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CULTURA

Lima Barreto, 140 anos depois

Camilla Gomes*, de Niterói, RJ

“Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocharam de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos […]”. Se o maio de Lima Barreto tinha cheiro de vida, de transformação, mas para nós, as cores e o cheiro de renovação parecem estar cada vez mais distantes, devido à conjuntura na qual nosso país anda mergulhado. Para nós, há pelo menos um ano, tudo tem cheiro de chuva amarga, que corrói o peito e aperreia a alma… Mas temos tentado seguir.

Antes de ser pesquisadora da cidade do Rio de Janeiro sou suburbana de nascença. Nascida e criada no bairro da Abolição, vizinha do bairro da Piedade, território cujo Lima Barreto virou nome de rua, experimentei um pouco de tudo que chamava atenção do escritor dos subúrbios: o deslocamento entre a antiga Avenida Suburbana e a Rua do Ouvidor.

Ensaiei muitas vezes como começar a falar sobre Afonso Henriques de Lima Barreto e tem andado difícil não pensar em como ele estaria nesses tempos de guerra e pouca, pouquíssima paz. Nosso cronista, assim como o Rio de Janeiro, vivia em conflito com ele e com as desigualdades que teimavam – e ainda teimam – em castigar a nossa cidade.

Carioca, suburbano, sujeito vivo, homem preto, intelectual forjado no ir e vir da cidade, Lima Barreto poderia ser um dos mais de vinte assassinados na chacina do Jacarezinho. Ele cruzava o Rio de Janeiro com olhar atento, observava sujeitos, construções, hábitos, modo de andar, vestir e viver de senhoras da alta e dos trabalhadores da baixa.

Lima era sujeito histórico, homem de seu tempo, dúbio, ácido, pouco paciente com as pompas e circunstâncias que povoavam a Paris dos Trópicos. O prosador era um exímio contemplador do cotidiano, da história e das transformações pelas quais as terras cariocas vinham enfrentando.

A crônica com a qual inicio esta coluna, intitulada Maio, publicada no mesmo mês do ano de 1911, na Gazeta da Tarde, trazia um Lima Barreto saudoso, prosador, que comemorava o mês de seu aniversário e apresentava o ano em que o comemorou junto ao evento mais importante da luta abolicionista: o fim da escravidão.

Por tudo isso, escrever sobre Afonso Henriques de Lima Barreto envolve compreender sua obra a partir de um Rio de Janeiro que pulsava mudanças, que trazia inquietude e uma desorganização típica de uma cidade que vinha enfrentando significativas remodelações em seu território e o modo de existir na cidade no período subsequente a eventos como a proclamação da República e a abolição da escravidão. Desse modo, a imponência da rua do Ouvidor, a travessia entre o subúrbio e o Centro, as disputas políticas e as desigualdades sociais costumavam se apresentar como protagonistas –  e pano de fundo –  do cronista que tinha o hábito de trazer um misto de devaneio e fúria, amor, ódio e crítica para seus textos.

Lima Barreto, nascido em 13 de maio de 1881, antes de ser escritor, era um exímio observador daquilo que acontecia ao seu redor e é uma figura importante para quem deseja conhecer o Rio de Janeiro a partir de suas fissuras. Ele tinha um olhar singular e assertivo acerca da cidade que pulsava com a República recém proclamada (ou golpeada) e sua obra costumava versar sobre as inquietudes que permeavam a mente criativa e bastante observadora de um jovem que flertava com o Centro e com o subúrbio.

O cronista carioca era filho de funcionário público e mãe professora. Morou em diferentes lugares da cidade, mas criou raízes no subúrbio, foi contador da nossa história e desenhou, através das palavras, uma estrada de ferro povoada pelo mais diverso tipo de gente.

Lima Barreto não era admirador daquilo que ele acreditava não caber no, então, Distrito Federal (termo que ele odiava). Ele não suportava o Teatro Municipal, acreditava que a Biblioteca Nacional e sua imponência não era convidativa e, que ao contrário, ela afastava o povo daquele importante espaço para a construção do conhecimento.

Como homem da palavra, ele tinha nas letras um versar envolvente que nos carrega pelos braços e nos deixa curiosos para acompanhar os passos, compassos e descompassos de um Rio de Janeiro quase fora do tom. Lima escrevia sobre o feminismo que reivindicava a entrada das mulheres no mercado de trabalho, mas apontava naquele mesmo texto que o trabalho já fazia parte da rotina das mulheres muito antes de tais reivindicações.

Um homem nunca vai ser a melhor pessoa para falar sobre as demandas das mulheres, porque só nós sabemos como a sociedade é machista e o quanto o patriarcado é implacável. Mas numa coisa eu preciso concordar com Lima Barreto: se olharmos bem para o fio e a meada da história, as mulheres pretas, por exemplo, estavam nos mundos do trabalho já havia um longo tempo.

Lima Barreto era um apaixonado pelo Rio e falo isso por convicção, admiração e com provas – que não cabem num power point projetado em Curitiba. Ele era um homem marcado pela cor, que chamava atenção para a importância da instrução, que falava dos módicos teatros do Méier, que mesmo sendo simples eram fundamentais para a população que ali residia.

Nosso cronista é a história que precisa ser contada, nas páginas de um homem de cor que experimentava na pele aquilo que nossos meninos mortos no caminho da escola sofrem. Nossos meninos têm direitos negados, a cidade ceifada pela classe, pela raça. Não é mentira que quando se pergunta a cor se sabe a dor.

Se a estrada de ferro que levava Lima Barreto para a cidade, fazia-o sentir o cheiro das mudanças, inquietudes e a vontade de escrever sobre o Rio de Janeiro que se transformava, hoje ela nos obriga a sentir o mau odor de ser habitante de um território abandonado, ocupado pela política que assaltou os cofres públicos e que tem perpetuado o descaso com a população, especialmente, a população preta, pobre e periférica.

Temos experimentado aquilo que Lima Barreto apresentava ao longo de suas crônicas, uma política que debocha do fim da linha, que pouco se preocupa com a população vista de baixo. Num país em que mais de quatrocentos mil vítimas do descaso e da política genocida, que falta faz nosso cronista, nosso sensato escritor do cotidiano, que estaria reafirmando a urgência da apreciação da vida e da reivindicação do existir, do resistir. 

Missa campal de celebração da abolição da escravatura

Afonso Henriques de Lima Barreto hoje, 140 anos após o seu nascimento, diria que ser preto e pobre continua significando ter direitos negados. Na semana passada vivenciamos uma chacina, assistimos uma favela sendo lavada pelo sangue da população preta periférica, vimos o Estado fazendo aquilo que a Constituição não permite, assistimos indivíduos serem condenados sumariamente à pena de morte.

Hoje, vivemos uma pandemia que parece não ter fim, vemos a fome cada vez mais perto de nós e nos damos conta de que a dívida acumulada desde o 13 de maio de 1888 não foi paga, que os abismos seguem vivos, queimando. Se naquele momento a nossa liberdade não veio pelas mãos da princesa, hoje ela não virá pelas mãos de um (falso) messias.

Hoje estamos saudosos de Lima Barreto, estamos saudosos do ir e vir tão presente ao longo de suas obras, estamos saudosos de vida.

*Camilla Gomes é carioca suburbana, mas niteroiense de coração e residência. Doutoranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professora, antirracista, feminista.