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MOVIMENTO

Os desafios da Enfermagem para a aprovação do PL 2564

Karine Rodrigues, Lígia Maria e Jorge Henrique*, de Brasília, DF
Scarlett Rocha

Em maio de 2020, profissionais da Enfermagem realizaram um ato público na Praça dos Três Poderes, em Brasília

Em maio de 2020, profissionais da Enfermagem realizaram um ato público na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com o objetivo de homenagear os profissionais da saúde vítimas da COVID-19 e exigir o compromisso dos governos federal e estaduais com o fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPI), insumos e condições dignas de trabalho. 

Passado um ano daquele 1º de Maio em Brasília, a Enfermagem agora protagoniza a luta pela aprovação do Projeto de Lei 2.564/ 2020 de autoria do Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), que institui o piso salarial nacional das enfermeiras, técnicas, auxiliares de enfermagem e parteiras. Já são mais de 20 anos desde que o PL 2295/00, que dispõe sobre a redução da jornada de trabalho da enfermagem para 30 horas, foi apresentado no Congresso Nacional e até hoje a categoria não tem essa reivindicação atendida.   

Qual o significado, em perspectiva histórica, do protagonismo destas profissionais no último período, quando o País enfrenta uma grave crise sanitária, econômica e social?

No ano passado, muitos trabalhadores não puderam sair de casa para realizar os atos públicos do tradicional 1º de Maio. A maior parte da classe trabalhadora ficou em casa cumprindo a quarentena, com o intuito de proteger as vidas dos brasileiros. Por esta condição, as profissionais da Enfermagem representaram todos e todas que desejavam sair às ruas para denunciar o negacionismo anticientífico de Bolsonaro e seu comportamento genocida durante a pandemia. 

Naquele dia do Trabalhador e da Trabalhadora a consciência de classe dessas profissionais antecipou a leitura de um cenário de hecatombe para os profissionais da saúde, onde o modelo hegemônico biomédico, de características curativa e mercantilista da saúde, reproduziria os efeitos de anos de supressão e flexibilização de direitos trabalhistas, de queda da média salarial dos trabalhadores, das terceirizações e privatizações, do aumento da produtividade e da redução de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS). 

O 1º de Maio de 2020 expressou, ainda, para a Enfermagem, a luta contra anos de sofrimento de uma categoria submetida a condições de trabalho degradantes, as quais geram restrições físicas e psíquicas, caracterizadas por processos crônicos de dores no corpo, ansiedade e depressão. 

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de acidentes de trabalho, no ano de 2018, foi 34% maior na área da saúde. Dados do Ministério Público do Trabalho (MPT) do mesmo ano revelaram que o Brasil é o 4° País no ranking de acidentes de trabalho e a Enfermagem é a segunda categoria que mais sofre com esse tipo de acidentes.

Passado um ano da pandemia, o Brasil apresenta quase 800 mortes de profissionais da Enfermagem, o que representa mais de um terço (1/3) das mortes de profissionais da saúde de todo o mundo. Os níveis de absenteísmo, derivados de estresse pós-traumático e de afastamentos por adoecimento físico e mental também são preocupantes. Ou seja, em termos gerais, a pandemia desnudou as condições históricas de espoliação da Enfermagem no País e as consequências para o corpo destas trabalhadoras.

A enfermagem conta hoje, no Brasil, com mais de 2 milhões de profissionais e, conforme dados do IBGE, elas correspondem a 50% da força de trabalho da saúde. Segundo a pesquisa “O perfil da Enfermagem no Brasil”, realizada pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) e pela Fiocruz, a equipe de enfermagem é composta por 80% de técnicas e auxiliares de enfermagem e 20% de enfermeiras, sendo 84% mulheres e 53% negros e negras. Além destes dados sóciodemográficos, antes da pandemia 10% da categoria encontrava-se em situação de desemprego, a baixa remuneração e as extenuantes jornadas de trabalho são realidades da enfermagem brasileira. 

Esta condição de exploração é resultante da combinação de aspectos objetivos da formação histórica social da categoria. É necessário compreender, portanto, a relação entre a exploração do trabalho da enfermagem e as práticas de opressão que atravessam a categoria, que foi construída pelo exercício das tarefas relacionadas ao trabalho de reprodução social, relegado às mulheres. Do trabalho de cuidado com o outro, periodicamente desvinculado do teor científico e tido como um exercício natural do gênero feminino, é retirado o direito à digna remuneração. Desde o século XX a profissão avançou em suas bases científicas; contudo, continua sendo afetada pela expressão do machismo que estrutura as relações de produção e reprodução – de modo que a compreensão de que a enfermagem não deve ser adequadamente remunerada se mantém. 

A sobreposição das opressões, utilizada para a manutenção das condições cada vez mais recrudescentes de exploração, encontra, ainda, no racismo mais um elemento para a perpetuação dos excessos impostos à enfermagem. A desvalorização do trabalho, a intensidade da exploração e a negligência sobre sua saúde são, portanto, reflexo dessas condições sociais. Por fim, esse perfil feminino e negro se soma às condições socioeconômicas dessa categoria, reproduzindo os traços da divisão técnica e social do trabalho e refletindo as desigualdades de acesso à formação científica, que divide entre técnicas e auxiliares, de maioria negra, e enfermeiras o trabalho manual e o trabalho intelectual, respectivamente. 

O resultado prático desse perfil sociodemográfico, que também é político, revela-se nessa discussão acerca da sobrecarga laboral, da desvalorização e da baixa remuneração. Ainda segundo os dados da pesquisa do COFEN e da Fiocruz, 16% dos profissionais da enfermagem ganham menos de R$ 1.000,00 e os subsalários são prevalentes nos quatro grandes setores de empregabilidade da enfermagem: público, privado, filantrópico e ensino, sendo os setores privado e filantrópico os que menos pagam à enfermagem por seu trabalho. Este contexto mantém a exploração, a lucratividade desses setores e, além disso, perpetua as desigualdades sociais que atingem – em decorrência do perfil dos profissionais – sobremaneira as mulheres negras. 

A pandemia intensifica desmedidamente as consequências negativas desse cenário. O impacto psicossocial de centenas de mortes se apresenta como um sintoma de asfixia da categoria e esta realidade passou a despertar essa consciência pela necessária luta contra uma política que não deixa a Enfermagem respirar e que hoje se expressa na mobilização pela aprovação do PL 2564/ 20.

Organizar os trabalhadores pela base através dos sindicatos e demais entidades de classe e construir um calendário nacional de mobilização. 

A batalha pela aprovação do PL 2564/20 é uma tentativa de reparação histórica para a categoria. A garantia de um piso salarial e a redução da jornada de trabalho semanal para 30 horas valoriza economicamente e socialmente o trabalho exercido por centenas de trabalhadoras que cuidam da população mais vulnerável e adoecida do Brasil, além de possibilitar a geração de milhares de postos de trabalho. O piso salarial pode ser um alento para trabalhadoras que se submetem a dois ou três empregos, cumprindo carga horária semanal de mais de 80 horas para conseguirem sustentar seus lares, como mostra a pesquisa do COFEN/Fiocruz.

Nas últimas semanas, a categoria movimentou as mídias sociais para pressionar o Senado a pautar a votação do PL em plenário. Contudo, antes de se lançar em qualquer disputa econômica, a Enfermagem deve saber quais condições se impõem na conjuntura política para conquistar seus objetivos. 

A pandemia ainda tem uma dinâmica de alta transmissibilidade, com mais de 3 mil mortes diárias, colapso sanitário e uma campanha de vacinação caminhando a passos muitos lentos. A mobilização da categoria deve considerar, portanto, que ainda estamos enfrentando uma grave crise sanitária, o que ainda impõe um ritmo de desgaste acelerado e de dedicação muito intensa para as profissionais. 

Os últimos cinco anos no Brasil também foram marcados pela implementação de um ajuste fiscal rigoroso que impôs a Emenda Constitucional 95, que irá retirar mais de R$ 400 bilhões do SUS em 20 anos, a reforma trabalhista, a reforma da previdência. É um período de grandes derrotas para os trabalhadores e trabalhadoras e que se combina com uma crise sanitária que, por conta da negligência do governo federal, tem causado uma crise humanitária com taxas elevadas de desemprego e fome. 

A aprovação da PL 2564/20 é uma ameaça para os interesses lucrativos e mercadológicos da saúde, pois é a partir da exploração e baixa remuneração da enfermagem que os empresários da saúde têm garantindo seus lucros, aumentando o número de milionários e bilionários no ramo da saúde, como observado na última lista da Forbes, que mostra que, mesmo com a pandemia, o setor saúde viu o patrimônio líquido médio de seus bilionários crescer 134,76 % em 2020, saindo de US$ 1,64 bilhão para US$ 2,28 bilhões.

O peso econômico do trabalho da enfermagem, deve ser um norteador para o peso que sua luta deve ter para avançar em suas conquistas. Uma luta com aspirações econômicas dessa magnitude deve considerar a possibilidade de atos massivos de profissionais nas ruas das cidades e em frente ao Congresso Nacional, com caravanas organizadas pelas entidades de classe da categoria (Federação Nacional dos Enfermeiros, Associação Brasileira de Enfermagem, Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem e Conselho Federal de Enfermagem) de todas as unidades da federação em direção à Brasília.  

Além disso, também deve ser considerada a articulação de um dia nacional de mobilização, com a possibilidade de paralisações e greves nas unidades de saúde por todo o país, pois uma luta, nos marcos de uma tragédia histórica para a categoria, sem esses instrumentos de luta da classe trabalhadora, pode ser usada e manipulada por aqueles que sempre votaram contra os trabalhadores e as políticas públicas.

As organizações das entidades médico-hospitalares que solicitaram ao Senado o engavetamento da PL 2564/20 é uma expressão do nível de organização dos empresários da saúde para barrar qualquer tipo de concessão que beneficie a classe trabalhadora. E a enfermagem não pode apostar toda sua energia organizativa e de luta na disputa institucional, promessas ou acordos de um setor da sociedade que se alia e vota beneficiando quem tem mais dinheiro a oferecer. 

A política institucional é um local onde se expressa o poder de classe, entendendo que o Estado está a serviço desses empresários, neste caso em específico da casta de ricos que faz da saúde objeto financeiro e lucra com a exploração do trabalho da categoria de enfermagem. Exemplo disso é o fato de que, entre os remetentes da carta contrária ao PL 2564/20 enviada ao Senado, estão Jorge Moll e Dulce Pugliese, dois dos cinco brasileiros mais ricos do mundo, que acumulam fortunas de US$ 11,3 bilhões e US$ 6 bilhões, respectivamente. Aqueles declaradamente contrários ao avanço dos direitos da Enfermagem estão entre os que viram suas fortunas crescerem cerca de R$ 15 bilhões durante a pandemia. 

Portanto, diante de uma conjuntura de crise social, sanitária e política e de um governo autoritário e representativo do andar de cima da pirâmide social, a Enfermagem precisa compreender que a aposta institucional é insuficiente. Foram os deputados e senadores que, nos últimos anos, implementaram todo o retrocesso que vivemos com o enfraquecimento das políticas públicas. A categoria só pode confiar nela mesma e na justiça das suas reivindicações. 

Nesse momento, lançar-se em uma luta direta, sem alinhamento nacional das entidades de classe da Enfermagem e sem condições para a materialização no avanço na correlação de forças contra o Congresso Nacional e os grandes grupos empresariais da saúde, pode desmoralizar a categoria. É preciso que as entidades nacionais assumam um calendário de lutas durante o ano para que os trabalhadores avancem na mobilização pela aprovação do projeto de Lei.

O avanço dessa luta passa, necessariamente, pela superação da grave situação da pandemia e inevitavelmente, choca-se com a política de Bolsonaro, que irá defender os grandes lucros do setor médico empresarial da saúde. A conquista não só do PL 2564/20 para a categoria de Enfermagem, mas de todas as condições de mitigação dos impactos da política de austeridade implementada nos últimos anos e de recuperação de direitos para toda a classe trabalhadora não parte de uma aposta institucional espontânea e pouco estruturada, mas da luta unitária organizada em direção a um movimento de massas potente que pressione, de fato, aqueles que concentram, hoje, o poder financeiro e político no Brasil.

*Karine Rodrigues – Enfermeira do DF

Lígia Maria – Enfermeira do DF

Jorge Henrique – Enfermeiro do DF