“Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”
(Carta de Bauru, 1987)
18 de maio é um dia de muita alegria e resistência nas ruas do Brasil afora. Os atos organizados pela militância antimanicomial têm uma energia única. É quando sonhamos com outro mundo, quando pensamos a liberdade a partir da experiência comum de liberdade, de ocupação das ruas da cidade. É também o momento em que denunciamos violações de direitos e reivindicamos justiça; trocamos experiências e podemos ouvir o que trabalhadores, usuários, familiares e militantes em geral da luta antimanicomial têm feito para resistir na construção de um mundo novo e radicalmente diferente. Esse exercício é importantíssimo para recarregar todas nós em tempos tão duros como os que vivemos.
Infelizmente, já são dois anos que não podemos ocupar as ruas. A pandemia no pandemônio bolsonarista parece não ter fim. Apesar da vacinação ter sido iniciada, o precário e tardio investimento por parte do Governo Federal (que poderíamos também chamar de crime de responsabilidade) faz com que cerca de 430 mil brasileiros tenham perdido suas vidas.
Se não podemos ocupar as ruas e celebrar os 34 anos de Bauru e os 20 anos da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001), fazemos barulho nas redes, junto ao Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e seus núcleos estaduais. Em 2021 gritamos “Pão, vacina, saúde e vida – Resistir sem negar!” como lema do 18 de maio, porque, como defensores da liberdade plena para todos, todas e todes, não podemos ignorar que Bolsonaro – o inimigo número 1 do povo brasileiro – tem arrastado o país ao fundo do poço, tanto pela inexistência de políticas de combate à pandemia e seus efeitos (fome, miséria, carestia, desemprego, violências), como pelos retrocessos em diferentes políticas públicas.
Nem Manicômio nem Comunidade Terapêutica: por tratamento em liberdade com dignidade!
No campo da saúde mental, não são novas as ofensivas contra as lutas antimanicomiais. Em 2019, já ganhava força a lógica manicomial do governo, pela qual as políticas hospitalocêntricas de internações prolongadas ganharam novamente espaço no conjunto de ações da “nova” Política Nacional de Saúde Mental, em especial a partir da edição da Nota Técnica n. 11/2019 (1) do Ministério da Saúde. A partir desse momento se materializaram retrocessos como a compra de equipamentos de eletrochoque para equipar os novos manicômios, a internação de crianças em hospitais psiquiátricos e a adoção da abstinência como forma de tratamento para usuários de álcool e outras drogas pelo SUS, e se contrapõe à Lei n. 10.216/2001, que estabelece as diretrizes para proteção e cuidado de pessoas com transtornos mentais e sofrimento psicossocial, ao delimitar a rede de atenção psicossocial (RAPS). De nova, essa política nada tem, já que convoca personagens dos porões dos manicômios e financia espaços de internação e controle.
O fato é que os desmandos que vemos desde 2015, como a nomeação de Valencius, se intensificaram em 2016, com o golpe contra Dilma Roussef. Com Bolsonaro no poder, o cenário de contrarreforma foi absurdamente agravado. No bojo das ações de destruição da RAPS, é preocupante a aceleração e ampliação de investimento público em instituições como as Comunidades Terapêuticas (CTs). No primeiro ano de governo Bolsonaro, o investimento geral nas CTs subiu 95% – em 2018, eram 2900 leitos privados pagos com dinheiro público, e no ano seguinte já eram mais de 11 mil. 70% dos recursos destinados às CTs foram para instituições cristãs. A previsão era concluir 2020 com mais de 20 mil leitos privados pagos com dinheiro público, mas a pandemia colocou impedimentos. Enquanto isso, os demais dispositivos da RAPS eram sub financiados e precarizados, recebendo cerca de 50% do orçamento que as CTs receberam no mesmo ano. (2)
Em 2018, CFP, MPF e MNPCT realizaram inspeção nacional (3), que resultou em um importante relatório que denuncia as graves violações aos direitos humanos nesses espaços. Nem comunitárias, nem terapêuticas, as CTs são a nova cara dos manicômios: questões como os trabalhos forçados, a prática religiosa obrigatória, o cerceamento da diversidade sexual foram identificadas nas inspeções.
O livro “Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs”, lançado pelo Conselho Federal de Psicologia, é uma dolorosa imersão em relatos de pessoas LGBTQIA+s que foram submetidas ao aprisionamento nas Comunidades Terapêuticas. Vale destacar que muitos dos usuários foram internados para realizarem supostos tratamentos contra o uso abusivo de drogas, reforçando o caráter proibicionista da contrarreforma psiquiátrica de Bolsonaro. Sobre isso, falaremos mais adiante.
Com o avanço da agenda neoliberal de Bolsonaro e Guedes, as políticas sociais vêm sendo destruídas e as intenções de privatização agravam os já sucateados serviços da RAPS. Em 2020, além de lutar contra a destruição da Atenção Primária (essencial para a RAPS), lutamos contra o “revogaço” de Bolsonaro, que destruiria décadas de construção da RAPS. Esta medida destruiria décadas de construção da RAPS ao propor a revogação de cerca de 100 portarias que orientam suas estratégias e regulam seus equipamentos.
Entre os exemplos de retrocessos abrangidos pelo “revogaço” estavam a extinção das instâncias de controle social, das equipes de desinstitucionalização, e dos mecanismos de fiscalização dos hospitais psiquiátricos, bem como a concentração dos recursos financeiros e das atribuições de assistência no campo da psiquiatria, desconsiderando a perspectiva interdisciplinar que orienta a Reforma Psiquiátrica.
Droga é questão de saúde, não de polícia!
É antiga a batalha para blindar as políticas de atenção à saúde mental, álcool e drogas das sanhas religiosas de ultra direita. Um dos retrocessos mais marcantes nesse sentido nos últimos anos foi a criação do programa “Crack, é possível vencer”, ainda no ciclo petista. Abstinência, moralismo, fortalecimento do aparato repressor são algumas das marcas das políticas desde então para pensar a questão das drogas desde o Governo Federal. Com um agravante: ao incentivar que o suposto cuidado fosse operado pelas Comunidades Terapêuticas, especialmente com verba pública, o Estado Brasileiro tem financiado sistematicamente grupos religiosos ligados à extrema direita e a partidos políticos conservadores, como moeda de troca para apoio político. Por outro lado, o aumento do encarceramento de pessoas condenadas por tráfico de drogas, fortalecida no governo Bolsonaro, colocou o Brasil na terceira colocação dentre os que mais encarceram no mundo, sem lograr qualquer resultado positivo de proteção à saúde pública, discurso que legitima a intervenção penal.
Mas nada se compara aos esforços do governo Bolsonaro, que deixou sua marca ao apoiar a aprovação do PLC 37/2013 (transformado na Lei n. 13.840/2019), que trouxe grandes retrocessos ao promover alterações à Lei de Drogas (n. 11.343/2006) que endureceram a política, passando a prever a abstinência como meta, deixando de lado políticas de redução de danos de comprovada eficácia na melhoria das condições de vida de usuários para beneficiar entidades religiosas e o lobby evangélico, facilitando internações involuntários e fortalecendo as comunidades terapêuticas, que foram incluídas no SISNAD (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas), permitindo a estas inclusive passar a receber verbas via isenção fiscal, além dos retrocessos anteriores já mencionados na política de saúde mental.
Além disso, segundo dados de pesquisa do IPEA, o governo reduziu drasticamente o investimentos em política de drogas, que reduziu de R$ 1,8 bilhão em 2017 para valores 75% menores no último ano do Governo Temer (R$ 447 milhões) e no primeiro ano de Jair Bolsonaro (R$ 476 milhões). O direcionamento dos investimentos foi em grande parte para a repressão, tendo havido profundos cortes de verbas destinadas a políticas de atenção à saúde de usuários e aumento de recursos destinados à repressão ao tráfico de drogas. (4)
Estamos hoje diante de um quadro no qual a política repressiva de drogas continua justificando intervenções policiais que colocam em risco de vida em especial pessoas negras moradoras de favelas e periferias, que são alvo da polícia em nome da guerra às drogas, como aconteceu na recente Chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que deve ser repudiada. A gestão da miséria capitalista pela lógica do extermínio da população negra e periférica encontra na política de guerra aos pobres seu combustível principal, lógica cada vez mais fortalecida no atual governo.
Derrotar Bolsonaro, a pandemia e defender a nossa Reforma Psiquiátrica, desde Bauru
Na Carta de Bauru, há um diagnóstico dos manicômios como expressão do sistema social. Foi também nestas instituições que aqueles considerados indesejáveis e subversivos foram presos por muito tempo. Sobre a população negra e as mulheres, recaiam as piores violações de direitos. Todas essas tentativas de reabrir manicômios e destruir a RAPS são mobilizadas pela orientação ultra neoliberal, racista e facista de Bolsonaro.
Eles querem destruir a RAPS porque ela apresenta impedimentos para a expansão da política proibicionista e porque ela é a rede mais complexa que integra o SUS, envolvendo políticas intersetoriais que vão desde os NASF até os hospitais gerais, passando por diversos dispositivos comunitários e políticas públicas além da saúde, envolvendo profissionais qualificados e de vários campos do saber.
Essa complexa política foi formulada por mais de 10 anos pela sociedade civil, políticos, intelectuais e movimentos sociais organizados. Há, na sua concepção, a ideia de que, além de pensar processos de tratamento aos transtornos mentais, deve-se lidar com danos causados pela atuação iatrogênica dos que foram presos por anos em manicômios. Depois de tantos desmontes, é urgente resgatar os fundamentos da nossa Reforma Psiquiátrica e batalhar por mais verba pública para a RAPS, com uma gestão 100% pública dos CAPS e SRTs aos Centros de Convivência, fortalecidos e geridos pelo SUS e lutar contra a privatização da saúde. A pandemia e todos seus efeitos também produzem agravos à nossa saúde mental. Diante disso, devemos exigir que o SUS receba aportes para garantir tratamento adequado e cuidado especializado, e não incentivar a repressão penal e o proibicionismo, a medicalização indiscriminada dos sofrimentos, o encarceramento e a patologização de identidades de gênero e orientações sexuais não cis-heteronormativas.
Os desafios da conjuntura atual são muitos, temos que resistir no presente e garantir condições de vida e saúde para a população brasileira, que vive a carestia e a redução de políticas sociais no momento em que estas eram mais necessárias. Mas além disso, precisamos construir lutas e enfrentamentos para que esse governo negacionista possa ser derrotado o quanto antes. A luta antimanicomial construiu sua trajetória no enfrentamento às arbitrariedades e na luta por liberdade e por direitos humanos, tendo um papel essencial nesse momento em que as ameaças à democracia se tornaram ainda maiores.
Garantir direitos sociais, lutar contra as contrarreformas, garantir pão, auxílio emergencial, saúde pública, vacina e geração de empregos para a população brasileira é urgente, assim como defender a Reforma Psiquiátrica e derrotar Bolsonaro são nossas tarefas hoje. Tudo ao mesmo tempo agora.
*Luciana Boiteux é uma advogada, professora de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, pesquisadora, feminista, militante dos direitos humanos.
**Com a colaboração de Bruna Martins Costa.
NOTAS
(1) https://drive.google.com/file/d/13by1kfwEhYmJn8cOhse86bG_RtEDb-v8/view
(4) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57057664
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