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CULTURA

Os sentidos de uma morte: Nelson Sargento, pandemia e o neofascismo no Brasil atual

Romulo Mattos*, do Rio de Janeiro, RJ
Nelson Sargento está sentado à mesa, no palco, cantando segurando o microfone. Ao fundo, um músico. A foto é preto e branco e há luzes dos dois lados
M.R. Oliveira / Divulgação/TV Brasil/Abr

O artista Nelson Sargento construiu uma história reconhecida dentro do samba. Citando os pontos mais altos de sua atuação dentro desse gênero, foi escolhido presidente da Ala de Compositores da Mangueira (1958), apresentou-se profissionalmente no Zicartola (1963-1965), participou do espetáculo Rosa de Ouro (que resultou em dois discos, um em 1965 e o outro em 1967), lançou LPs anuais com o conjunto A Voz do Morro entre 1966 e 1967 e outros três com Os Cinco Crioulos, de 1967 a 1969, além de ter gravado álbuns solo a partir de 1979, quando fez circular o seu “Sonho de um sambista”. Se não bastasse, as suas canções foram gravadas por Paulinho da Viola, Elizeth Cardoso e Beth Carvalho, entre outros. Não se trata aqui de escrever um texto de caráter encomiasta, apenas para exaltar o sambista como um “gigante” do estilo musical que praticou, tampouco assinalar a sua condição de promotor de uma heroica resistência cultural contra o imperialismo – a não ser que queiramos naturalizar instâncias de consagração artística, no primeiro caso, ou incorrer em uma essencialização do samba, no segundo. Este texto tem o objetivo de apontar para os diferentes significados (sociais e simbólicos) de sua morte em decorrência da Covid-19.

Inicialmente, deve ser ressaltado o aspecto humano dessa história. Sargento chegou aos 96 anos com saúde e lucidez, portanto, em condição de manter uma agenda de apresentações pelo país. Mas a trajetória desse idoso nonagenário, e profissionalmente ativo, veio a ser interrompida por uma pandemia descontrolada no Brasil, que vem mantendo a sua infame condição de epicentro mundial, por insistência de um governo de cariz neofascista, isolado mundialmente na mais radical posição antivacina. Esse mote nos leva à tocante manifestação do ator Lima Duarte, em 2020, por meio de um vídeo em que denunciou a “devastação dos velhinhos” no país. Quanto a esse aspecto, vale citar a recusa do governo à adoção de medidas de isolamento social, de implantação de barreiras sanitárias e de esclarecimento da população para o controle da pandemia numa época em que ainda não havia a produção de vacinas. Certos articulistas apontaram para a possível existência de uma política eugenista, de melhora genética da população brasileira por meio da exclusão dos corpos indesejáveis, embutida no comportamento negacionista do presidente Jair Bolsonaro, segundo o qual a pandemia seria uma chuva, e todos sairiam molhados dela. A tradução economicista dessa metáfora mortífera foi realizada pela assessora de Paulo Guedes, Solange Vieira, para quem a concentração de mortes entre os idosos seria positiva para o desempenho econômico – conforme foi noticiado na grande imprensa. Já o citado ministro da Economia mencionou a suposta incapacidade de investimento estatal para acompanhar a busca por atendimento médico recente, e reprovou certa tendência em curso no Brasil: a de que “Todo mundo quer viver 100 anos, 120, 130”. Essa declaração ganhou as redes sociais talvez por mostrar que o governo Bolsonaro “é a burguesia sem superego, é a verdade revelada do capitalismo”, nos termos de Felipe Demier (1). 

Para além da verbalização por agentes da área econômica da ideia de que a vida prolongada prejudica as contas públicas, o presidente teria incentivado a criação de dificuldades burocráticas para a aprovação da CoronaVac. Sargento tomou as duas doses dessa vacina, embora integrasse o grupo de risco, fosse pela idade avançada, fosse pelo câncer contra o qual lutava. De qualquer maneira, a oferta das vacinas com a melhor eficácia dentro da sua faixa etária, pela Pfizer, foi recusada ou mesmo ignorada pelo ministério da Saúde, sob a gestão do general Eduardo Pazuello. Essas informações são baseadas nos depoimentos prestados na CPI da Covid pelo presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, e pelo gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo.   

Além dos idosos, a Covid tem afetado desproporcionalmente os negros no Brasil, os quais morrem 40% mais em relação aos brancos, o que se relaciona com o racismo estrutural brasileiro. Também nesse aspecto a morte de Sargento é simbólica, tendo em vista a existência de um governo cujo presidente respondeu na Justiça Federal do Rio de Janeiro por declarações ofensivas a negros e quilombolas (tendo sido absolvido após condenação em primeira instância); cujo vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou que o Brasil herdou a indolência do índio e a malandragem dos negros; e cujo assessor especial da Presidência, Filipe Martins, fez gesto que alude à supremacia branca em sessão do Senado. Não obstante, o “cimento ideológico” da popularidade do presidente provém de ingredientes que compõem a resposta à criminalidade urbana baseada na violência estatal ou miliciana, expressa no ditado “bandido bom é bandido morto”. Nesse caso, a  associação midiática entre a população negra periférica e a criminalidade reforça o componente racista da ideologia bolsonarista (2). O sambista lembrou a contribuição do Vasco da Gama à luta contra o preconceito em “Casaca,  Casaca”, e escreveu o verso “Samba, negro forte e destemido”, de “Agoniza mas não morre”.   

O tipo de música praticado por Sargento contém a ênfase de elementos da etnicidade negra em sua constituição.

O tipo de música praticado por Sargento contém a ênfase de elementos da etnicidade negra em sua constituição. Aqui vale lembrar que o avanço político de Jair Bolsonaro ocorreu a partir de sua associação a lideranças vinculadas a denominações pentecostais – mais especificamente, pastores que demonizam a cultura religiosa e popular, relacionada ao candomblé, ao samba, ao carnaval e à capoeira. A matriz discursiva “evangélica” transformou o termo “macumbeiro” novamente em xingamento, e afirma que as referidas manifestações são formas de profanação, imoralidade e feitiçaria. Muitos são os relatos de perseguição aos adeptos dos cultos afro-brasileiros, seja em seus locais de oração, invadidos ou destruídos, seja nas escolas, onde as crianças do candomblé se sentem descriminadas. Não pode passar despercebido que a “bancada da bíblia”, à qual o chefe de Estado se aliou, conta com muitos conservadores católicos.   

O último sentido da morte de Sargento diz respeito ao fato de que era um artista, e nessa condição praticou não só o samba, como a literatura, a pintura e a arte cênica. Nesse ponto, convém abordar que as ideias do astrólogo Olavo de Carvalho conferiram a Bolsonaro uma espécie de teoria neofascista, em que há um “requentado anticomunismo no espírito da guerra fria” (3), francamente hostil à produção cinematográfica, teatral, literária, musical e de artes plásticas, mas também intelectuais. Os seus agentes são atacados pelo governo por meio do corte de financiamento, da detração pública ou da censura disfarçada em burocracia (4). Do grande número de episódios nesse sentido, podemos destacar as ofensas verbais à atriz Fernanda Montenegro, proferidas pelo hoje ex-presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Dante Mantovani, que se tornou ainda mais conhecido por ter condenado o rock como uma música associada às drogas, ao sexo livre, à indústria do aborto e ao satanismo. Outro episódio de grande repercussão foi o discurso do então secretário especial de Cultura, Roberto Alvim, com trechos plagiados do antigo ministro nazista Joseph Goebbels. Em conexão com as intenções do governo Bolsonaro para a sua pasta, havia em suas palavras (amparadas por cenário e performance puramente nazis) a concepção da cultura como suporte da política, e o clamor pela arte interessada por criar o novo homem, o novo regime e o novo tempo, sendo necessários o apagamento e a reescrita da História e da cultura brasileiras. Se não bastasse, os sentidos dessa mescla entre arte, cultura e propaganda política são captados e ampliados pela atuação da base social do bolsonarismo nas ruas e nas redes sociais. O resultado dessa interação é que artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre outros, são alvos de perseguição pessoal. Para completar esse quadro, em setembro do ano passado, Guedes cortou R$ 36 milhões de reais de cinco órgãos ligados à secretaria de Cultura. 

A morte de Sargento – negro, idoso e artista/sambista – em decorrência da Covid tem, portanto, diferentes significados no Brasil de hoje, em que a construção de um rico e amplo debate político e ideológico é inviabilizado pelo neofascismo, assim como a democratização da cidadania, que se mantém cada vez mais como um privilégio de classe em um ambiente profundamente conservador e excludente. Em um regime fragilizado pela militarização e a fascistização oriundas do atual governo, a relação desse com a liberdade e a democracia – reivindicadas para a construção de um novo Brasil e o consequente combate às oposições de esquerda – lembra a ironia cantada pelo sambista: “O nosso amor é tão bonito, ela finge que me ama, e eu finjo que acredito”.    

NOTAS

(1) Felipe Demier, Discussão na sala de jantar da casa grande: quem cortará nossos direitos durante a pandemia. Esquerda Online, Rio de Janeiro, 25 de mar. de 2020.  https://esquerdaonline.com.br/2020/03/25/discussao-no-jantar-da-casa-grande-quem-cortara-nossos-direitos-durante-a-pandemia/. Último acesso em maio de 2021. 

(2) MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020. p. 180-1. 

(3) ibid. p. 173. 

(4) ibid. p. 174.