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120 anos de Henri Lefebvre, o autor da Revolução Urbana

Neste 16 de junho, o marxista francês completaria 120 anos

Cidade e luta de classes

A Coluna busca aproveitar o pensamento marxista sobre os conflitos de classe na cidade. Num mundo marcado pela generalização da urbanização e das suas periferias, as contradições do espaço urbano são elementos fundamentais de um programa político revolucionário do século XXI.
Por Carolina Freitas, militante e pesquisadora marxista sobre o urbano. Mestre e doutoranda pela FAU-USP.

Henri Lefebvre nasceu há exatos 120 anos na França. Ele é geralmente conhecido no Brasil por ser o autor marxista dos livros Direito à Cidade, escrito meses antes de maio de 1968, e Revolução urbana, em 1970. Neste período, ele ainda publicou A vida cotidiana no mundo moderno (1968); Do rural ao urbano (1970); O pensamento marxista e a cidade (1972); Espaço e Política (1972); La survie du capitalisme [A sobrevivência do capitalismo] (1973); e A Produção do Espaço (1974). As contribuições dessas obras, além de úteis aos revolucionários da atualidade, parecem estar por serem ainda inauguradas, meio século depois. 

Henri Lefebvre teve uma grata longevidade: viveu de 1901 a 1991 e por isso pôde acompanhar as principais experiências da luta de classes na “aventura revolucionária do século XX” (1). Não foi, na acepção cultural da expressão,  um “intelectual parisiense” (2): nasceu e viveu até a juventude numa cidade camponesa no sul da França, na fronteira com a Espanha. Mudou-se para Paris quando ingressou como estudante na Universidade Sorbonne, onde conheceu toda a vanguarda surrealista e o movimento anarquista francês da década de 1920. 

Entusiasmado com a Revolução Russa, tornou-se militante do Partido Comunista Francês em 1928. Foi dele um importante quadro durante 30 anos. Operou fugas nas fronteiras do país quando organizado na Resistência antinazista durante a II Guerra Mundial, na coluna situada nos Pirineus, divisa onde nasceu; foi responsável por dirigir a escola de formação para militantes operários do Partido; trabalhou como operário da Citroën e como taxista nas ruas de Paris. 

Cada um dos momentos da sua trajetória militante no PCF se entrelaça com períodos de criação intelectual notáveis. Foi durante sua atuação na Resistência anti-nazista que estudou profundamente sobre a sua própria vila e a história das lutas camponesas pré-capitalistas na região, circunstância que também o confere depois como expoente da sociologia rural e investigador do insistente problema marxista da renda da terra tratado por Marx no Livro III d’O capital; foi sua participação na formação política e teórica pelas publicações da organização que o levaram a traduzir textos fundamentais da juventude de Marx, como os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, inédito em francês pelo seu trabalho e também fundamental nas batalhas contra a centralização soviética do partido; e foi sua experiência trabalhando nas ruas de Paris que certamente contribuiu para a vivacidade formulativa das suas investigações que atravessaram décadas sobre o cotidiano no capitalismo. 

Nesse percurso, as polêmicas que Lefebvre protagonizou estão inscritas na história de debates do PCF e se confundem com a oposição ao stalinismo na França, sobretudo no pós-guerra, seja no confronto à direção obreirista que conduzia o partido, seja no campo teórico, no seu combate ao estruturalismo althusseriano, munido da reconstituição da dialética em Marx e Hegel; ou, ainda, seu enfrentamento aberto ao regime na URSS desde a década de 30, mas sobretudo no cume da fila daqueles que se opuseram à direção do PCF depois do relatório de Kruschev, em 1958 (quando a direção o expulsa oficialmente do partido). 

Foi interlocutor de um amplo espectro de intelectuais, como György Lukács, Andre Breton, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Herbert Marcuse, Nico Poulantzas, Guy Debord, Michel Foucault, alguns dos críticos sociais com quem diretamente polemizou em seus debates. Foi, desde jovem, um exímio estudioso do pensamento moderno, especialmente da obra de Hegel, Nietzsche e Marx. Conhecido orador, foi professor na Universidade de Nanterre, onde costumava dar suas aulas e palestras regulares a centenas de estudantes no anfiteatro. Seus estudos sobre a dialética certamente foram essenciais a toda uma geração marxista anti-stalinista no país. Ali, foi orientador e mentor da juventude trotskista que dirigiu politicamente a revolta de maio, como Alain Brossat e Daniel Bensaid, quem fazia, orientado por Lefebvre, seus estudos sobre “a crise revolucionária em Lenin”. 

É particularmente interessante que, motivado pelas comemorações do centenário do volume I d’O capital na França, ele tenha publicado nos meses anteriores à maio de 1968 o livro Direito à cidade, certamente influenciado pelo seu convívio com os situacionistas, sobretudo Guy Debord, e suas discussões sobre alienação, ideologia e cotidianidade. Pela curiosidade não arbitrária de ter lançado o livro-manifesto pouco tempo antes do movimento em curso naquele mês, Lefebvre tornou-se uma figura “profética” da irrupção de maio, expressão com que ele mesmo se referiu à revolta em outras publicações (Lefebvre, 1968b). 

‘O direito à cidade’, evocação pulsante do processo revolucionário na sociedade urbana, expressava, para Lefebvre, dialeticamente, o mal estar social profundo do modo de vida das cidades e, ao mesmo tempo, a urgência de uma outra vida, radicalmente transformada e hodierna, pelo proletariado. A par da latência constante do seu otimismo revolucionário, ele não se furta em serpentear os níveis variados da crítica: atravessa da sociologia do cotidiano à economia da renda diferencial urbana; da denúncia política à tecnocracia do Estado à metafilosofia das representações, fazendo das ondulações desses níveis uma busca esfomeada pela negatividade do mundo capitalista.

Não é menor aos olhos de Lefebvre, para a transição revolucionária que se consagrava nesta expressão, a conclusão, naquele momento, que o proletariado vivia uma nova conjunção social naquela segunda metade do século, distinta das classes politicamente organizadas nas experiências revolucionárias do seu início. Embora o ‘direito à cidade’ tenha ganhado força atualmente em processos novos da luta de classes, frequentemente conduzidos pelo o que se chama “novos movimentos sociais”, as raízes de 68 investigadas por Lefebvre nos parecem ainda minorizadas pela crítica marxista geral. Descrevem-se processos contraditórios relacionados à ampla mundialização urbana, mas eles permanecem parcialmente ocultos ou não suficientemente explicados.

Diante desta tarefa, o primeiro grande legado de Lefebvre a ser recuperado é seu método, o grande projeto intelectual da sua vida, presente em toda a sua profícua obra: a dialética. Seu esforço fulcral foi pensar uma dialética espacial; é como ele justifica na sua crítica em A revolução urbana: “De Heráclito a Hegel a Marx, o pensamento dialético esteve vinculado ao tempo”. Compreender o capitalismo moderno através da espacialidade é uma tarefa intelectual profundamente inovadora e foi premonitória dos acontecimentos políticos que se sucederam no mundo.

A afirmação condutora da obra de que o urbano detém uma centralidade nos processos revolucionários, mas também nas transformações das relações de produção e da técnica das forças produtivas, caracteriza o que Lefebvre chama de transição da sociedade industrial à sociedade urbana, um processo muito mais profundo e duradouro do que as próprias revoltas que se exprimiam naquele momento, apenas comparável ao processo histórico de transição da sociedade agrária à sociedade capitalista industrial. 

A urbanização mundial do século XXI certamente tem implicações para o internacionalismo anticapitalista. O horizonte da revolução urbana de Henri Lefebvre, a ideia de que o espaço urbano generalizado seria o substrato da imaginação revolucionária, ao figurar no nervo das contradições econômicas e ideológicas do capitalismo contemporâneo, nos provoca a pergunta sobre qual será o espaço da libertação humana quando o tempo não significar mais a tirania da exploração de classe. Cabe apenas a nós restituir um projeto crítico revolucionário próprio do nosso tempo-espaço porque Henri Lefebvre está morto (mas longa vida a Lefebvre!).

*Carolina Freitas é mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e militante da Resistência Feminista

NOTAS

(1) Nome da biografia do autor escrita por um de seus alunos, o professor de pedagogia da Universidade Paris VIII, Remi Hess: HESS, Remi. Henri Lefebvre et l’aventure du siecle
(2) José de Souza Martins faz este comentário na mesa ‘20 Anos Sem Henri Lefebvre’, no 35o Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu-MG (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vUbLUYhDhRw), e comenta algo similar na introdução de um importante livro brasileiro de estudos sobre a obra de Lefebvre organizado por ele (MARTINS, José de Souza (org.). Henri Lefebvre e o Retorno à Dialética. São Paulo: Hucitec, 1996.