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MUNDO

O que esperar do cessar-fogo em Gaza?

Roberto “Che” Mansilla, do Rio de Janeiro, RJ*

“Calaram-se finalmente as bombas do massacre e não terão que sair de terra os foguetes da resistência. Hoje é noite e quem lá vive pode chorar sem medo enquanto dorme e acordar com tempo de limpar as lágrimas. Será um sono frágil, mas ainda assim, um sono. Será um acordar difícil, mas ainda assim, um acordar. Boa noite Gaza, o amanhã, vive”

Renato Teixeira, jornalista, 2021 [Facebook]

O cessar-fogo em Gaza: uma vitória da solidariedade global à resistência palestina

Na última sexta-feira (21) foi assinado e confirmado um cessar-fogo “mútuo e incondicional” entre Israel e o Hamas, negociado pelo governo egípcio, o Catar e as Nações Unidas. Durante onze dias assistimos mais um exemplo dos crimes da ocupação israelense sobre Gaza, que há 15 anos vive sob um desumano bloqueio aéreo, marítimo e territorial. 

O saldo desse que é um dos maiores e obscenos massacres que já testemunhamos contra os palestinos (o terceiro em Gaza em menos de 20 anos) foi, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, de 243 pessoas mortas, incluindo 66 crianças, e 1.910 feridos, causando ainda o deslocamento de cerca de 50 mil palestinos. (1)

A primeira observação a ser feita é que o cessar-fogo não trouxe garantias substanciais para Gaza, além da suspensão dos bombardeios. Mas sem dúvida é uma boa notícia, pois os moradores de Gaza já estavam agonizando, com um cenário de completo caos: 96% da água estava contaminada e só havia a disponibilidade de energia elétrica por 4 ou 5 horas diárias. Além da criminosa destruição (mais de 130 prédios foram destruídos e mais de 300 ficaram danificados), houve uma grave violação ao direito internacional já que há pelo menos três dias antes do cessar-fogo, Israel impedia ajuda humanitária essencial à população como garantia de alimentos e medicamentos (2). Há ainda uma preocupação por conta da pandemia de Covid-19. A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou estar preocupada com uma possível aglomeração nos locais. A avaliação é que concentrar famílias nas escolas, nesse momento, é um fator preocupante para a disseminação da doença.

De um lado vários governos se omitiram ou demoraram muito a se posicionarem diante das atrocidades em Gaza. A administração Biden, por exemplo, esperou pacientemente e deu tempo para que Israel, como sempre, fizesse suas operações fulminantes sem nenhuma oposição. Ao contrário, apoiou o “seu direito em se defender”, sem o mesmo direito para os palestinos, apesar de toda a discrepância entre ambos. Vale lembrar que os bombardeios foram feitos pelos mortais F-35, fabricados nos EUA. 

Por outro lado, a pressão feita por palestinos na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e também pelos palestinos de Israel (o que foi uma grande novidade, mesmo que não tenha sido unânime), foi muito importante e teve como principal episódio a greve geral ocorrida no dia 18, apesar de toda a repressão da polícia israelense.

Somada a isso sucederam uma série de atos massivos em várias cidades do mundo, sendo os mais significativos os que ocorreram no dia 15 em que os palestinos lembravam os 73 anos da Nakba (“Catástrofe”, em árabe) de 1948, denunciando e condenando Israel pelos crimes cometidos em Gaza (3). Talvez tenham sido os maiores atos em memória da Nakba já realizados! Por fim é importante destacar os importantes posicionamentos em solidariedade aos palestinos, feito por artistas e até jogadores de futebol.(4)

Mesmo assim, a solidariedade palestina precisa continuar. O cessar-fogo não é uma garantia de avanço de direitos para os palestinos de Gaza. Longe disso. A arrogante declaração do Embaixador de Israel, na Assembleia Geral das Nações Unidas que ocorreu na quinta-feira, 19, deixou muito clara as motivações do Estado sionista. Ele garantiu que Israel continuará a fazer o que decidirem do ponto de vista militar para que a “nossa segurança não seja ameaçada”.

O que esperar?

Em primeiro lugar, a resistência palestina (e também em Gaza) saiu fortalecida. O Hamas ganhou prestígio pela sua resposta às provocações israelenses, ainda que o preço pago tenha sido muito alto e as condições de sobrevivência em Gaza tenham se agravado bastante. Mas sem dúvida, o mais importante foi a demonstração de unidade dos palestinos na Palestina histórica, enfrentando, mas não anulando, as medidas sionistas de divisão e isolamento sobre as diversas áreas de dominação. 

Em segundo lugar foi a constatação que os chamados “Acordos de Abraão” realizado entre alguns governos árabes (Emirados Árabes, Bahrein, Marrocos) e Israel, e concluídos em 2020, fracassaram, o que não é nenhuma surpresa. No entanto, à época, tais acordos foram anunciados – com grande alarde – como forma de “promover a paz no Oriente Médio e limitar as políticas expansionistas israelenses na Palestina”. Mas é difícil entender, como diz Imad K. Harb, “que os países árabes que normalizam suas relações com Israel afirmem que seu propósito era levar a paz ao Oriente Médio” (5)

É inegável que Netanyahu sai de Gaza com as mãos cheias de sangue. Embora tenha conseguido apoio da maioria dos partidos israelenses para o ataque, não se pode dizer que tenha conseguido um triunfo político para seu governo, que aliás é interino. Houve sim uma rejeição interna (ainda que minoritária) de israelenses mais críticos, embora seja cedo para dizer se seu governo extrairá algum êxito de sua “campanha” em Gaza. 

Não está em questão se Israel deixará de avançar em sua lógica colonial e expansionista. Mas as condições mudaram: a determinada reação dos palestinos mostrou um cenário distinto dos últimos anos e Netanyahu sabe que mesmo que tente avançar no projeto de judaização de Jerusalém Oriental (como anexação progressiva do bairro de Sheikh Jarrah) ou faça novas provocações na Al-Aqsa, ou em outros lugares, sentirá novamente a revolta palestina. Internacionalmente, também o seu discurso de “combate ao terrorismo” perdeu força, sobretudo nas ruas. 

A solidariedade com a causa e a resistência palestina não podem parar

Apesar dos esforços de Israel para “expulsar os árabes de sua pátria” e da vã esperança de seu primeiro primeiro-ministro, David Ben-Gurion, de que “os velhos morrerão e os jovens esquecerão”, a questão palestina voltou ao centro das atenções do mundo. 

Para o Estado colonialista e racista de Israel e a extrema-direita que o comanda, o último confronto trouxe uma grande surpresa: quando julgavam ter lançado a última pá de cal sobre a Palestina, eis que ela ressurgiu e a resistência mostrou estar viva e mais ampla do que nunca.

Os palestinos demonstraram mais uma vez ao mundo sua insistência em não serem invisibilizados na “tragédia da negação”, como lembrava o saudoso intelectual palestino Edward Said (1935-2006) que decidiu articular uma história de perda e desapropriações que precisava ser narrada, momento por momento, palavra por palavra. 

Foi isso que vimos na grande solidariedade despertada pela resistência palestina à barbárie do Estado de Israel que bombardeou com tanques, artilharia, navios e aviões de guerra, uma área com altíssima densidade demográfica.  

Os palestinos sempre parecem encontrar uma maneira de superar as tentativas israelenses de enterrar a questão dos refugiados, como ofertas de paz incompletas ou agressões militares brutais que exigem rendição completa. Raramente deixam de encontrar motivos para não ser otimistas e continuar sua luta. Isso é mais relevante hoje do que nunca, à medida que Israel faz seu periódico “aparar a grama”, (expressão utilizada pelos políticos e generais sionistas) (6) em Gaza.

É mais do que nunca o momento de nos somarmos contra a imunidade que ainda tem o Estado sionista diante dos principais governo do mundo (inclusive árabes) e da mídia oligopolista global. Precisamos continuar pressionando e cobrar uma investigação de crimes de guerra (e contra a humanidade) cometidos por Israel em Gaza. É necessário que o Tribunal Penal Internacional se posicione sobre aquele massacre, que é mais um dos capítulos da Nakba palestina. 

Mas não demorou muito para que novos capítulos da violência aberta por Israel contra os palestinos continuassem. Na mesma sexta-feira, 20, quando os palestinos em Jerusalém Oriental comemoravam o cessar-fogo na Esplanada das Mesquitas, eles foram novamente atacados pela polícia israelense. (7)

E, nesse domingo, 23, outra demonstração de intolerância ocorreu no mesmo local. Dezenas de colonos judeus, sob a segurança da polícia fortemente armada, invadiram (novamente) a Esplanada das Mesquitas, atacando palestinos que faziam suas tradicionais orações do amanhecer na mesquita (8). O ataque deixou 15 feridos e 17 detidos em resultado da repressão. Até o momento em que escrevemos, nenhum grupo palestino respondeu, mas poderá ocorrer uma reação nos próximos dias.

Nesse sentido se faz necessária a contínua solidariedade à resistência palestina, desafiando o Estado colonialista e racista de Israel que já demonstrou que não vai parar em sua sanha colonialista e de limpeza étnica do povo palestino. Como adverte Mohammed El-Kurd, morador do bairro Sheikh Jarrah, no Twitter:

Só porque há um cessar-fogo, não significa que a morte e a destruição tenham acabado, não significa que o bloqueio seja levantado, não significa que aqueles que perderam suas famílias inteiras serão retificados. Devemos continuar nossa campanha para acabar com o cerco brutal e colonialismo (9)

Pelo fim imediato do bloqueio sobre Gaza!

Vidas palestinas importam!

Viva a heroica resistência palestina!

*Professor de História da rede municipal do RJ e militante da Resistência/PSOL

NOTAS

(1) https://www.monitordooriente.com/20210521-nove-corpos-sao-encontrados-em-gaza-aumentando-o-numero-de-mortos-para-243/

(2) https://www.federacionpalestina.cl/unrwa-pide-a-israel-abrir-el-paso-a-gaza-para-ayuda-humanitaria/

(3) https://esquerdaonline.com.br/2021/05/17/solidariedade-ao-povo-palestino-em-todo-mundo-contra-os-bombardeios-de-israel/

(4) https://www.monitordooriente.com/20210518-jogadores-do-manchester-united-estendem-bandeira-da-palestina-apos-partida/

(5) https://rebelion.org/el-absoluto-fracaso-de-los-acuerdos-de-abraham/

(6) Agradeço a Waldo Mermelstein por essa importante observação. 

(7) https://www.monitordooriente.com/20210521-israel-reprime-comemoracoes-do-cessar-fogo-em-jerusalem/

(8) https://www.aljazeera.com/news/2021/5/23/backed-by-israeli-police-jewish-settlers-storm-al-aqsa-compound?fbclid=IwAR3a_JQ4ItcETwmzuZXGBWigN1V8nEgWnWirsCguOSqY4pLOtym3DlAp44s (Consultado em 23.05, às 11h) 

(9) https://www.monitordooriente.com/20210521-palestinos-comemoram-inicio-do-cessar-fogo-em-gaza/

 

 

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