Em maio de 2020, profissionais da Enfermagem realizaram um ato público na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com o objetivo de homenagear os profissionais da saúde vítimas da COVID-19 e exigir o compromisso dos governos federal e estaduais com o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI), insumos e condições dignas de trabalho.
Passado um ano daquele 1º de Maio em Brasília, a Enfermagem agora protagoniza a luta pela aprovação do Projeto de Lei 2.564/ 2020 de autoria do Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), que institui o piso salarial nacional das enfermeiras, técnicas, auxiliares de enfermagem e parteiras. Já são mais de 20 anos desde que o PL 2295/00, que dispõe sobre a redução da jornada de trabalho da enfermagem para 30 horas, foi apresentado no Congresso Nacional e até hoje a categoria não tem essa reivindicação atendida.
Qual o significado, em perspectiva histórica, do protagonismo destas profissionais no último período, quando o País enfrenta uma grave crise sanitária, econômica e social?
No ano passado, muitos trabalhadores não puderam sair de casa para realizar os atos públicos do tradicional 1º de Maio. A maior parte da classe trabalhadora ficou em casa cumprindo a quarentena, com o intuito de proteger as vidas dos brasileiros. Por esta condição, as profissionais da Enfermagem representaram todos e todas que desejavam sair às ruas para denunciar o negacionismo anticientífico de Bolsonaro e seu comportamento genocida durante a pandemia.
Naquele dia do Trabalhador e da Trabalhadora a consciência de classe dessas profissionais antecipou a leitura de um cenário de hecatombe para os profissionais da saúde, onde o modelo hegemônico biomédico, de características curativa e mercantilista da saúde, reproduziria os efeitos de anos de supressão e flexibilização de direitos trabalhistas, de queda da média salarial dos trabalhadores, das terceirizações e privatizações, do aumento da produtividade e da redução de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS).
O 1º de Maio de 2020 expressou, ainda, para a Enfermagem, a luta contra anos de sofrimento de uma categoria submetida a condições de trabalho degradantes, as quais geram restrições físicas e psíquicas, caracterizadas por processos crônicos de dores no corpo, ansiedade e depressão.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de acidentes de trabalho, no ano de 2018, foi 34% maior na área da saúde. Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) do mesmo ano revelaram que o Brasil é o 4° País no ranking de acidentes de trabalho e a Enfermagem é a segunda categoria que mais sofre com esse tipo de acidentes.
Passado um ano da pandemia, o Brasil apresenta quase 800 mortes de profissionais da Enfermagem, o que representa mais de um terço (1/3) das mortes de profissionais da saúde de todo o mundo. Os níveis de absenteísmo, derivados de estresse pós-traumático e de afastamentos por adoecimento físico e mental também são preocupantes. Ou seja, em termos gerais, a pandemia desnudou as condições históricas de espoliação da Enfermagem no País e as consequências para o corpo destas trabalhadoras.
A enfermagem conta hoje, no Brasil, com mais de 2 milhões de profissionais e, conforme dados do IBGE, elas correspondem a 50% da força de trabalho da saúde. Segundo a pesquisa “O perfil da Enfermagem no Brasil”, realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e pela Fiocruz, a equipe de enfermagem é composta por 80% de técnicas e auxiliares de enfermagem e 20% de enfermeiras, sendo 84% mulheres e 53% negros e negras. Além destes dados sóciodemográficos, antes da pandemia 10% da categoria encontrava-se em situação de desemprego, a baixa remuneração e as extenuantes jornadas de trabalho são realidades da enfermagem brasileira.
Esta condição de exploração é resultante da combinação de aspectos objetivos da formação histórica social da categoria. É necessário compreender, portanto, a relação entre a exploração do trabalho da enfermagem e as práticas de opressão que atravessam a categoria, que foi construída pelo exercício das tarefas relacionadas ao trabalho de reprodução social, relegado às mulheres. Do trabalho de cuidado com o outro, periodicamente desvinculado do teor científico e tido como um exercício natural do gênero feminino, é retirado o direito à digna remuneração. Desde o século XX a profissão avançou em suas bases científicas; contudo, continua sendo afetada pela expressão do machismo que estrutura as relações de produção e reprodução – de modo que a compreensão de que a enfermagem não deve ser adequadamente remunerada se mantém.
A sobreposição das opressões, utilizada para a manutenção das condições cada vez mais recrudescentes de exploração, encontra, ainda, no racismo mais um elemento para a perpetuação dos excessos impostos à enfermagem. A desvalorização do trabalho, a intensidade da exploração e a negligência sobre sua saúde são, portanto, reflexo dessas condições sociais. Por fim, esse perfil feminino e negro se soma às condições socioeconômicas dessa categoria, reproduzindo os traços da divisão técnica e social do trabalho e refletindo as desigualdades de acesso à formação científica, que divide entre técnicas e auxiliares, de maioria negra, e enfermeiras o trabalho manual e o trabalho intelectual, respectivamente.
O resultado prático desse perfil sociodemográfico, que também é político, revela-se nessa discussão acerca da sobrecarga laboral, da desvalorização e da baixa remuneração. Ainda segundo os dados da pesquisa do COFEN e da Fiocruz, 16% dos profissionais da enfermagem ganham menos de R$ 1.000,00 e os subsalários são prevalentes nos quatro grandes setores de empregabilidade da enfermagem: público, privado, filantrópico e ensino, sendo os setores privado e filantrópico os que menos pagam à enfermagem por seu trabalho. Este contexto mantém a exploração, a lucratividade desses setores e, além disso, perpetua as desigualdades sociais que atingem – em decorrência do perfil dos profissionais – sobremaneira as mulheres negras.
A pandemia intensifica desmedidamente as consequências negativas desse cenário. O impacto psicossocial de centenas de mortes se apresenta como um sintoma de asfixia da categoria e esta realidade passou a despertar essa consciência pela necessária luta contra uma política que não deixa a Enfermagem respirar e que hoje se expressa na mobilização pela aprovação do PL 2564/ 20.
Organizar os trabalhadores pela base através dos sindicatos e demais entidades de classe e construir um calendário nacional de mobilização.
A batalha pela aprovação do PL 2564/20 é uma tentativa de reparação histórica para a categoria. A garantia de um piso salarial e a redução da jornada de trabalho semanal para 30 horas valoriza economicamente e socialmente o trabalho exercido por centenas de trabalhadoras que cuidam da população mais vulnerável e adoecida do Brasil, além de possibilitar a geração de milhares de postos de trabalho. O piso salarial pode ser um alento para trabalhadoras que se submetem a dois ou três empregos, cumprindo carga horária semanal de mais de 80 horas para conseguirem sustentar seus lares, como mostra a pesquisa do COFEN/Fiocruz.
Nas últimas semanas, a categoria movimentou as mídias sociais para pressionar o Senado a pautar a votação do PL em plenário. Contudo, antes de se lançar em qualquer disputa econômica, a Enfermagem deve saber quais condições se impõem na conjuntura política para conquistar seus objetivos.
A pandemia ainda tem uma dinâmica de alta transmissibilidade, com mais de 3 mil mortes diárias, colapso sanitário e uma campanha de vacinação caminhando a passos muitos lentos. A mobilização da categoria deve considerar, portanto, que ainda estamos enfrentando uma grave crise sanitária, o que ainda impõe um ritmo de desgaste acelerado e de dedicação muito intensa para as profissionais.
Os últimos cinco anos no Brasil também foram marcados pela implementação de um ajuste fiscal rigoroso que impôs a Emenda Constitucional 95, que irá retirar mais de R$ 400 bilhões do SUS em 20 anos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência. É um período de grandes derrotas para os trabalhadores e trabalhadoras e que se combina com uma crise sanitária que, por conta da negligência do governo federal, tem causado uma crise humanitária com taxas elevadas de desemprego e fome.
A aprovação da PL 2564/20 é uma ameaça para os interesses lucrativos e mercadológicos da saúde, pois é a partir da exploração e baixa remuneração da enfermagem que os empresários da saúde têm garantindo seus lucros, aumentando o número de milionários e bilionários no ramo da saúde, como observado na última lista da Forbes, que mostra que, mesmo com a pandemia, o setor saúde viu o patrimônio líquido médio de seus bilionários crescer 134,76 % em 2020, saindo de US$ 1,64 bilhão para US$ 2,28 bilhões.
O peso econômico do trabalho da enfermagem, deve ser um norteador para o peso que sua luta deve ter para avançar em suas conquistas. Uma luta com aspirações econômicas dessa magnitude deve considerar a possibilidade de atos massivos de profissionais nas ruas das cidades e em frente ao Congresso Nacional, com caravanas organizadas pelas entidades de classe da categoria (Federação Nacional dos Enfermeiros, Associação Brasileira de Enfermagem, Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem e Conselho Federal de Enfermagem) de todas as unidades da federação em direção à Brasília.
Além disso, também deve ser considerada a articulação de um dia nacional de mobilização, com a possibilidade de paralisações e greves nas unidades de saúde por todo o país, pois uma luta, nos marcos de uma tragédia histórica para a categoria, sem esses instrumentos de luta da classe trabalhadora, pode ser usada e manipulada por aqueles que sempre votaram contra os trabalhadores e as políticas públicas.
As organizações das entidades médico-hospitalares que solicitaram ao Senado o engavetamento da PL 2564/20 é uma expressão do nível de organização dos empresários da saúde para barrar qualquer tipo de concessão que beneficie a classe trabalhadora. E a enfermagem não pode apostar toda sua energia organizativa e de luta na disputa institucional, promessas ou acordos de um setor da sociedade que se alia e vota beneficiando quem tem mais dinheiro a oferecer.
A política institucional é um local onde se expressa o poder de classe, entendendo que o Estado está a serviço desses empresários, neste caso em específico da casta de ricos que faz da saúde objeto financeiro e lucra com a exploração do trabalho da categoria de enfermagem. Exemplo disso é o fato de que, entre os remetentes da carta contrária ao PL 2564/20 enviada ao Senado, estão Jorge Moll e Dulce Pugliese, dois dos cinco brasileiros mais ricos do mundo, que acumulam fortunas de US$ 11,3 bilhões e US$ 6 bilhões, respectivamente. Aqueles declaradamente contrários ao avanço dos direitos da Enfermagem estão entre os que viram suas fortunas crescerem cerca de R$ 15 bilhões durante a pandemia.
Portanto, diante de uma conjuntura de crise social, sanitária e política e de um governo autoritário e representativo do andar de cima da pirâmide social, a Enfermagem precisa compreender que a aposta institucional é insuficiente. Foram os deputados e senadores que, nos últimos anos, implementaram todo o retrocesso que vivemos com o enfraquecimento das políticas públicas. A categoria só pode confiar nela mesma e na justiça das suas reivindicações.
Nesse momento, lançar-se em uma luta direta, sem alinhamento nacional das entidades de classe da Enfermagem e sem condições para a materialização no avanço na correlação de forças contra o Congresso Nacional e os grandes grupos empresariais da saúde, pode desmoralizar a categoria. É preciso que as entidades nacionais assumam um calendário de lutas durante o ano para que os trabalhadores avancem na mobilização pela aprovação do projeto de Lei.
O avanço dessa luta passa, necessariamente, pela superação da grave situação da pandemia e inevitavelmente, choca-se com a política de Bolsonaro, que irá defender os grandes lucros do setor médico empresarial da saúde. A conquista não só do PL 2564/20 para a categoria de Enfermagem, mas de todas as condições de mitigação dos impactos da política de austeridade implementada nos últimos anos e de recuperação de direitos para toda a classe trabalhadora não parte de uma aposta institucional espontânea e pouco estruturada, mas da luta unitária organizada em direção a um movimento de massas potente que pressione, de fato, aqueles que concentram, hoje, o poder financeiro e político no Brasil.
*Karine Rodrigues – Enfermeira do DF
Lígia Maria – Enfermeira do DF
Jorge Henrique – Enfermeiro do DF
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