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BRASIL

O programa das ruas: uma resposta à Folha de S. Paulo

Ao contrário de outros jornais, a Folha destacou os protestos do 29M, mas com críticas a uma suposta “ausência de um programa” por parte da esquerda, que nada mais é do que uma tentativa de subordinar a oposição à Bolsonaro a agenda neoliberal, de reformas e privatizações

Marco Pestana, do Rio de Janeiro, RJ
Foto mostra a Av. Paulista, à noite, tomada por manifestantes, de costas, caminhando.
Elineudo Meira / Fotografia.75

Manifestação do 29M em São Paulo (SP)

Os atos do dia 29 de maio (29M), ocorridos em centenas de cidades do Brasil e do exterior, significaram o retorno às ruas da oposição a Bolsonaro. A despeito dos riscos decorrentes do descontrole da pandemia de Covid-19 no país, era absolutamente necessário dar uma resposta contundente às recentes mobilizações de viés golpista do bolsonarismo, que segue atuando para enfraquecer a CPI da Covid e minar a legitimidade de uma eventual derrota em 2022. E a resposta foi dada, estabelecendo um significativo contraste em relação às manifestações da extrema-direita, tanto pela maior capilaridade e alcance do 29M, quanto pelos cuidados sanitários adotados pelos presentes (uso de máscaras, álcool em gel e algum distanciamento).

A despeito da importância dos atos do 29M, saltou aos olhos a postura da grande imprensa empresarial, que praticamente escondeu o acontecimento de seus leitores. A versão impressa de O Globo de 30 de maio, por exemplo, só tratou das manifestações em sua página 17. Já O Estado de S. Paulo, por sua vez, tinha como principal chamada em sua capa “Cidades turísticas se reinventam para atrair o home office”, apresentando apenas uma pequena chamada para a reportagem sobre os atos. Trata-se de opção coerente com o histórico e a linha editorial desses jornais, que buscam enfraquecer Bolsonaro sem comprometer o programa econômico do neoliberalismo selvagem e evitam conferir qualquer centralidade às ações da esquerda e dos movimentos sociais.

Nesse cenário, a postura destoante ficou por conta da Folha de S. Paulo, que não apenas conferiu destaque ao tema em sua capa, como publicou um editorial em seu site ainda na noite do próprio dia 29. Isso não significa que haja uma oposição ou uma diferença radical entre as posições da Folha e dos outros dois jornais citados, mas apenas que aquela persegue objetivos estratégicos similares por meio de outro caminho tático. A rigor, essa distinção não é sequer inédita em nossa história recente, uma vez que, frente ao golpe de 2016, a Folha defendeu a realização de novas eleições em lugar da posse de Michel Temer (MDB), sustentada pelo Estadão e por O Globo.

O editorial da Folha

Em seu editorial, a Folha saúda os atos do 29M, destacando, inclusive, suas diferenças em relação às ações de rua do bolsonarismo e qualificando “a crítica nas ruas do sábado a Bolsonaro [como] justa e até tardia”. Partindo dessa localização inicial, a maior parte do texto é dedicada a apresentar o que seriam os principais desafios da esquerda para ampliar sua força social e, eventualmente, triunfar nas eleições presidenciais de 2022. Fica clara sua intenção de operar fundamentalmente nos marcos do calendário eleitoral, não havendo nenhuma menção à possibilidade de um processo de impeachment de Bolsonaro.

Assim, de acordo com a Folha, o caminho para a esquerda passaria, centralmente, por limitar o escopo de suas reivindicações, de forma a buscar conquistar setores sociais ainda influenciados pelo antipetismo. No registro do jornal, isso só seria possível caso aquele campo político superasse sua carência de “consistência programática” e se concentrasse em “apresentar propostas concretas e viáveis, que vão além do embate ideológico”. Como evidência das limitações da esquerda no âmbito programático é mencionada a “embolorada crítica às privatizações”.

o editorial constitui nada menos que um convite à moderação da esquerda

Considerando esses elementos, é possível concluir que o editorial constitui nada menos que um convite à moderação da esquerda. Um convite a abraçar o suposto pragmatismo que esconde a adesão à ordem do capitalismo neoliberal – com suas privatizações, com sua dizimação de direitos sociais, etc – e o contentamento com a condição de gestor humanizado da barbárie produzida por essa mesma ordem. Indo além, o próprio texto deixa evidente que tal convite tem um destinatário claro: Lula.

Embora Lula sequer tenha se manifestado publicamente sobre os atos do 29M – o que constitui um grave erro político, na medida em que deveria utilizar sua influência para impulsionar a resistência da classe trabalhadora e da juventude a Bolsonaro –, sua escolha como interlocutor não é casual. Ou seja, trata-se de um aceno àquele que demonstra ser o candidato presidencial mais competitivo do campo da esquerda, indicando um possível apoio do jornal – e do segmento da burguesia cujas posições ele vocaliza – em um eventual embate eleitoral que oponha Lula e Bolsonaro como únicos candidatos como reais chances de vitória. Tal apoio, entretanto, só seria obtido caso Lula e a esquerda aceitassem rezar pela cartilha neoliberal da Folha.

Com esse procedimento, ao mesmo tempo em que confere visibilidade ao 29M o jornal oculta o fato de que importantes segmentos da esquerda possuem, sim, profunda consistência programática. Uma consistência que retira sua força precisamente de sua insistência no embate ideológico e de sua recusa a normalizar a exploração, a pobreza, o genocídio da população negra, a opressão às mulheres e a LGBTTs, a devastação ambiental, etc. 

O programa das ruas

Como a própria Folha reconhece ao final de seu editorial, o 29M tem o potencial de constituir o estopim de um processo mais profundo de luta contra Bolsonaro, o que justifica a atitude preventiva do jornal de enfatizar a dinâmica eleitoral e tentar emplacar um programa alinhado ao capitalismo neoliberal. Entretanto, o potencial contido nessas manifestações só poderá alcançar sua máxima expressão como oposição ao bolsonarismo caso adote um programa diametralmente oposto ao expresso pela Folha.

Esse programa deve reverter todos os efeitos do golpe de 2016

Tal programa deve partir da necessidade de enfrentar de forma consequente a pandemia de Covid-19, articulando testagem em massa, lockdown nacional e auxílio emergencial para os trabalhadores e os pequenos negócios. Esse programa deve, também, reverter todos os efeitos do golpe de 2016, que alteraram estruturalmente as relações entre as classes sociais no Brasil, e não normalizá-los. O teto de gastos públicos e as contrarreformas previdenciária e trabalhista devem ser anulados e as privatizações devem ser revogadas. Uma Lei de Responsabilidade Social – financiada pela taxação dos rendimentos (com ênfase sobre as grandes fortunas), e não do consumo, aliada à auditoria e à suspensão do pagamento da dívida pública aos grandes credores – deve garantir o financiamento de serviços públicos de qualidade.

É preciso, igualmente, garantir a vigência de direitos para todos os trabalhadores, enfrentando, por exemplo, a precarização galopante levada a cabo pelos aplicativos e plataformas. Em paralelo, é fundamental que se avance no estabelecimento de um programa de renda mínima, na valorização do salário mínimo e em um programa de obras sociais com foco na construção de escolas, hospitais e estrutura de saneamento básico, que garanta emprego e serviços de qualidade para a população. No campo do trabalho, mas também no conjunto da vida social, deve atentar para a particularidade das opressões que incidem sobre negras/os, mulheres e LGBTTs, combatendo todas as formas de discriminação e violência.

Na seara ambiental, esse programa deve fiscalizar e punir duramente o desmatamento, bloquear a difusão dos agrotóxicos, fortalecer a FUNAI, com demarcação de terras e respeito às vidas indígenas, ribeirinhas e camponesas e dirigir uma transição energética com fortalecimento da Petrobras como empresa pública de energia, democraticamente gerida e com investimento em energias renováveis, entre outros pontos. Deve, por fim, impulsionar as reformas urbana e agrária, atacando a sacralização do direito de propriedade, democratizar o poder por meio da construção de ferramentas de democracia direta – como referendos, plebiscitos e espaços permanentes de deliberação pelos representantes dos movimentos sociais – e sustentar a constituição de uma política externa independente e anti-imperialista, garantindo a defesa da soberania nacional.

Em seu conjunto, esses eixos programáticos possibilitam não apenas enfrentar diretamente o bolsonarismo, mas também as condições sociais que propiciaram seu fortalecimento. O combate ao bolsonarismo será tão mais eficaz quanto mais ele for capaz de impulsionar amplos segmentos da classe trabalhadora e da juventude a tensionarem os limites historicamente colocados pelo desenvolvimento do capitalismo ao seu próprio bem-estar. A realização de tal tarefa, entretanto, escapa às condições de qualquer força particular do campo da esquerda, devendo ser compartilhada por uma Frente de Esquerda que se manifeste nas ruas e nas eleições, envolvendo partidos políticos (PT, PSOL, PCdoB, PCB, UP, PSTU) e movimentos sociais combativos (MST, MTST, movimentos estudantil, de mulheres, de LGBTTs, de negras/os, etc).