O Oito é o primeiro romance da escritora Paloma Franca Amorim, publicado em março de 2021, pela Alameda Editorial. O livro, escrito em primeira pessoa, narra a trajetória de uma mulher, na faixa dos 30 e poucos anos, entre São Paulo e Belém do Pará (sua cidade natal). São fragmentos de memória, elocubrações sobre o passado misturadas ao presente, num fluxo de pensamento intenso: não sabemos seu nome, mas já nas primeiras linhas nos deparamos com o labirinto de sua mente rápida, irônica, vibrante.
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Somos tragados por essa cabeça, que é olho, coração, estômago, fígado, garganta, tudo ao mesmo tempo. É também útero, de onde acompanhamos um aborto, seguido de uma separação e do início do processo de escrita/nascimento de um livro. Nada se separa: sua existência como mulher é concretizada em classe, espaço, estado, país. Tanto que suas dores, cicatrizes e gargalhadas alcançam dimensões maiores do que sua existência individual. Na linha fina entre o público e o privado, vida social e vida interior – afinal, como haveriam de se dividir?
Testemunhamos o Oito, que é um, dois, vários, pelos caminhos da amizade. Encontros, desencontros, reencontros não só entre Belém e São Paulo, como também no Rio de Janeiro e para além-mar, em Portugal. Testemunhamos também histórias de amor, em especial a de nossa narradora com a professora de teatro, Gabriela. Corre em paralelo, a história de um bar chamado Oito, em Belém do Pará, reduto de estudantes, artistas, jornalistas, militantes da capital paraense que foi violentamente reprimido pela policia militar local, numa acusação falsa de tráfico de drogas. Os donos do bar, especialmente, outra mulher, Joana, é amiga da narradora. Não uma amizade qualquer. Daquelas de dividir memória e carne desde a infância. Assim como outros personagens que se revelam, como José, o dançarino.
Nada se separa: sua existência como mulher é concretizada em classe, espaço, estado, país.
Minha experiência com a leitura do livro foi um tanto particular. Isso porque conheço a autora do livro, Paloma, minha amiga de faculdade de Artes Cênicas, que assim como a personagem, nasceu em Belém e vive em São Paulo. Como num redemoinho, a trajetória da mulher inventada me espelha a autora, nossas conversas, vivências e histórias de amizade. Tudo entra em espiral.
A minha posição de confidente é relativa, porque não há segredos a serem guardados: “a vida é um inferno”. A linguagem do livro é poeticamente explícita, não dando meia voltas para o testemunho de destruição e barbárie que rodeia a personagem, o bar, os amigos, nossa geração, o Brasil. Não que interesse muito o que há de biográfico, mas é como se meu processo de identificação com a narradora fosse duplicado pela relação que tenho com a autora. O que aguçou a leitura, como se estivesse diante dos caminhos inconfessos da consciência – e me fez muitas vezes repetir em silêncio: “prometo que não falo nada com ninguém”.
Mas também há espaço – grande – para o encantamento, para o deslumbrar-se com a vida, com o amor, com os sonhos de futuro, o mar aberto pelo caminho do rio. É que está tudo enlameado, como a imagem do final, em que a personagem diz que “parece que deixei a torneira aberta porque a água começa a vazar pelo chão, uma água límpida, cristalina num primeiro momento, e depois vai verdeando, marrom, outubro, vira imensa e mal acabada fuga dos piratas de rio.”
Entre os traumas da vida e os do país, balançamos no rio, avistamos os incêndios, junto a Paloma, rindo alto depois de um gole de cerveja gelada. Termino o livro e olho pela janela: vejo tanto porvir, apesar dos assombros e meus 30 e poucos anos.
*Mariana Mayor é atriz, professora e pesquisadora de teatro brasileiro.
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