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CULTURA

“Nomadland” e a melancolia capitalista

Felipe Nunes, de Natal, RN
Divulgação

Quanta dor suporta o nosso corpo? O suficiente que nos permita caminhar. Em “Nomadland” (Chloé Zao, 2020), após perder o marido, o seu CEP e um pouco das suas esperanças, Fern (Frances McDormand) vende o pouco que lhe resta e compra uma van para partir em busca de algo. No início do filme, não fica visível o que seria esse algo buscado por Fern, todavia, a pergunta se transforma ao longo da narrativa e acabava por se tornar secundária, enquanto a personagem constrói a sua jornada contemplativa.

Em um mundo obcecado por perguntas e respostas imediatas, “Nomadland” não se preocupa nem se apressa por oferecer as respostas. Decide caminhar pelas margens ao explorar um estilo de vida “outsider”, constituído por pessoas que perderam algo pelo caminho (desempregados, veteranos de guerras, aposentadas, pacientes terminais, jovens desesperançados, etc.) que se encontram em uma comunidade de “nômades”, onde veem a oportunidade de compartilhar as suas histórias, suas dores.

Apesar do título, o filme, na minha opinião, esboça um ensaio sobre a melancolia. Para Walter Benjamin, o melancólico encontra-se desatado da vida social de seu tempo, tomado por um sentimento de inutilidade de suas ações. O tempo apresentado no filme é a realidade de milhares de pessoas na maior economia do mundo que sofrem com as consequências da brutal desigualdade socioeconômica. Essa realidade, para muitos, pode se apresentar como uma novidade, já que os EUA vendem a sua imagem e semelhança como a terra onde os grandes sonhos podem ser realizados. Há um provérbio africano que diz “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis da narrativa”. Eis uma das principais armas do capitalismo, tornar os sujeitos completamente vazios, tirando-lhes a oportunidade de contar as suas histórias, obrigados a se conformarem com a narrativa dos vencedores.

Ademais, como aponta Maria Rita Kehl, o capitalismo contemporâneo não nos rouba apenas o que Marx qualificou de mais-valia, alimenta-se de algo mais íntimo, nossos desejos, afetos, do nosso mais-de-gozar, delegando apenas satisfações passageiras e fugazes mediadas pro uma sociedade inundada de imagens em um grande espetáculo.

De forma precisa e poética, em planos abertos condensados a uma paisagem quase sempre gelada, Chloé Zao (além de assumir a direção, roteiriza e edita o filme) expõe a narrativa dos invisíveis, das leoas. Acrescida da espetacular atuação de Frances McDormand, atriz fabulosa e fartamente premiada, ambas, não precisam serem explícitas para denunciar a violência e o imenso vazio que o capitalismo plantou em nossas mentes e corações. Por muitas vezes, o filme é dominado pela ausência de diálogos, onde apenas as expressões de Fern misturadas com a paisagem e a belíssima trilha sonora (Ludovico Einaudi) são capazes de nos dizer, algo que como diria Borges, a rigidez dos signos das palavras seria incapaz.

“Nomadland” pode ser visto como uma denúncia sobre as consequências brutais dos tempos em que vivemos. O capitalismo mantém-se de pé porque é eficaz em nos esvaziar e sedimentar uma sensação de inutilidade diante da nossa realidade, por mais absurda que seja. E assim com a personagem principal, o filme não grita, talvez porque queira demonstrar a falta de força que a melancolia nos impõe, e assim, como o pouco que resta, usamos para seguir caminhando.

Trailer do filme

Referências bibliográficas
Walter Benjamin, Origem do drama barroco alemão (1925). Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1984.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.