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OPRESSÕES

(Re)existência Afro: (des)perspectivas para um futuro anticapitalista

Airely Neves Pereira*, de Belém, PA
Tomaz Silva / Agência Brasil

Estátua de Zumbi dos Palmares, no Rio de Janeiro

Breve análise sobre a história do racismo: 

O que estava rolando em torno dos anos 1500? 

Nessa época estava acontecendo a transição entre a idade média e a idade moderna. O medievo era marcado pelo monopólio religioso, que controlava a cultura, a justiça, a violência legítima e a arrecadação de impostos. No entanto, essa hegemonia incomodava os senhores feudais. Com a expansão da produção agrícola que levou ao ápice do desenvolvimento comercial da idade média, houve também um crescimento populacional significativo e o ressurgimento de cidades. A melhor safra da Idade Média foi o que colocou um fim a ela mesma. É dentro desse contexto que entramos na Idade Moderna. Mais que rural, a produção agora era industrial, e a Igreja teve que ceder grande parte dos seus privilégios para o recém criado Estado Moderno, que coincide com o surgimento do capitalismo. 

Tá! Mas e aqui no Brasil? O que chegou aqui? 

Atracou no Brasil o que havia de pior da Europa, era tão ruim que até mesmo seu continente já não quisera mais, chegou aqui uma versão caquética e mais perversa do catolicismo que dominou a idade média. Os europeus comandavam agora pela égide do Estado-Nação, que era livre, que demarcava a propriedade privada, e louvava os direitos individuais, nem Deus nem o Diabo, o indivíduo tornou-se soberano de si. Mas a realidade é que o Estado Moderno, apesar de ter transformado nossa percepção da realidade, não difere muito da Idade média, o ponto fundamental continuou inalterado, por ponto fundamental refiro-me ao princípio relacional que forma a sociedade humana. O princípio relacional que caracteriza a cultura ocidental, isso até mesmo antes da Idade Média, é a relação Senhor/Servo. Uma relação de hierarquia, de domínio de um sobre o outro, em que o “um” não reconhece o outro como um dos seus. 

Resumindo a história, foi o Estado Moderno quem conseguiu “universalizar” o sonho monopolista da Instituição Religiosa que o compunha ao redor do globo. A expansão marítima experimentada pelos Europeus que os trouxeram as Américas colocou em primeiro lugar os padres catequizadores, que foram os responsáveis por minar as tradições Ameríndias e criar um terreno ideológico que se enquadrasse dentro da perversa relação senhor/servo. O menosprezo pelo nosso planeta também é característico dessa ideologia, relegando as coisas “mundanas” a algo considerado ruim, o castigo do corpo também é fundamental para o funcionamento dessa lógica, pois o que a história prova, é que aquele que está na posição de senhor, sempre vai infligir castigos e torturas para aquele que está na posição de servo. 

Mas e a África? 

Para Entender o que estava acontecendo na África precisamos voltar um pouco mais no tempo. Por volta do séc. II a.C teve início o comércio de escravos no continente africano, que nessa época eram prisioneiros de guerra. O primeiro ponto que devemos esclarecer sobre isso, é que parte da África ficou sob o controle do Império Romano por muito tempo, e os gregos dominavam o mar mediterrâneo que ligava o continente Europeu ao continente Africano, dessa forma, eles criaram o comércio negreiro, que se estabeleceu definitivamente através do tráfico de pessoas. A cultura ocidental, que nasce do berço grego, e que moldava a relação que eles teriam com as outras nações, está subordinada ao princípio relacional senhor/servo, estabelecendo assim uma perigosa soberania. Dessa forma, por não reconhecerem o Outro como Um dos seus, eles se sentiram no direito de escravizar os povos africanos e fazer disso um ofício. 

Apesar de Antigo, o tráfico negreiro só aumentou significativamente a partir do “comércio” inaugurado pelo pelos europeus no contexto da expansão marítima da Idade Moderna. Voltamos então a 1500, onde nasce o Estado-Nação e também o capitalismo, nessa época os europeus atracavam suas caravelas na Costa do Nordeste Brasileiro, descobrindo o “novo mundo”, e nos anos posteriores o tráfico de seres humanos toma uma proporção inédita para a história da escravização. Para compreender de forma mais profunda o que aconteceu, precisamos voltar de novo no tempo, agora para um período ainda mais distante, a aproximadamente 200 milhões de anos atrás, época conhecida como pangeia, e caracterizada pela indistinção entre as massas continentais. Nessa época, a costa do Nordeste Brasileiro era coladinha com a costa do Oeste Africano. 

Mas o que a Pangeia tem a ver com o tráfico negreiro promovido pelos europeus no início da Idade Moderna? Milhões de anos depois. 

O papo é que algumas características se tornaram comuns tanto para a costa brasileira quanto para a costa africana, dentre essas características ressalto uma espécie de concha do mar, que existia tanto aqui, quanto lá. 

Mas o que essa concha tem a ver com o tráfico negreiro? 

Aconteceu que dentro da economia africana existiam relações comerciais de escambo, mas havia também uma espécie moeda, que era materializada num certo tipo de concha do mar. Então o que aconteceu foi que os europeus chegaram aqui no Brasil, e encontraram nas praias milhares de concha que tinham um valor econômico real no continente Africano. A partir daqui não fica difícil imaginar o que aconteceu, eles se apropriaram de graça das conchas encontradas aqui no Brasil, e voltavam com milhares delas para comprar escravos africanos, sendo assim, o tráfico negreiro se tornou o negócio mais absurdamente lucrativo para a época, o que fez com que sua intensidade aumentasse drasticamente. Além disso, é praxe da economia contemporânea pensar o que acontece quando a circulação de capital não corresponde a produção real, daqui surge a especulação financeira, que é o marco não só do tráfico negreiro, mas também do próprio capitalismo. 

Seleção cultural e Darwinismo social: perspectiva de extermínio 

O ponto fundamental que citei no início, e que diz respeito ao princípio relacional que tem moldado nossa forma de viver, ainda permanece inalterado, mesmo já no século XXI. Esse princípio vem de uma ideologia Universalizadora com pretensão de verdade absoluta e indisponível para a multiculturalidade e diversidade de perspectivas. Essa ideologia subordina o Outro a um Eu, rompendo os laços de amizade e colocando Um na posição de inimigo do Outro, já que essa relação é baseada entre um senhor que viola e um servo que é violado. É esse arquétipo (desenho mental que molda nosso comportamento) que permeia o inconsciente (memória) coletivo, que faz vir à tona as relações sadomasoquistas que são características do mundo contemporâneo. 

Além desse arquétipo perverso que tem sido introjetado na mente da humanidade através da cultura ocidental, a outra base do capitalismo se dá através da falsidade de suas afirmações e do uso espetacularizado da linguagem (performance sem compromisso com a realidade), diante 

disso, precisamos elucidar algumas contradições que pairam no sistema capitalista contemporâneo que se apresenta sob o formato Neoliberal. 

A ideologia da globalização e o rompimento das fronteiras anunciado pelo capitalismo universalizado abriu as portas apenas para o mercado, apenas ele é livre. Discursos xenófobos, muros e eugenia cultural é a realidade daqueles que pregam o novo liberalismo. Os indivíduos, e a pluralidade que fazem parte dos territórios em que se apossam o vil colonizador, são silenciados, invisibilizados e assassinados. Tudo isso para o estabelecimento da monocultura universal, que não reconhece as diferenças e por isso se coloca numa posição de superioridade em relação aos outros, cria um ciclo de dominadores e dominados. A globalização, que é anunciada propagandisticamente como a conexão entre o globo, na verdade é uma imposição que descaracteriza indivíduos e ainda por cima os isolam, seja entre as fronteiras dos países, seja pelos muros dos grandes condomínios, seja pela tela de um celular. 

A aparência de liberdade implantada pelo capitalismo tornou a reflexão sobre a mesma muito mais difícil do que quando ela era explicitamente ausente da realidade da maioria, o véu, na medida em que tem se tornado mais volátil, também tem se tornado mais inebriante. O uso da tecnologia e do conhecimento para a manipulação dos indivíduos é a tática comum do sistema de especulação capitalista, o falso tende sempre a encobrir o verdadeiro, causando confusões, nos submetendo a escolhas ruins, distorcendo a realidade e fazendo da verdade um sonho não realizado. As aparências, propositalmente, têm sido criadas para esconder o que há por trás delas, o que deveria ser uma ferramenta para externalizar o que está dentro, tem sido uma máscara para cobrir a engrenagem que tem colocado várias vidas na condição de descartáveis. 

Depois de anos de evolução da espécie Homo Sapiens ser guiada pelos seus instintos, pelos seus processos homeostáticos e sentimentos, chegamos ao ponto de impositivamente contrariarmos a nossa naturalidade. A socialização, a comunidade, os laços sociais e com a natureza, tudo o que foi fundamental para a formação do ser humano está sendo arrancado de nós. O individualismo tem provocado uma epidemia de solidão, tem aumentado o número de casos de suicídio, e as doenças da mente se tornaram grandes ameaças para a humanidade. A falta de conexão com o mundo e com o outro é o motor de tudo isso. 

O individualismo tem provocado uma epidemia de solidão, tem aumentado o número de casos de suicídio, e as doenças da mente se tornaram grandes ameaças para a humanidade. A falta de conexão com o mundo e com o outro é o motor de tudo isso. 

A indústria do entretenimento cultural tem assiduamente tapado o vazio da expropriação da consciência que tem sido imposta sobre nós, uma barra de rolar infinita passa pelo feed das redes sociais, e mesmo nessa infinitude, se encontra superficial e sem conteúdo suficientes para a formação integral do espírito. Essa falta de profundidade é justamente a ausência de conexões genuínas. O controle da vida, em tempos de pandemia, está mais conectado do que nunca, a parcela da população que tem acesso aos meios de comunicação repete de dentro de suas caixas a ideologia pregada pela globalização, enquanto a outra parcela, fica na rua à mercê de um vírus  mortal e sentindo na pele, e essa pele tem cor, ela é preta, todas as violências infligidas pelo capitalismo.

(Re)Existência 

Apesar da cultura ocidental fazer de tudo para negar a existência de outras formas de vida, ela não consegue. Nós existimos e resistimos, a cultura Africana e Afro-brasileira existe e é rica, e para além disso, vislumbra alternativas de mundo que são completamente diferentes do proposto pelo sistema capitalista de origem europeia. Dessas diferenças vale ressaltar a filosofia Umbuntu, que se originou no continente africano fazendo parte da cultura de diversas nações do continente. Umbuntu é o princípio relacional que forma a sociedade humana, mas segundo a perspectiva da cultura Africana. Esse princípio é caracterizado por uma relação de co-

dependência, não só entre os indivíduos, mas também com a Natureza e com as outras espécies. Desse princípio surge a máxima “eu sou porque você é”. 

A cultura africana aceita e estimula a pluralidade, por isso a sincronia do sincretismo religioso tão rico e diverso que constitui a cultura brasileira. Em vez de separar o “eu” do “tu”, e demarcar os limites da propriedade privada, o ponto fundamental da tradição africana é o “nós”. Aceitando a naturalidade da co-dependência entre os seres, os indivíduos da comunidade africana não se viam livres uns dos outros, pelo contrário, as relações intersubjetivas eram valorizadas, fortalecendo assim os laços coletivos. 

No filme Quilombo, com direção de Caca Diegues, é narrada uma cena que explicita o caráter comunitário e não individualista que contrapunha a cultura africana com a ocidental. Contextualização da cena: Um homem briga com duas mulheres por elas terem pegado milho do pedaço de terra dele, diante disso, Ganga Zumba, primeiro líder do quilombo de Palmares, fala “Eu nunca ouvi dizer o meu pedaço de vento, o meu pedaço de nuvem. O que é do mundo é do mundo, e como a terra não é de ninguém, o que se tira dela é de todos” 

“Eu nunca ouvi dizer o meu pedaço de vento, o meu pedaço de nuvem. O que é do mundo é do mundo, e como a terra não é de ninguém, o que se tira dela é de todos” 

Essa forma de ver o mundo é um marco na filosofia contemporânea, e ela tem suas raízes na ancestralidade de Mama África. Ancestralidade é o conceito basilar para compreendermos o mundo contemporâneo, ela é o elo para entendermos a nossa história, resgatarmos a nossa identidade, e construirmos o nosso futuro. A Ancestralidade é atemporal, ela está aqui no presente e também no nosso passado mais remoto, e ela pode nos dá as ferramentas necessárias para construirmos um mundo diferente. Ela está cravada no nosso código genético e também no mais profundo do inconsciente coletivo, ela nunca deixou de se manifestar na nossa história, apesar de estar sendo violentada pelo projeto de seleção cultural promovido pelo ocidente e potencializado pelo capitalismo. 

Ancestralidade é a nossa memória, e o projeto neoliberal tenta apaga-la o tempo inteiro, escondendo-a embaixo da superfície de uma consciência que foi primeiramente expropriada e posteriormente alienada pela ideologia dominante. 

Em entrevista para o programa “é do Pará” no ano de 2020, uma moradora do Quilombo do Abacatal deu a seguinte mensagem: 

“O que te alimenta não é pra alimentar só o teu corpo, tem que alimentar também o teu espírito, porque tá tudo interligado, o teu corpo e o teu espírito. A gente não tira uma folha sem pedir licença, fui eu quem plantei, fui eu quem cuidei, mas ela não é minha, elas são dos espíritos que moram aqui”. “A gente é forte porque a gente tem muito com a gente, nós não somos sós” 

A espiritualidade da cultura africana é deveras diferente do catolicismo europeu, o respeito pelos Outros é que funda os princípios da cultura Afro, e não a imposição do Eu sobre os Outros da cultura ocidental. 

Viva Mama África! 

*Graduanda em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, militante do movimento de juventude Afronte e da Resistência.