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MUNDO

Privatização da saúde é um dos principais motivos do levante colombiano

Paulo Ribeiro, do Rio de Janeiro, RJ
Medios Libres Cali/Facebook

O povo colombiano vem protagonizando, desde o dia 28 de abril, um grande enfrentamento ao governo do presidente direitista Iván Duque. Sob a justificativa de buscar saídas para os impactos econômicos e sociais provocados pela pandemia da Covid-19, o governo Duque construiu um pacote de ajustes econômicos, através de uma proposta de reforma tributária encaminhada ao parlamento colombiano, que atacou fortemente os interesses e os direitos dos setores mais pobres e das classes médias no país. Esse foi o estopim para a grande mobilização popular que acontece desde o fim de abril. Ainda que inicialmente não fosse o principal motivador dos protestos, a retirada da proposta de reforma do sistema de saúde colombiano, que tramita no legislativo local, estava entre as principais pautas do movimento.

Já são vários dias de greves gerais que pararam o país e de gigantescas manifestações que unificaram diversos setores do movimento social organizado e da população em geral. Diante de tamanha mobilização a reação do governo Duque foi brutal. A Rede Telesur da Colômbia denunciou no dia 04 de maio, a partir de suas fontes, que já havia 31 manifestantes mortos (1), mais de 1400 casos de violência policial, mais de 800 prisões arbitrárias e uma dezena de casos de violência sexual cometidos pelos agentes da repressão, além de 87 desaparecidos (2). Tamanha repressão tem gerado a denúncia e cobrança internacional ao Governo Duque pela violação de direitos, chegando a gerar até mesmo manifestações públicas da Organização das Nações Unidas (ONU) e da União Europeia.(3)

Mesmo diante de tamanha brutalidade o movimento cresceu desde o seu início, o que levou o Governo Duque a ações defensivas, visando aplacar a força do movimento. No dia 02 de maio o governo recuou em relação a proposta de reforma tributária, solicitando sua retirada do Congresso e, no dia seguinte, o Ministro da Fazenda e mentor da proposta, Alberto Carrasquilla, pediu demissão do cargo. O intuito do governo não foi alcançado e o movimento seguiu firme. Outras pautas assumiram centralidade, como a denúncia da violência estatal contra os movimentos sociais, que já era grave antes das manifestações, e a retirada do projeto de reforma do sistema de saúde.

O que denunciam os movimentos e a oposição parlamentar sobre a reforma da saúde?

A proposta de reforma do sistema de saúde colombiano foi apresentada através do Projeto 10 de 2020, no Senado, pelas bancadas do Partido Conservador, do Cambio Radical e do Centro Democrático. Sua tramitação se acelerou a partir de março de 2021, quando foi apresentado pedido de urgência em sua tramitação, tendo recebido mais de 300 propostas de mudanças que vem sendo discutidas. 

No dia 27 de abril, um dia antes do início da greve geral, parlamentares de oposição ao governo Duque divulgaram um comunicado público com diversas denúncias.(4) Eles destacam a estranha aceleração das discussões e que o projeto se tornou quase imparável, com irregularidades regimentais, como a criação de uma comissão conjunta da Câmara e do Senado para analisar as mais de 300 emendas apresentadas sem a participação da oposição e até o uso de assinaturas falsificadas. Denunciam também que é uma porta aberta para a privatização do sistema de saúde local, afirmando que o projeto de lei “transforma o negócio de intermediação financeira em monopólio exclusivo com alto ingrediente de capital financeiro internacional, além de enfraquecer a rede hospitalar pública, fortalecer a integração vertical, e não resolver precariedade e terceirização de trabalhadores da saúde”.

(5)O projeto trata de vários pontos que, à primeira vista, poderiam trazer melhorias no serviço prestado à população, mas os críticos ao projeto afirmam que não há clareza em vários aspectos das propostas. Questionam como serão implementadas e financiadas as mudanças, assim como a transparência e a participação mais ampla no processo após aprovação, o que gera um grande nível de insegurança e vulnerabilidade ao sistema de saúde. As propostas passam: pela regionalização do sistema; pela definição de responsabilidades sobre as ações coletivas, pelos riscos individuais e pela promoção dos serviços; altera o modelo de atenção, propondo o fortalecimento da atenção primária; implementa um sistema de avaliação dos sistemas e serviços prestados à população; indica fortalecer um sistema local para o desenvolvimento tecnológico em saúde; dentre outros pontos.

Porém, vale destacar que em pontos do projeto é delegado ao Ministério da Saúde e mesmo ao Ministério da Fazenda a definição de diversas regulamentações, como na formulação de “uma política pública de segurança sanitária intersetorial que será avaliada ao longo do tempo, e que tem como objetivos garantir a disponibilidade, acessibilidade e qualidade dos serviços e tecnologias, recursos humanos e financeiros necessários à atenção integral à saúde dos habitantes do território nacional”. Em outros, como no artigo 54, torna explícita opção pela privatização do sistema com a entrega dos serviços ao setor privado, destacando que “o Estado poderá fazer alianças público-privadas para a construção, provisão, operação, administração delegada, que complemente as redes assistenciais e tenda a garantir o direito à saúde”, cujas “condições e formas de funcionamento” serão regulamentadas pelo Ministério da Saúde. Acrescenta ainda que “para o desenvolvimento de projetos de infraestrutura de saúde ou a prestação de serviços de saúde por entes territoriais ou da Nação, o Estado promoverá a realização de parcerias público-privadas” por meio de diversas modalidades.

Privatização da saúde no Brasil: é preciso resistir

É fundamental que o exemplo colombiano nos inspire a resistir aos ataques que temos sofrido também no Brasil. Os ataques aos sistemas de saúde vêm se dando em diversos países já desde os anos 1990. As políticas dos organismos internacionais, como o Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento, tem papel organizador nesse ataque que visa abrir ao capital o acesso ao fundo público.

Desde o golpe de 2016, esse processo que já vinha em curso no Brasil, se intensificou de forma dramática com o desmonte dos direitos sociais em nosso país. As já aprovadas reformas trabalhista e da previdência e o teto de gastos que congela os investimentos públicos na área social são exemplos mais gerais desse processo de retirada de direitos. Mas a saúde pública e o SUS também vem sendo alvo de vários ataques, como temos visto também em outros países.

Precisamos resistir ao avanço do capital sobre nossos direitos. Na sua busca desenfreada por recompor as taxas de lucro e acumulação, ele estende seus tentáculos sobre todos os âmbitos de nossa vida.

Mudanças nas formas de financiamento, o desmonte da atenção básica, os retrocessos nas políticas de saúde mental, dentre outros pontos, se juntam a um avanço nas propostas de privatização do nosso sistema de saúde. Além das já muito difundidas Organizações Sociais (OSs), Fundações de Direito privado e Empresas Públicas, se somam no arcabouço da privatização as empresas hospitalares privadas e os planos de saúde, que avançam cada vez mais. Isso pode se dar, por exemplo, pela entrega de hospitais públicos para estas empresas ou com o financiamento público para atendimento da população através de planos privados de saúde. São muitas as modalidades e formas que vem sendo propostas pelos governos no Brasil e todas tem em comum a destruição do SUS público e estatal e a de uma proposta de saúde pública realmente comprometida com a saúde de toda população, sem privilégios aos que podem pagar mais.

Precisamos resistir ao avanço do capital sobre nossos direitos. Na sua busca desenfreada por recompor as taxas de lucro e acumulação, ele estende seus tentáculos sobre todos os âmbitos de nossa vida. O Estado cada vez mais assume de forma clara seu papel de gestor dos interesses do capital. Desta forma vão se somando as ações que buscam dar ao capital acesso ao fundo público. A saúde está inserida nesse caso. E não devemos ter dúvidas: ao capital interessa sua própria reprodução. Por isso devemos seguir lutando e resistindo a todos esses ataques. E que nos sirvam de exemplo as lutas do povo colombiano e todos os demais enfrentamentos que vem sendo protagonizados pelos nossos irmãos e irmãs da América Latina.

NOTAS

(1) https://www.telesurtv.net/news/colombia-general-accionar-represivo-desaparecidos-asesinatos-20210504-0033.html

(2) https://www.telesurtv.net/news/reportan-desaparecidos-protestas-colombia-20210504-0017.html

(3) https://www.telesurtv.net/news/colombia-represion-violencia-solidaridad-20210506-0012.html

(4) https://www.infobae.com/america/colombia/2021/05/02/reforma-a-la-salud-el-siguiente-punto-en-disputa-por-el-que-las-protestas-en-colombia-se-mantendran/

(5) https://www.elnuevosiglo.com.co/articulos/05-03-2021-estos-son-los-diez-puntos-clave-de-la-reforma-la-salud