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BRASIL

Cansamos de morrer aos poucos e de nos matarem aos muitos

Gabriel Santos*

Quinta-feira, 6 de maio de 2021. 

Por volta do meio-dia, a notícia do telejornal é: “operação policial deixa 25 mortos”. Sem mais nem menos. Existiu uma operação policial, existiu um confronto, foram 25 mortes. É isso. O desenvolvimento das coisas. E assim, no ritmo da TV e dos cliques, seguimos para a próxima notícia, mais alegre e entusiasmada, sobre algum ex-participante de reality show. 

As mortes são narradas como se fossem algo natural, um fato praticamente inevitável. E tinha como ser diferente? Acredito que não. Na verdade teria, se as vidas perdidas tivessem a pele um pouco mais clara e morassem em um CEP diferente. É inimaginável pensar em 25 mortes em uma operação em um condomínio de luxo. 

Afinal essas vidas perdidas não merecem destaque, nem um minuto de silêncio no “Jornal Nacional”. Como a própria imprensa chegou a notificar: “23 bandidos foram mortos”, eram “23 suspeitos de tráfico”. Estes corpos que tombaram no chão não merecem nossa empatia. 

Repare bem. Nada foi dito ainda sobre eles. Quem eram? Quais seus nomes? Quais seus sonhos? Tinham família? Nada disso interessa. Afinal eram “bandidos”, e isso basta. Condenados sem julgamento e sem nenhum direito à defesa. Não existe a presunção de defesa, muito menos questionamento do grau de violência usada na operação. Nada disso é necessário para um bom jornalismo. A ótica racista que estrutura a nossa sociedade e também a nossa imprensa, já afirma: “são bandidos”, já os condena e assim legitima o fim de 25 vidas. 

Usando o exercício da imaginação, pense se, ao invés da Favela do Jacarezinho, as mortes tivessem ocorrido no Leblon. Vamos trabalhar com a hipótese de uma única vida perdida no bairro nobre carioca. Em questões de minutos veríamos reportagens especiais com depoimento de familiares, saberíamos a história de vida da vítima, seus hobbys, seu time de coração e até seu animal de estimação. 

O racismo faz com que os corpos negros sejam vistos como um perigo a sociedade. Estão à margem social. São vistos erroneamente como mais violentos, mais sujeitos a cometer infrações penais, e perdem sua humanidade, sendo incorporado a eles visões negativas. Este processo faz parte da legitimação da morte de pessoas negras. Esses são sempre sujeitos sem nomes, perigosos e acima de tudo suspeitos. Uma vida negra a menos é um suspeito a menos. A lógica de desumanização é parte inicial da máquina do genocídio negro que funciona em nosso país. 

No Brasil desigual, onde as vidas são tão diferentes e têm sentidos opostos e excludentes, a morte também é desigual. Para uns ela faz parte de um ciclo. É o ponto final de uma história com começo, meio e fim. Para outros, leia-se pobres e negros, a morte é um cotidiano. Não existe ciclo. Ela sempre está ali, presente, podendo aparecer a qualquer momento. 

Esse instante aconteceu hoje na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Diferentemente do dito pela imprensa, não foi um conflito. Foi um massacre. Não foi uma operação policial, foi uma chacina.

Na favela situada na Zona Norte do Rio de Janeiro, antes mesmo de o sol surgir, o céu já era ocupado por helicópteros e balas que cruzavam o ar cortando o silêncio. 

Estilhaços atingiam moradores na medida que iam para o trabalho. Seja pelo metrô ou usando o moto táxi. A bala perdida atirada pelo Estado sempre se torna bala achada diante de um corpo negro. 

Fica dentro de casa. É a frase para se proteger do vírus. Mas dentro de casa a polícia joga bomba de gás lacrimogêneo. A mesma casa que ela invade e destrói sem mandado de busca – duas palavras que não existem nas favelas e periferias. Granadas nas ruas, helicópteros no céu, balas nas esquinas. 

Às 11 horas da manhã já eram 15 corpos caídos. Não preciso dizer a cor deles, acredito que você já saiba que são NEGROS. 

Os helicópteros ainda rondam no céu. 

A polícia, para mostrar seu poder, fuzila um morador e o coloca sentado em uma cadeira no meio da rua. Busca amedrontar a população, como se dissesse que eles teriam todos o mesmo fim. 

Mais dez mortes ocorrem nas próximas horas. 

Perguntas surgem. 

Quantos policiais participaram? Houve socorro às vítimas? Será possível fazer uma perícia? Quem autorizou a operação? 

Para a maioria delas sabemos as respostas. 

Se o Estado Democrático de Direito existisse, o governador do Rio de Janeiro cairia amanhã. Se a democracia fosse realmente democrática, chacinas como essa não seriam esquecidas. Se… 

Mas, como disse um revolucionário russo, um tal de Vladimir Lenin, a democracia burguesa é ainda uma forma de dominação e opressão do povo pobre. No Brasil, a democracia burguesa é a parte de dominação, de opressão, de burguesa, mas quase nada de democracia. 

O Estado brasileiro é ausente nas periferias e favelas durante a vida de seus moradores, mas presente para efetuar a morte. Ele não garante políticas públicas e direitos básicos, mas efetua um terrorismo contra a população. 

Um outro revolucionário, de pele mais escura que o citado acima, dizia que o povo negro vivia em uma situação de dominação interna semelhante ao imperialismo. Falo de H.P Newton, o fundador do Partido dos Panteras Negras Para a Autodefesa. Ele dizia que a dominação capitalista nos guetos e comunidades negras era semelhante a um Estado fascista, por conta da questão racial. Aqui no Brasil, país do caveirão que invade favelas, de helicópteros que sobrevoam casas e que são proibidos inclusive em países que estão em guerra declarada, e do presidente que diz que a solução para a segurança pública é justamente o fuzilamento de comunidades pobres, é difícil dizer que H.P Newton não tinha razão. O fascismo sempre esteve por aqui, o regime militar nunca foi embora por inteiro, a colonização nunca acabou. 

Bolsonaro é somente a mais acabada forma de dominação de nossa elite. Mas ela sempre foi exatamente isto. Violenta, patriarcal, tosca, submissa ao estrangeiro e absurdamente racista. Não resta dúvidas que se fosse possível uma solução final para acabar com “bandidos e marginais”, nossa elite apoiaria ela. Enquanto essa solução não chega, a marcha fúnebre prossegue, seja de vírus ou de bala, corpos negros caem no chão. 

Falando em Bolsonaro, o presidente se reuniu ontem com o novo governador carioca, Cláudio Castro, empossado neste sábado. É no mínimo suspeito que a maior chacina da história moderna em ações policiais tenha ocorrido um dia após esse encontro. É suspeito também que tenha ocorrido dias após o MP ter aberto um canal de denúncias externas para apurar essas operações policiais. 

Vale ressaltar que o STF proibiu ações policiais em favelas cariocas no ano passado. Inicialmente surtiu efeito, mas as mortes continuaram e este ano as operações voltaram a se tornar uma rotina. Foram 800 mortes desde a proibição do STF, e somente nos dois primeiros meses do ano, de acordo com a Rede Observatório da Segurança, 9 chacinas. Em um bom e velho português a PM e o Governo do rio estão pouco se f* para o STF. A ação de hoje foi também um espetáculo midiático, uma amostra, mostraram para o Brasil todo que quem manda e desmanda é a Polícia e o governador. 

Se Deus está acima de tudo eu não sei, muito menos se o Brasil está acima de todos. Mas uma coisa é certa. O Deus deles nos odeia, e no Brasil que eles querem nós não existimos. 

Por aqui nós nos cansamos de tanta dor. Não sabemos mais se vamos estar vivos durante os próximos meses. O sentimento de ódio se mistura com a tristeza e desolação. 

Dói. 

Esse é o tipo de texto que preferia não ter escrito. E que cada linha foi também uma dor. Para uns, as instituições funcionam normalmente. Para outros as instituições são a causa do fim. 

Cansamos de morrer aos poucos e de nos matarem aos muitos.

 

*Gabriel Santos é educador popular em Maceió (AL) e ativista do Afronte!