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BRASIL

A batalha das narrativas: verdade e pós-verdade no governo de Bolsonaro

Valmir Arruda e José Pereira de Sousa Sobrinho, de Fortaleza, CE
(Fernando Frazão/Agencia Brasil)

Nenhuma categoria foi tão bem apropriada pelo atual governo brasileiro como a “pós-verdade”. Assentada na ideia que emoções, sentimentos e crenças devem prevalecer diante de fatos objetivos, a verdade não passa de um “jogo” de narrativas. O termo “essa é a sua opinião” é alargado para tudo e todos os tipos de assuntos, dados da realidade são distorcidos e interpretados da forma com que melhor se adeque a afirmação dessa narrativa.

A consolidação dessa prática é impulsionada pela “liberdade” das redes sociais, onde o único responsável é quem faz a postagem, as plataformas têm suas diretrizes muito amplas. Como aponta estudo feito pelo grupo Intervozes (2020) que analisou as cinco plataformas mais utilizadas no Brasil (Facebook, Instagram, WhatsApp, YouTube e Twitter) destacando que essas não possuem “uma política específica nem trabalha com definição própria de desinformação”. O estudo aponta ainda que a preocupação com as informações postadas deve ser exclusiva de quem faz a postagem, a plataforma serviria apenas como espaço para que pessoas “possam se manifestar livremente” contando com regras gerais mais restritivas apenas para conteúdos “que exaltem terrorismo, crime organizado ou grupos de ódio e nudez”. As inclinações políticas, sejam elas progressistas ou conservadoras, estão liberadas. Compreendendo a força desses novos mecanismos de comunicação os conservadores americanos ocuparam esse espaço virtual ajudaram Donald Trump a vitória nas eleições de 2016. Evidentemente esse não foi o único fator que levou o candidato americano ao êxito, mas sem dúvida ali nascia uma nova ferramenta, muito bem apropriada pelo campo conservador no Brasil, as fake news.

A ausência de uma regulação da distribuição da informação e a suposta liberdade desse espaço virtual é onde o Bolsonarismo encontra campo fértil para a propagação de seu ideário. A estratégia adotada na campanha eleitoral de 2018 já deixa claro como seria o uso das redes sociais pelos apoiadores de Bolsonaro. Fundamentados em fake news propagadas amplamente nas redes sociais, seus seguidores replicavam em grupos e mais grupos notícias falsas que eram confirmadas por youtubers. Com essa prática os jornais tradicionais eram desqualificados e tendenciosos. Nesse marco, a própria dinâmica da indústria tradicional de jornalismo que condiciona o acesso aos seus jornais à assinaturas pagas acaba excluindo uma parcela importante de possíveis leitores, restringindo o acesso à informação a matérias gratuitas distribuídas em redes sociais. Assim, longe dos instrumentos tradicionais de jornalismo, a verdade agora poderia ser acessada na palma da mão através do celular, em grupos, ou páginas do face, com uma linguagem direta usando jargões como família, contra a corrupção e em nome de Deus e na maioria das vezes compartilhada por pessoas com vínculos pessoais e laços de confiança, como familiares, membros da igreja ou o amigo do trabalho que acabam validando essas informações como verdade.

Durante a pandemia estamos vivendo um verdadeiro show de horrores de mentiras e mais mentiras ditas aos quatro cantos, podemos destacar, por exemplo, como é feita a propaganda sobre a vacinação. Na narrativa bolsonarista o Brasil é o quarto país do mundo com mais doses da vacina aplicada, pois na conta dos apoiadores do presidente só se considera os valores absolutos. Enquanto no raking de vacinação por habitante, o dado correto para se avaliar o ritmo da vacinação nos países com mais de um milhão de habitantes o Brasil configura o 68° lugar.

Os dados são da própria Organização Mundial da Saúde e estão sendo amplamente divulgados, porém a guerra de narrativas, mediada pela restrição do acesso, impede que a busca pela verdade esteja fundamentada em dados da realidade. Não cabe interpretações quando falamos do concreto, é um grave problema quando lidamos com percepções pessoais sobre tudo, ultrapassamos os limites da subjetividade e o amplo acesso a informações, verdadeiras ou não, tornaram as redes sociais detentoras de todo o saber, de toda a verdade, que me permite escolher aquela que melhor atenda aos meios anseios de interpretação da realidade.

Contudo, todo esse cardápio de interpretações e informações sobre a realidade não são isentas de um projeto político e amplo de sociedade. A verdade que todas culminam com o projeto neoliberal. Em narrativas simples, mas que comportam um forte teor da ideia de transformação do presente em busca de um futuro utópico baseada na ampla liberdade individual. Assim, a extrema direita tenta assumir um lugar de crítica radical do presente respondendo a desejos de mudança em torno da precariedade da vida, a busca de uma  sociedade da felicidade, mas defendida sempre a lógica neoliberal, a destruição da corrupção, uma nova moral onde  prevalece a liberdade individual absoluta para que todos possam resolver  seus problemas, soluções que virão sempre da vontade e capacidade individual.  Nessa sociedade almejada no qual prevalecerá cada vez a ampliação da liberdade individual, já sustentada no presente,  se fortalece a ideia de que basta você querer que aquela situação será superada, mas sempre com a resposta pronta quanto a falha no êxito, se não der certo a culpa é somente sua que não se esforçou o suficiente para alcançar o  sucesso. Propagando esse imaginário, essa ideia absoluta de liberdade do projeto neoliberal  é parte e se combina com a tese de que a realidade é apenas uma questão de ponto de vista, de opinião individual, e deve prevalecer a liberdade de expressa-la acima tudo. Nesse discurso as questões objetivas que estão associadas a uma coletividade, e que definem a sobrevivência desses indivíduos são desconsideradas.

Como se resolve o problema da fome, do desemprego, a falta de moradia que milhões de brasileiros e brasileiras estão tendo agora? A narrativa mais fácil, normalmente usada pelo Bolsonarismo, é apontar que essas são pessoas “vagabundas”, que se acomodaram nos governos anteriores com o “bolsa família” e querem viver no “bem bom”. Nesse momento desconsideram os valores que eram pagos, que sequer conseguiam garantir alimentação e moradia. Não tem como contestar os preços numa mercearia, tem que ter o dinheiro para comprar o alimento, não tem como distorcer o valor do aluguel, ele tem que estar pago senão a ordem de despejo vêm.

A negação da realidade é o caminho mais fácil para aceitar as contradições impostas pela sociedade do capital. O abismo social no Brasil só cresce com a “batalha de narrativas” e quem paga a conta são os trabalhadores e trabalhadoras que estão se arriscando dia-a-dia durante a pandemia para garantir sua sobrevivência. Enquanto se discute a realização ou não de uma competição esportiva a Eletrobrás é entregue a inciativa privada nacional e internacional. A CPI da covid está ao mesmo que escancara a péssima gestão da pandemia, mas é incapaz de representar uma saída imediata para a crise social para a qual fomos empurrados por esse governo.

Se as instituições – parlamento e judiciário – se eximem de uma resolução real da crise. A nossa alternativa acaba sendo ocupar as ruas no dia 19 de junho para exigir vacina no braço e comida no prato, a batalha das narrativas tem que ser ganha nas ruas. O grito FORA BOLONARO tem que ecoar pelo país e só a luta irá valer o luto pelos quase meio milhão de brasileiros e brasileiras que morreram por conta da necropolítica, do negacionismo e do descaso do governo diante da pandemia.