Pular para o conteúdo
BRASIL

Coletiva da Polícia Civil após chacina foi espetáculo de proselitismo bolsonarista e visão de mundo miliciana 

da redação
Quatro policiais estão atrás de uma mesa.
Foto: Divulgação/JT

Entrevista coletiva da Polícia Civil do Rio de Janeiro

Entre a infinidade de absurdos que envolvem a chacina do Jacarezinho, merece registro a nauseante entrevista coletiva oferecida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro. Longe de ter como centro a cobertura legal e democrática da Operação Exceptis ou mesmo defender a polícia das acusações de abusos e violações, o que se viu foi uma autêntica performance, ao estilo das que alimentam as redes das bases bolsonaristas; uma genuína iniciativa de agitação política.

Como bem definido pelo professor Silvio Almeida, “o ocorrido após o massacre em Jacarezinho não foi uma entrevista coletiva, mas um ato de afirmação de poder por parte da polícia civil. Um poder que, fique claro, não se submete a nenhuma lei e que desconhece a Constituição. A intenção evidentemente não era prestar contas e nem justificar as mortes provocadas na mais letal operação policial da história do RJ. Foi um recado, uma mensagem na forma de espetáculo, assinado com o sangue no chão e nas paredes das casas.”

É sabido que as milícias tecem os laços orgânicos entre a estrutura institucional das forças de segurança, as atividades criminosas desempenhadas por seus agentes e o próprio poder de Estado. Mas essas organizações paramilitares ensejam, também, a produção de uma ideologia ou, por assim dizer, uma visão de mundo. Nessa racionalidade da barbárie, o combate à violência é: (1) necessariamente realizado de forma violenta, sem qualquer sentido de proporcionalidade; (2) qualquer contingência, procedimento ou limite legal à ação das polícias é tida como parte de uma espécie de mecanismo de colaboração do “sistema” com os “bandidos” e (3), por consequência, agentes institucionais, ativistas, militantes, defensores de direitos humanos ou mesmo elementos dissonantes na sociedade civil são equiparados, como mínimo de um ponto de vista discursivo, aos próprios “bandidos” e, ainda, (4) estes são elencados como vozes de cumplicidade com a morte de agentes de segurança em combate.

Em suma, militares e agentes de segurança teriam licença para matar e liberdade total para agir com tanta brutalidade quanto julgarem necessário. Qualquer obstáculo ético, legal ou prático à política de extermínio se insere, na lógica suja da guerra interna, no campo do inimigo contra os cidadãos de bem. Do ponto de vista político, o bolsonarismo é o movimento que melhor amalgama, no presente momento, tais valores na consciência de milhões e na prática social. 

Todos esses elementos ideológicos estiveram abertamente presentes na ignóbil entrevista coletiva da Polícia Civil, o que lhes conferiu, no contexto da chacina do Jacarezinho, indisfarçável ressonância institucional. Nas palavras do delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional:

“Alguns pseudoespecialistas de segurança pública, e nós temos diversos na sociedade brasileira, inventaram a lógica de que quanto maior produção de conhecimento de inteligência menor seria a reação por parte do crime. Isso não funciona dentro das comunidades do Rio de Janeiro, em especial junto a uma facção criminosa (…) O resultado disso nada mais é do que o fortalecimento do tráfico. Quanto menos você combate, quanto menos você se faz presente, o tráfico obviamente vai ganhando cada vez mais poder, expandindo seus domínios e avançando cada vez mais para dentro da sociedade organizada.”

O delegado sentiu-se a vontade, em pleno exercício de suas atribuições funcionais, para fazer, ainda, proselitismo envolvendo o STF, quanto à decisão da Corte no contexto da ADPF 635:

“De um tempo para cá, por conta de algumas decisões e um ativismo judicial que se viu muito latente na discussão social, fomos de alguma forma impedidos ou foi dificultada a ação da polícia em algumas localidades” (…) Parte desse ativismo que de alguma forma orienta a sociedade numa determinada direção definitivamente não está do lado da Polícia Civil e da sociedade de bem. Os interesses deles são diversos, são outros. E eu queria deixar muito claro que o sangue desse policial que faleceu hoje em prol da sociedade de alguma forma está na mão dessas pessoas, dessas entidades. (…) Se alguém fala em execução nessa operação, foi no momento em que o policial foi morto com um tiro na cabeça.”

“Decisão do STF não impede a polícia de fazer o dever de casa. Ela coloca protocolos e a Polícia Civil cumpre todos (…) Não sei se as grandes operações dão resultado. O que eu sei é que a falta de operação dá um péssimo resultado.”

É certo que a brutalidade policial está longe de ser uma novidade para os moradores das comunidades e periferias cariocas e brasileiras, sobretudo de sua população negra. Mas o massacre do Jacarezinho levanta, não apenas por sua intensidade, um problema chave para a compreensão do Brasil de Bolsonaro. O alinhamento ideológico das polícias e seus submundos milicianos ao neofascismo atribui sentido político consciente à promoção do horror. Desafiando as instituições do regime democrático-liberal, há um sem número de quadros, por dentro e por fora das estruturas oficiais de segurança, prontos a respaldar qualquer tirania e empregar métodos de terror funcionais a tal projeto político. É algo que não pode ser entendido como lateral, em um país cujas crises agudas e concorrentes sugerem uma tendência a soluções violentas.

 

LEIA MAIS