Na noite de quarta-feira, dia 20 de abril, em diversas cidades dos Estados Unidos, centenas de pessoas se reuniam nas ruas. Maioria era de pessoas negras que comemoravam com abraços e palavras de ordem um fato então inédito, a condenação do policial Derek Chauvin.
Chauvin, 43 anos, é um homem branco e típico exemplo de um “cidadão de bem” norte-americano. Foi ele que em maio passado, por 9 minutos e 29 segundos, se ajoelhou sobre o pescoço de George Floyd, tirando assim a vida do homem negro, de 48 anos.
Chauvin foi declarado culpado das três acusações de homicídio que recebeu. Um fato inédito na racista cidade de Minneapolis. Lá, jamais antes um policial branco havia sido condenado por assassinar um negro.
A sentença ainda será anunciada pelo juiz dentro de um prazo de dois meses, uma particularidade dos EUA é o fato de ser comum a pena ser dita apenas dias depois do fim do julgamento.
Os demais policiais envolvidos no assassinato de Floyd (J. Alexander Kueng, Thomas Lane e Tou Thao) devem ir a júri no mês de agosto. Os crimes no qual Chauvin foi condenado não têm paralelo exato na lei penal brasileira. Mas em uma aproximação seriam: homicídio doloso de segundo grau (com pena de até 40 anos de prisão, demonstrando uma relação de causa e efeito entre conduta do acusado e morte). Homicídio doloso de terceiro grau (demonstração de negligência com a vida humana, com pena máxima de 25 anos). Homicídio culposo de segundo grau (quando alguém submete outro a um “risco irracional” e é passível a pena de até 10 anos de prisão).
A história de George Floyd tem traços semelhantes com a vida e também com a morte de outras pessoas negras, não só nos Estados Unidos, mas ao longo do mundo. Realidades distintas ligadas por dois fatores. A primeira é a cor da pele. A segunda é o racismo. Este organiza uma espécie de ciclo vicioso, que mistura nosso universal e nosso particular e no qual o povo negro foi aprisionado após o saque e rapto do continente africano.
O universal e o particular em George Floyd
George Floyd recém havia sido demitido, tornou-se desempregado durante a pandemia. Uma tragédia pessoal infelizmente comum para muitos de nós. Naquele mês de maio, a taxa de desemprego entre pessoas negras nos Estados Unidos atingia sua maior proporção em uma década: 16% dos afroamericanos estavam desempregados. Enquanto isso, a mesma taxa entre a população branca continuava caindo.
Floyd vai então a uma loja que costumava ir, a Cup Foods, para comprar cigarros. Quando apresenta uma nota de 20 dólares, uma surpresa, a mesma era falsa. De acordo com Christopher Martin, trabalhador que atendeu George Floyd, ele demonstrava não saber que a nota que estava usando não era original.
A polícia mesmo assim foi chamada, e aqui o universal e o particular do caso se misturam novamente. George Floyd, por ser um homem negro, tem sua imagem construída como um criminoso, perigoso, alguém a margem da lei.
Quando a polícia chegou ele foi rendido em seu carro com uma arma apontada para a cabeça. Não reagiu. O resto das cenas nessa história são conhecidas em todo o planeta. Filmagens mostram Chauvin sufocando Floyd, enquanto os outros policiais o seguraram. Asfixiado, com o rosto contra o chão, e tendo sua história se misturando com o universo do racismo norte-americano, George Floyd repetia: eu não consigo respirar.
Os dias que seguiram o assassinato de George Floyd tiveram palcos idênticos aqueles que centenas de pessoas comemoravam a condenação de Chauvin. As ruas norte-americanas foram tomadas por protestos gigantescos, em uma verdadeira insurreição negra contra a violência policial e situação precária da vida. As últimas palavras de George Floyd ecoaram por todo o mundo, justamente pelo fato de em todo o globo a realidade ser uma assombrosa semelhança: O povo negro não consegue respirar.
As imensas manifestações por vidas negras foram o processo inicial que terminou com a derrota de Trump nas eleições presidenciais, e que abre mais espaço para a derrota da extrema direita a nível mundial. Um fato que não pode ser diminuído, e que precisamos tirar lições aqui no Brasil sobre o processo de luta contra o neofascismo.
Muitas batalhas, uma só guerra
Um fato concreto é que a roda da história não para. As elites norte-americana, assustadas com a força da mobilização negra, buscam aprender as lições para dificultar o movimento de massas. E o andar de cima aprende rápido.
Ao todo, mais de 10 mil manifestantes que protestavam no movimento Black Lives Matter foram presos. E em 28 dos 50 estados da federação discute-se criar leis antiprotestos. A repressão é uma das táticas escolhidas para frear o movimento de massas que se levantou. Outra movimentação das elites é a busca para dificultar o voto. Nos EUA o voto é opcional e a população negra historicamente comparece menos às urnas, e não existe impulso do governo para que votem. Porém, no ano passado foi diferente. A luta de massas se juntou à luta eleitoral e assim Trump foi derrotado. Hoje, em diversos estados se busca dificultar o direito ao voto, e dessa forma limitar o peso do voto de afro-americanos nas próximas eleições. A relação rua e tática eleitoral é mais uma das lições que podemos aprender com o levante antirracista norte-americano.
A forma que Chauvin atuou foi a mesma que centenas de milhares de outros policiais foram ensinados a atuar e agir.
A condenação de Chauvin foi uma vitória e foi fruto da pressão do povo negro. Porém, a ação violenta da polícia é um modus operandi. A forma que Chauvin atuou foi a mesma que centenas de milhares de outros policiais foram ensinados a atuar e agir. O problema é a força policial em si. E da mesma forma que as elites aprendem e buscam avançar suas posições contra nós, caso queiramos realmente escrever nossa história, precisamos acumular forças e avançar contra eles. O debate que já ocorre nos EUA sobre desfinanciamento e o papel da polícia precisam ser reforçados e se multiplicarem.
Isto mostra outro ensinamento que o movimento antirracista aos poucos acumula e avança. Que é o fato da guerra não se encerrar após a vitória de algumas batalhas.
A marcha fúnebre contínua
Como falamos acima, o fluxo da história segue. As elites buscam aprender para reinventar sua forma de dominar, nós buscamos criar alternativas, e no meio disso, a necropolítica continua a todo vapor. De forma vulgar, de bate pronto, podemos definir necropolítica como a forma que o Estado encontra para agir feito uma máquina de moer gente, gente preta, pra ser mais exato.
Essa máquina está em funcionamento nos Estados Unidos. Lá Daunte Wright, um jovem negro, foi assassinado no último dia 11 por uma policial branca nos subúrbios da mesma Minneapolis. Já na cidade de Columbus, em Ohio, Mak’kiah Bryant, uma adolescente negra de 16 anos, foi assassinada por outro policial. Isso no mesmo momento em que Chauvin era condenado pela morte de Floyd.
Por aqui, no Brasil, essa mesma máquina atua de forma assustadoramente eficaz. Em nosso país a polícia nunca matou tanto como no ano de 2020, demonstrou um relatório da Anistia Internacional. Nós não temos um Chauvin condenado. Pelo contrário. Nossos policiais continuam nas ruas, ou nas corporações, e muitas vezes são condecorados por isto.
A relação particular e universal segue se entrelaçando, e neste ciclo, vidas negras são descartadas, por balas, ou por negligência do Estado, através da Covid-19. Mortes cada vez mais semelhantes para diferentes vidas.
Quando os leões contarem sua história
Uma nova história pode está sendo escrita a partir disto. Uma história onde passamos respirar. E nela seja possível ir ao mercado e retornar em segurança. Uma história onde nossas vidas importem.
Entre as diversas batalhas que são travadas, a condenação de Chauvin foi uma vitória. Hoje seria dia de comemorar, porém, o racismo estrutural nos tira até esse direito. Pois ao mesmo tempo que temos vitórias, vemos novos corpos negros tombarem. O luto que tanto vira luta precisa ser sentido e amadurecido. Para que possamos até avançar e nos fortalecer no confronto. Um confronto que realizamos hoje, mas não termina nos próximos dias.
Se o presente é uma nova forma de contar sobre o passado, precisamos agir hoje, tirar as lições necessárias, para romper o ciclo vicioso que aprisiona pessoas negras.
Ao longo da história, ocorrem momentos nos quais as situações mudam. Ciclos são rompidos, fechados e iniciados. Coloca-se um ponto final no que vinha sendo escrito até então, e se inicia um novo parágrafo, com novos contos, novos heróis e novas letras. São os chamados pontos de inflexão. É possível dizer que o ano de 2020, e as manifestações negras nos Estados Unidos possam ter sido este ponto. Uma nova história pode estar sendo escrita a partir disto. Uma história onde passamos respirar. E nela seja possível ir ao mercado e retornar em segurança. Uma história onde nossas vidas importem.
George Floyd, Presente! Existe um provérbio africano que diz: “enquanto os leões não escreverem suas fábulas, elas serão contadas pelos caçadores”. Hoje, podemos dizer que os leões estão traçando suas linhas.
Vidas Negras importam! A de racistas não!
*Gabriel Santos é militante da Resistência/PSOL
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