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BRASIL

Saúde como mercadoria: os lobbys pelo uso da hidroxicloroquina e o caso da Hapvida

Rafael Rabelo*, de Fortaleza, CE
Reprodução

O recente depoimento do ex-ministro da Saúde Nelson Teich na CPI da Covid, apesar de ter sido considerado morno, serviu para colocar luz sobre um fato conhecido por milhares de usuários de operadoras de saúde complementar, mas que até então estava obscuro: a existência de um “lobby da cloroquina”, que é tão assustador quanto vasto, a medida que abrange desde o presidente da República até médicos plantonistas, passando por senadores integrantes da CPI e empresários da saúde privada. É, ao mesmo tempo, um lobby político, econômico e médico. 

A título de exemplo, uma das maiores operadoras privadas de saúde do país, a HAPVIDA, foi multada em 26 de abril pelo Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor do Ceará em R$ 468.333 por impor aos médicos conveniados a prescrição de medicamentos do chamado “Kit COVID”, dentre os quais a hidroxicloroquina. O caso da HAPVIDA é o mais emblemático, mas não o único. Outras operadoras usaram o pretenso “Kit” em seus protocolos de tratamento da COVID, como a UNIMED (que já o descontinuou), ou continuam usando e o defendendo, como a Prevent Sênior. 

É importante destacar que em outubro de 2020 a Organização Mundial da Saúde concluiu um amplo estudo chamado de Solidarity, em que após a análise de dados coletados em 11.200 pacientes afetados por COVID-19, em 400 hospitais de 32 países, a hidroxicloroquina foi considerada ineficaz no tratamento da doença em qualquer uma de suas fases. Não é incomum que médicos pesem a relação entre benefícios e riscos na utilização de medicamentos em geral, mesmo dentro do conceito de “off label” tão mal utilizado pelo presidente. Mas, neste caso específico, o benefício é nulo segundo os estudos existentes enquanto o uso indiscriminado deste medicamento pode trazer complicações cardíacas e renais graves. 

Este texto analisa cada um destes elementos na tentativa de compreender a força do discurso defensor do medicamento, sua relação com o avanço da privatização da saúde no Brasil, bem como a instrumentalização destas questões como legitimadoras da política neofascista em nosso país. 

O LOBBY POLÍTICO

Em março de 2020, o médico francês Didier Raoult divulgou um controverso estudo realizado com 80 pacientes em que, aparentemente, o uso da hidroxicloroquina teria uma eficácia de 81% no tratamento precoce da SARS-COV2. O estudo foi duramente criticado por médicos e cientistas ao redor do mundo por utilizar um número muito pequeno de amostras e por não possuir o chamado “grupo de controle”. Mesmo assim, líderes neofascistas ao redor do mundo, como Donaldo Trump e Bolsonaro, deram ao medicamento um status de “salvação nacional”. 

Nos EUA, entre abril e junho de 2020, por influência direta de Trump, a hidroxicloroquina foi amplamente utilizada como protocolo de combate à COVID. Mas, a partir de estudos preliminares, já na metade do último mês, a FDA revogou o uso do medicamento como forma de tratamento da doença. Em janeiro de 2021, estudos mais amplos realizados pelo Sistema de Saúde Henry Ford em parceria com a prefeitura da cidade de Detroit, concluíram a ineficácia do tratamento e sugeriram a sua interrupção imediata no país.  

No Brasil, independente das vastas evidências científicas, Bolsonaro continuou extensivamente recomendando o uso do produto em todos os seus canais de comunicação, oficiais ou não. Mais do que isso, os laboratórios químicos e farmacêuticos do exército foram colocados a serviço da produção do medicamento. Se produziu 80 vezes mais hidroxicloroquina do que a média anual do país em 2020, em uma operação superfaturada que pagou 3 vezes mais do que o preço de mercado pelos insumos necessários para a sua produção. 

O neofascismo brasileiro escolheu este medicamento ineficiente como estratégia política de enfrentamento da crise sanitária, como está evidenciado em relação ao que ocorreu em Manaus no início deste ano, para onde, no auge da crise de escassez de oxigênio, o Ministério da Saúde enviou caixas de hidroxicloroquina. Também servem como exemplos deste apontamento os discursos “pró-cloroquina” dos senadores governistas Marcos Rogério e Eduardo Girão na CPI da COVID.   

O LOBBY ECONÔMICO

A saúde em uma instituição privada é uma mercadoria como outra qualquer. As operadoras vendem o produto, lucram e esperam a satisfação do cliente. Agora, em um exercício de imaginação, pense em um produto que, ao ser vendido, está impossibilitado de trazer qualquer forma de satisfação a quem o consome. Esta é a saúde quando se trata do enfrentamento de uma doença que não tem remédios eficientes ou cura rápida, apenas um longo, caro e penoso tratamento, a COVID-19. 

A operadora de saúde HAPVIDA sempre foi bastante eficiente na operação e venda do seu produto. Desde a sua fundação na cidade de Fortaleza, em 1993, deixou de ser apenas um hospital privado local para se transformar em um dos maiores planos de saúde do Brasil, com cerca de 6,6 milhões de clientes e 15 mil médicos conveniados, 4000 deles só no Ceará. Desde a abertura de capital da empresa, em 2018, o grupo vem adotando uma agressiva estratégia de ampliação do seu mercado de atuação, como a aquisição do Grupo São Francisco, atuante no estado de São Paulo, do Grupo América, do Rio de Janeiro, e a provável fusão com o Grupo Notre Dame Intermédica, segundo maior operador de saúde privada do país. A família do fundador da HAPVIDA, Cândido Prinheiro, é a 11ª mais rica do país segundo o índice da revista Forbes. 

Enquanto no início da pandemia se acreditava que os planos de saúde privados seriam impactados negativamente pelo aumento dos custos devido ao enfrentamento da doença e a crise econômica que diminuiria sua base de clientes, em 2020 a HAPVIDA aumentou seu valor de mercado em 19%, sua receita líquida em 27,3% e o valor de suas ações dispararam 64,8% segundo a ferramenta Economática. É exatamente neste ponto que o poder econômico encontra o poder político. 

Não apenas a HAPVIDA, mas também outras operadoras, foram muito ágeis na busca uma “solução” para o problema COVID. Reestabelecer a eficiência do produto vendido, no caso a saúde, estava na ordem do dia. Independente da eficácia, a hidroxicloroquina estava em abundância no mercado pela sua produção excessiva. Era, e continua sendo defendida fervorosamente pelo bloco de poder dominante no Brasil, uma propaganda gratuita. Bem como conta com uma vasta rede de divulgação dos resultados “efetivos” do tratamento, as redes bolsonaristas. Não determinar o chamado “Kit-Covid” como protocolo de tratamento era um mal negócio. 

O LOBBY MÉDICO

Apesar das diversas denúncias de coação de médicos para a prescrição de hidroxicloroquina no grupo HAPVIDA e na saúde privada em geral, não podemos esquecer do papel do Conselho Federal de Medicina como avalizador desta forma de tratamento, da carta dos auto proclamados “Médicos pela Vida”; aonde defendem o pretenso “tratamento precoce” e o presidente Bolsonaro como uma espécie de “visionário” deste procedimento; bem como a presença da médica cearense Mayra Pinheiro, conhecida como “Capitã Cloroquina”, no papel de assessora do Ministério da Saúde e uma das mais fervorosas defensoras do medicamento. 

Mesmo com os enfrentamentos de outros setores da medicina e sindicatos de profissionais de saúde, o discurso de autoridade médica construído em torno desta questão serve como importante suporte ao ideário neofascista no Brasil e no mundo. A racionalidade científica, apesar da pretensão, não é neutra, é política e vem sendo usada como tal. 

Ao construir a resistência ao fascismo brasileiro não podemos deixar de levar este fato em consideração.        

 

* Professor da educação básica no Ceará e mestre em Políticas Públicas.