Você pode não saber, mas provavelmente vive muito mais próximo da Mata Atlântica do que imagina: a floresta compreende 15% do território total do Brasil e se estende por 17 Estados, abrigando 72% da população brasileira (1). O bioma é um dos mais ricos do mundo, possuindo ampla diversidade de fauna e flora, sendo crucial para a preservação e variedade da biodiversidade não só no Brasil, mas globalmente.
Apesar de sua evidente importância, a Mata Atlântica vem de um longo e histórico processo de fragmentação e devastação, radicalmente aprofundado desde que Bolsonaro assumiu a presidência e Ricardo Salles a pasta do Meio Ambiente. Nos anos de 2019 e 2020 foram 130 km² de vegetação desflorestados, com alta nas taxas de desmatamento em 10 dos 17 Estados (2). Isto significa que a cada 24h é desmatado o equivalente a 36 campos de futebol (3). O Estado de São Paulo foi o que atingiu as taxas mais alarmantes, com um aumento de mais de 400% (4). Com o avanço da destruição, a Mata Atlântica possui apenas 12,4% da sua vegetação original (5).
A preservação de biomas estratégicos passa crucialmente por um planejamento do poder público. Do mesmo modo, a destruição desenfreada passa por um plano que envolve diversos elementos e agentes – no campo público e privado. Segue abaixo quatro fatores para compreender a destruição da Mata Atlântica nos últimos anos:
1) Afrouxamento de regras de preservação
Já se tornou parte do vocábulo popular a expressão “passar a boiada”, dita por Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril do ano passado. A expressão se tornou símbolo de uma gestão ambiental marcada pelas tentativas constantes de aprovar medidas que visam enfraquecer a proteção ecológica. Segundo um dossiê, o governo assinou 721 medidas com alto impacto no meio ambiente. Esse número já seria alto se compreendesse todo o mandato até o momento, mas o dossiê se trata apenas das medidas referente ao prazo de 12 meses. Em apenas um ano foram 76 reformas institucionais, 36 medidas de desestatização, 36 revisões de regras, 34 de flexibilização, 22 de desregulação e 20 “revogaços” (6). Seja implementando novos dispositivos, ou retirando medidas de proteção, o governo federal agiu de forma coordenada através de diversas agências para desfigurar a proteção ambiental no Brasil e permitir o avanço de interesses privados contra os seis biomas brasileiros.
Duas medidas polêmicas se destacam na questão da Mata Atlântica. No ano passado, Salles elaborou um decreto e um despacho que afetavam diretamente a floresta. No primeiro, a medida entregaria áreas importantes do bioma ao setor hoteleiro, permitindo que áreas de tamanho equivalente ao Parque Ibirapuera fossem transformadas em hotéis e resorts sem necessitar de aval do Ibama (7). No segundo, Salles visava anistiar desmatadores de regiões da Mata Atlântica caso tivessem ocupado as terras até o ano de 2008 (8). Em ambos os casos, as medidas não foram para frente e não foram efetivadas. De todo modo, especialistas analisam que este tipo de intento do governo abre um clima favorável para desmatadores, que agem na confiança de que a qualquer momento o governo pode baixar algum decreto que os favoreça, podendo inclusive ter suas atividades ilegais passando a ser legalizadas (9). Isto é, mesmo quando não efetivadas, a simples tentativa do governo em aprovar essas medidas demonstra uma disposição em agir em conjunto com estes setores, criando um ambiente propício para as ações ilegais.
Outra medida de alto impacto foi a retirada da proteção de manguezais e restingas. De acordo com a Lei da Mata Atlântica, manguezais e restingas são considerados ecossistemas associados ao bioma da Mata Atlântica, tendo importância para a sua preservação e grande relevância para a proliferação da vida marinha, além de alta capacidade de captura de carbono. Em setembro de 2020 o governo federal revogou 3 resoluções que tratavam destes ecossistemas. O argumento do governo é que os mangues e restingas estariam protegidos pelo Código Florestal, fazendo com que as resoluções fossem redundantes. Segundo especialistas, entretanto, essas resoluções especificavam a preservação das áreas de mangues, o que tornava a proteção de fato efetiva, já que apenas a partir do Código Florestal a situação poderia ficar vaga e aberta a interpretação. (10)
2) Enfraquecimento de órgãos de fiscalização
Além das alterações em leis e regramentos, o governo move uma potente campanha de enfraquecimento dos órgãos responsáveis pela fiscalização das atividades que podem ter impacto ambiental. O orçamento do Ministério do Meio Ambiente sofreu um pesado corte no seu orçamento para 2021, sendo o menor orçamento em 21 anos (11). O principal setor afetado é o de fiscalização ambiental, inviabilizando financeiramente a execução de ações por parte do IBAMA e do ICMBio, que agora contarão com um orçamento que não atinge o mínimo estipulado (12). O IBAMA conta com o menor efetivo em 20 anos, sendo que durante o governo Bolsonaro o órgão teve uma redução de servidores de 17,7% (13). O ICMBio também sofre com a redução do seu quadro de servidores, além de apontar que se não houver um acréscimo no seu orçamento é provável que o órgão tenha que suspender o vital serviço de brigadas e aeronaves de combate a incêndios.(14)
O governo Bolsonaro também age para enfraquecer o potencial do CONAMA, conselho misto (ou seja, formado pelo governo e por representações da sociedade civil) que sofreu intervenção direta na sua composição. Nos últimos anos, o CONAMA passou de 96 membros para 23. As organizações da sociedade civil possuíam 23 representações, agora são apenas 4 e os Estados foram de 27 para 5 (15). Como resultado, o governo passa a ter 43% do poder de voto no conselho, aliado a outros 8% do setor empresarial (16). É desta maneira que o governo consegue aprovar com grande facilidade diversas medidas de enfraquecimento das políticas de preservação ambiental, como no caso anteriormente citado sobre os manguezais.
Fora esses órgãos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente, outro alvo de constantes perseguições é o INPE, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Em 2019 o diretor do INPE, Ricardo Galvão, foi exonerado após Bolsonaro atacar o órgão por conta da divulgação de dados sobre o desmatamento na Amazônia (17). Segundo servidores do Instituto, a verba disponibilizada para seu funcionamento em 2021 não dá conta sequer para garantir a energia elétrica até o final do ano. (18)
O governo também promove uma perseguição contínua aos servidores ligados à fiscalização, agentes que cumprem importante papel na denúncia de ações ilegais do setor privado e da conivência do governo com essas ações (19). Bolsonaro sempre ventilou um discurso, antes mesmo de ser eleito, de ataques aos servidores da área, os acusando como “indústria da multa” e “inimigos do progresso do país”. A total hostilização contra os agentes se demonstrou clara desde o início do governo, já que logo ao assumir se iniciou um processo de exonerações em massa de superintendentes do IBAMA (20). Outro processo alarmante é a substituição de técnicos por militares na cabeça das agências e dirigindo diversos setores dos órgãos, caracterizando um verdadeiro processo de militarização da fiscalização ambiental. Um exemplo emblemático desta política é que toda a diretoria do ICMBio atualmente é composta por militares (21). Além disso, nove órgãos federais ligados à questão ambiental possuem, juntos, 99 militares em cargos comissionados (22). Assim, a guerra do governo contra a fiscalização passa principalmente pelo estrangulamento financeiro, a desmoralização dos órgãos de fiscalização e a perseguição dos servidores públicos.
3) Concessão, ou entrega, de parques e reservas
Neste mês, Ricardo Salles lançou um artigo em que propõe a “solução para os parques nacionais” (23). Qual seria? A concessão ao setor privado. Segundo o ministro, essa ação permitiria que o setor privado agisse de forma mais livre, sem tanta “burocracia” e que, de alguma forma que não explica, isso se reverteria também em preservação. Na verdade, Salles enfoca com bastante precisão a liberdade que o setor privado teria em manejar os negócios em parques e reservas a seu gosto, mas de forma alguma indica de que maneira seria mantida a preservação nestes locais. Aliás, com o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização, já é difícil manter a conservação e preservação da forma em que se encontram (24), a situação apenas se deterioraria com uma maior autonomia do setor privado.
A questão leva preocupação em relação a preservação da Mata Atlântica, pois grandes porções do bioma se encontram preservadas em parques e reservas. O descaso do governo federal para com essas unidades é grande, dado o desinvestimento, assim o setor privado se aproveita da situação ao dispor recursos financeiros que funcionariam como moeda de troca: liberdade para atividade econômica na região em troca de alguma “preservação” dos ecossistemas locais. O que se nota é a velha tática de “precarizar para vender”. O desmonte de políticas de preservação e de órgãos de fiscalização faz com que a situação desses locais decaia, ameaçando elementos importantes do seu funcionamento. Ao inviabilizar a proteção, o projeto do governo é “terceirizar” a preservação, mas sem qualquer garantia efetiva de que ela ocorra. O discurso de Salles é uma verdadeira entrega dos parques e reservas para que o setor privado faça o que bem entender, protegido pela confiança de que a fiscalização não será efetiva e também com uma série de recursos de autolicenciamento que o governo tem permitido em conjunto com leis elaboradas pelo legislativo.
4) Aliança com setor imobiliário e hoteleiro
Quem mais lucra com a entrega dos parques e reservas, assim como do aleijamento da fiscalização nas áreas de Mata Atlântica, é o setor imobiliário e hoteleiro. O bioma da floresta se destaca por estar localizado em áreas costeiras e urbanas, normalmente muito cobiçadas pelo setor.
Salles possui um histórico de relação com o setor quando ainda era Secretário do Meio Ambiente de São Paulo (25), o que muda agora é a escala do quanto o ministro pode atuar para beneficiá-lo. Isso fica claro em algumas ações “menores”, como quando Salles indica um sócio do setor imobiliário para superintendência do IBAMA da Bahia – que prontamente cancela multas do ramo hoteleiro e permite a construção de um resort em área de risco ambiental (26). Mas as outras medidas aqui mencionadas também se relacionam diretamente com essa aliança. O setor imobiliário de São Paulo vinha há muito tempo dialogando com Salles e se reunindo com o ministro para liberação de projetos em área de manguezais. Inclusive, tendo influência na decisão de revogação das resoluções de proteção desse ecossistema (27). Não por acaso, existe todo um caldo de apoio das entidades empresariais às ações de Salles, como no ano passado, logo após sair o vídeo da reunião em que Salle fala em “passar a boiada, quando 70 entidades – maioria ligada ao setor imobiliário e hoteleiro – lançaram um manifesto em apoio ao ministro e contra o que chamara de “burocratização” do setor ambiental (28). Constantemente essas entidades agem publicamente para pressionar em direção a flexibilização de regras e demonstrar apoio a Salles nas suas tentativas de destruir as medidas de proteção (29).
Preservar a Mata Atlântica é uma luta de todos(as). Fora Salles!
Está claro que o governo Bolsonaro, especialmente através de Salles, é um risco para o meio ambiente em geral e especificamente para a Mata Atlântica. Existe uma rede de interesses poderosos em destruir qualquer regulação que impeça o avanço do setor privado nessas áreas. As tentativas constantes de aprovação de medidas, retiradas de resoluções de proteções e alterações em regulamentos comprova isso. Como sempre, o governo prioriza o interesse da burguesia em detrimento da proteção ambiental e da saúde humana.
É comprovado que a preservação da Mata Atlântica é essencial para o combate às mudanças climáticas e vital para que cumpramos nossas metas enquanto Brasil (30). Estudos empíricos demonstram que áreas de fragmentação do bioma e redução da sua área passam por aumentos consideráveis na temperatura local (31), enquanto áreas preservadas tem grande potência de regulação do clima. A preservação poderia inclusive evitar infecções por doenças ligadas ao contato animal, impedindo a proliferação de zoonoses (32). A preservação da Mata Atlântica não é uma questão abstrata, ou distante e que não nos afete diretamente. Como dito anteriormente, 72% da população vive em áreas com existência de Mata Atlântica. Sua preservação está ligada ao bem estar geral, inclusive humano. Sua restauração, por exemplo, permitiria a volta de cursos da água, mitigando ou eliminando crises hídricas em Estados como São Paulo.
Contudo, a situação não tende a melhorar enquanto este governo seguir atuando. Bolsonaro e Salles são inimigos da natureza, o que significa que são nossos inimigos. Que nesse dia da Mata Atlântica possamos reforçar a necessidade de derrubar o ministro Salles e um governo ecocida que coloca em risco nossa natureza, nossa vida e nosso futuro.
*Pós-graduando em Filosofia pela PUC-RS e militante do Afronte! e da Resistência/PSOL.
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