojeriza a qualquer pauta de combate às opressões e direitos humanos. A Frente Bi do Piauí que ajudei a fundar, em 2018, surgiu da necessidade de acolhimento, afeto e pertencimento após um período de constantes ataques à educação, com esvaziamento do debate de gênero na Base Nacional Curricular Comum, aliança do desgoverno com bancadas religiosas, a propagação de uma “ideologia de gênero” e o pânico moral/sexual crescente durante o período eleitoral que culminaram na eleição de Bolsonaro. Não obstante, a defesa pela família burguesa, heterocentrada, cisgênera, monogâmica e de caráter reprodutivo, são intrinsecamente contrárias à existência Bissexual.
A Bissexualidade causa angústia, temor e confusão naquelus que optam pela manutenção de um regime normativo. Invisibilizar as pautas do movimento Bi é reafirmar seu caráter subversivo. Só seremos livres, quando todes forem. Para isso, é preciso libertar a (BI)sexualidade rompendo com as opressões de gênero, raça e classe. E a juventude tem força e voz para tal.
Em uma sociedade monosexista, ser bissexual é revolucionário!
Resistiremos!
Fora Bolsonaro!
*militante do Afronte Piauí e da Resistência/PSOL
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