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COLUNISTAS

As raízes profundas do autoritarismo no Brasil

Verônica Freitas, do Rio de Janeiro (RJ)

Tanques em frente ao Congresso Nacional patrulham a Esplanada dos Ministérios, em 1964, após o golpe militar.

A ascensão da extrema-direita no poder, com a vitória de Jair Bolsonaro, intensificou muitos retrocessos no Brasil. Desde a concretização do golpe em 2016, as elites nacionais se uniram no rompimento das políticas de conciliação em curso, pendendo a balança para a concentração de renda e a retirada de direitos da maioria. Apesar de ser um acontecimento recente na redemocratização, esse giro à direita veio com o florescimento de visões de mundo e mecanismos de arbitrariedade estatal que são fundadores da nação. 

Dessa forma, as recorrentes ameaças de intervenção militar, o uso da Lei de Segurança Nacional, o crescimento de um ativismo fascistizado, o ataque às liberdades sexuais, o desmantelamento de direitos sociais básicos, trazem consigo velhas questões sobre a formação da nossa burguesia e a fragilidade democrática em que nos encontramos. Longe de ser uma novidade, esses processos vêm sendo liderados por antigas direitas. Incorporam elites de um Brasil marcado como o último país do ocidente a abolir a escravidão, após quatro séculos de relações baseadas na violência e hiper-exploração. A República, e sua promessa de igualdade, foi instituída por meio de um golpe militar, e desde então a tutela das Forças Armadas em suas múltiplas expressões constituem um artificio recorrente da gestão pública. 

Nesse passado nacional, Vargas cumpriu um papel fundamental nos fundamentos do autoritarismo. Seu governo foi um marco na história do país, pela consolidação de estruturas nacionais e legislações em atendimento a demandas sociais, em combinação com o controle social pela tutela militar, cujo auge foi o Estado Novo. Isso como resposta arbitrária a um período de intensa mobilização, com o início do século marcado pela Coluna Prestes, a Intentona Comunista e importantes greves. Assim, o controle do povo contra as desigualdades entranhadas pela herança colonial foi prioridade da Era Vargas. 

Como resposta, na Constituição de 1934 é adotada pela primeira vez na Carta Magna a concepção da Lei e Ordem, com a seguinte prescrição “Art. 162 – As forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e, ordem e a lei”. A partir de então, essa inserção do cumprimento da “ordem”, não apenas das leis, pelas Forças Armadas é utilizada como base para a ação intervencionista no Brasil. Como sobrevivente, se transformou no famigerado artigo 142 da nossa Constituição atual.  É também do Governo Vargas, de 1935, a promulgação da primeira Lei de Segurança Nacional, que desde então permanece insistente no ordenamento, embora seja flagrante sua incompatibilidade com os avanços democráticos.    

Apesar da referência a esse passado autoritário brasileiro e a autoproclamação de Bolsonaro com relação ao “seu” Exército, não se pode afirmar que ele representa as Forças Armadas. Diversas foram as declarações recentes de militares que reforçaram a distinção entre o que é o governo e o que é a Instituição. Entretanto, a ampliação de seus integrantes na gestão federal e seus interesses corporativos nela é evidente. Dessa forma, em março deste ano Bolsonaro já havia multiplicado por dez o número de militares em cargos de comando da gestão federal, passando de nove na gestão de Michel Temer para 92 em 2021. Isso além dos 6.157 da ativa e da reserva em cargos civis do governo, segundo levantamento do TCU de 2020, mais que o dobro do que havia no governo anterior. Ademais, com a nomeação de Milton Ribeiro na Educação, em julho de 2020, foi alcançada a marca de 11 militares nomeados no comando dos 26 Ministérios, além do próprio presidente e seu vice. É, portanto, a maior ocupação de militares no governo desde a redemocratização. 

Outro elemento de prestígio das Forças Armadas pelo presidente são as ações no campo cultural. Nesse sentido, a adoção de “escolas cívico-militares” foi uma importante promessa de campanha. Em atendimento à pauta, em novembro de 2020 já havia ocorrido a inauguração de 51 unidades, com a meta de implantar o modelo em pelo menos 216 instituições até 2023. E diferente dos colégios militares do Exército já existentes, nas escolas cívico-militares a gestão é híbrida. Ou seja, profissionais da educação são responsáveis pela área didático-pedagógica, enquanto as forças de segurança pública atuam na gestão administrativa e formação disciplinar dos alunos. Assim, além de um interesse diretamente corporativo, nota-se o nível da disputa também da educação da juventude. Outro elemento de fundamental importância foi o esvaziamento das políticas de Memória, Verdade e Justiça, com o não cumprimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e a disputa por contar “o outro lado da história”, sob liderança do Ministério de Damares. Nesse sentido, as comemorações de 1964 têm sido a tônica sistemática desde o primeiro ano de mandato. 

Nota-se, portanto, que Bolsonaro tem como um eixo de seu poder o apoio sobre militares, bem como o aceno para atender a seus interesses, além da combinação das alianças com setores do fundamentalismo religioso, do comércio de armas e a burguesia nacional e internacional. No entanto, essa relação é também frágil, especialmente diante de uma liderança que optou pelo negacionismo científico diante da pandemia e junto com sua família apresenta inúmeras fragilidades para o cargo. Pode ser, como vem sendo, descartado por aliados, dentro ou fora das Forças Armadas. 

Brasil acima de tudo, Deus acima de todos, segue como o seu lema, cuja origem vem da cultura militar da ditadura de 1964. Esse Brasil que setores das FFAA e o governo federal reivindicam não é o mesmo da história que temos para contar. A disputa dessa identidade nacional, e da própria memória do que foi o processo histórico que nos trouxe até aqui, se mantém como uma polêmica aberta. A extrema-direita segue com sua disputa fundamentalista religiosa e de pulsão de morte. É o modelo de contra-insurreição permanente que nos alertava Florestan, levado ao seu modelo extremado pela liderança fascista de Jair Bolsonaro. De nossa parte, o Brasil que nos interessa é o da resistência, das Marias, Mahins, Marielles, Malês, de todos e todas que se ergueram contra a injustiças, dos comunistas que construíram os passos do mundo novo antes de nós. Apesar dos inúmeros ataques, seguimos firmes contra a barbárie.