Pular para o conteúdo
Colunas

O que queremos de um governo de esquerda?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“Ter esperança ensina a ter paciência”
Sabedoria popular portuguesa

Ser de esquerda não é fácil no Brasil. Nos últimos cinco anos ficou ainda pior. Estamos o tempo todo tendo que explicar por que somos “contra”. Contrariar o senso comum exige de nós muita paciência no trato, habilidade emocional e, sobretudo, uma imensa força de caráter ou resiliência.

Por isso, a esquerda deve ter coluna vertebral. Ser oportunista é dizer somente aquilo que as pessoas já estão dispostas a ouvir e concordar. Ser de esquerda exige mais do que isso. Ser de esquerda significa ter a lucidez de defender ideias que são justas porque correspondem ao que deve ser feito para ir à raiz dos problemas, mas que ainda não foi assimilado pela maioria dos trabalhadores e da juventude. Ser de esquerda é, na maioria das ocasiões, “marchar contra a corrente”.

A luta da esquerda se desenvolve, simultaneamente, em várias dimensões distintas. Temos o terreno das lutas pelas reivindicações imediatas que respondem às necessidades mais sentidas pelas amplas massas. Hoje, no Brasil, diante da calamidade sanitária, elas são a luta pela vacinação e por um auxílio emergencial.

São elas que podem abrir a conversa com qualquer um, seja onde for. Nas camadas populares, por incrível que isso possa parecer, há quem seja contra ou pelo menos muito desconfiado das vacinas, pelas mais variadas e esdrúxulas razões. Há, também, aqueles que são contra o auxílio emergencial de R$600,00, e esgrimem argumentos surpreendentes. Mas há uma maioria a favor, embora não sejam poucos aqueles que só estão dispostos a abraçar estas bandeiras.

Acontece que há outras tarefas. No terreno da luta contra a pandemia é necessário a defesa das quarentenas. Não haverá como poupar vidas se, além das medidas emergenciais para conseguir a vacina no braço e comida na mesa, a esquerda não tiver a coragem da defesa de lockdown.

A escala do contágio permanece muito elevada, e o cataclismo não pode ser contido, se não for conquistada a interrupção da circulação por algumas semanas. Acontece que há poderosas frações burguesas contra as quarentenas, e elas se apoiam na mobilização da maioria da pequena-burguesia proprietária. Mas não há direitos absolutos. Todos os direitos são limitados por outros direitos. Os interesses de maioria devem prevalecer sobre os de uma minoria.

Mas há ainda outras tarefas. No âmbito político, nada é mais importante que a luta pelo Fora Bolsonaro, um terreno de discussão mais elevado porque exige a disposição de se unir em um movimento pela derrubada do governo.

Entre aqueles que concordarão com a luta pela vacina e pelo auxílio emergencial, ou até com a necessidade de lockdown, não serão todos que concordarão que é necessário derrotar Bolsonaro, mas não podemos ceder. Não devemos nos calar.

Bolsonaro é o responsável por uma estratégia genocida. Defendeu durante um ano inteirinho que o contágio de massas era o caminho mais rápido para a imunidade coletiva, e que as mortes dos vulneráveis seria inevitável. A média mundial é que algo em trono de 3% daqueles que contraem o vírus morrem. Na última quinta-feira (29), superamos os 400.000 óbitos.

A conversa até aqui muitas vezes não é fácil. Mas fica mais difícil. Temos mais tarefas. Precisamos defender que a única saída para a crise é um governo de esquerda. Precisamos responder a pergunta: quem deve governar? De novo, encontraremos dificuldades. Mesmo entre aqueles que concordaram conosco até na defesa do Fora Bolsonaro, não será simples a argumentação da necessidade de um governo de esquerda.

Alguns porque estão envenenados pela ideia de que a esquerda é corrupta, outros porque foram seduzidos pela promessa da melhoria de vida pelo “empreendedorismo” e sonham em ser patrões, mesmo que “patrões de si mesmos” e, finalmente, porque há os que nos dirão que socialismo “fracassou”.

A conversa já foi longa, mas “agora é que são elas”. Temos tarefas ainda mais difíceis. Porque não basta dizer que queremos um governo de esquerda. Devemos ter a honestidade de dizer o que queremos de um governo de esquerda.

Queremos um governo de esquerda que lute contra as injustiças e a desigualdade social. Isso exige a revogação da lei do Teto dos Gastos, da contrarreforma trabalhista, da contrarreforma da previdência. Queremos a suspensão da tramitação parlamentar da contrarreforma administrativa. Queremos a valorização real do salário mínimo.

Queremos a garantia das condições materiais de vida de toda a população. Para isso, é fundamental a adoção de um plano de obras públicas sociais – construção de creches, hospitais, escolas, estrutura de saneamento básico, etc. – para gerar milhões de empregos.

Queremos uma reforma tributária com a diminuição de impostos para a classe trabalhadora e os mais pobres e aumento da carga tributária para os mais ricos; a redução da taxação sobre o consumo e ampliação da taxação sobre o patrimônio, com destaque para a taxação das grandes fortunas e dos lucros das multinacionais.

Queremos a aprovação da Lei de Responsabilidade Social, que submeta a disciplina fiscal às metas de desenvolvimento social; o financiamento público a taxas de juros reduzidas para os pequenos negócios nas cidades e para a pequena produção agrícola no campo; a auditoria e suspensão do pagamento da dívida pública aos grandes credores, com o objetivo de reverter recursos para o financiamento da educação e saúde públicas; Petrobras, Correios, Eletrobrás e demais empresas públicas devem ser 100% estatais.

Queremos a desmilitarização das Polícias Militares, pela legalização do aborto, pelo combate a todas as formas de discriminação no mercado de trabalho e pela adoção de medidas efetivas de combate à violência racista, misógina e LGBTfóbica. O trabalho doméstico deve ser crescentemente socializado, por meio da abertura de lavanderias e restaurantes populares, reduzindo o peso das jornadas duplas e triplas que recaem sobre as mulheres.

Queremos a garantia do direito de moradia e da segurança alimentar, com a implementação do aluguel social e desapropriação dos imóveis abandonados e com dívidas com o Estado; reforma agrária com a desapropriação de latifúndios, e fomento à produção agroecológica de alimentos saudáveis e baratos para a população; política de rígida proteção das terras indígenas, quilombolas e de proteção da biodiversidade nacional, punindo duramente o agronegócio predador e o garimpo, a mineração e as madeireiras ilegais.

Queremos a organização de espaços permanentes de participação e deliberação de políticas públicas por representações dos movimentos sociais, como os movimentos negro, feminista, sindical, ambientalista, indígena, entre outros. Queremos a revogação das leis antiterrorismo e de segurança nacional.

Queremos a responsabilização dos militares que cometeram crimes na ditadura e uma reforma geral das Forças Armadas, com a mudança do seu comando, estrutura e doutrina, colocando-as a serviço da soberania nacional e dos interesses da maioria trabalhadora do povo. Queremos a democratização da mídia, com a quebra do monopólio das grandes redes.

Queremos um governo de esquerda com um programa de esquerda.

*Publicado originalmente em Brasil de Fato