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MUNDO

Relatórios mostram avanço de regimes autoritários pelo mundo durante a pandemia

Estudos apontam ameaças contra as liberdades democráticas no último ano e perspectivas sombrias de futuro. A combinação entre pandemia e crise na democracia surge como um projeto de poder

Rafael Rabelo, de Fortaleza, CE

Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia desde 2014

A intimação para depoimento na Polícia Federal de Guilherme Boulos por uma simples postagem em rede social e utilizando a Lei de Segurança Nacional, resquício da ditadura civil-militar brasileira, segue um roteiro de perseguição e intimidação a opositores no Brasil de Bolsonaro e, infelizmente, não é um caso isolado no mundo. Faz parte de uma tendência que se intensificou na pandemia, em uma “epidemia de autocratizações”. 

Lançado no último mês de março, o relatório V-Dem, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gothenburg, na Suécia, reuniu cerca de 3.500 pesquisadores ao redor do mundo para analisar aproximadamente 450 indicadores que medem aspectos políticos, jurídicos e econômicos, entre eles Liberdade do Judiciário, Liberdade do Legislativo, Liberdade de Expressão e Imprensa, manifestações políticas e a repressão governamental relacionada a elas, bem como o uso de fontes oficiais de cada governo para a disseminação de informações falsas. Os dados foram levantados em 202 países. 

Os países são classificados segundo quatro estágios: Autocracia Fechada, Autocracia Eleitoral, Democracia Eleitoral e Democracia Liberal; variando entre 0,0 (Autocracia Fechada) e 1,0 (Democracia Liberal). O relatório faz importantes apontamentos sobre o avanço de medidas governamentais autoritárias, de cerceamento de liberdades civis e direitos, ao redor do mundo desde 2015. Em especial, aponta que estas medidas têm se tornado mais agressivas no último ano, principalmente em países como a Hungria, Turquia, Brasil e Índia, tendo esta última perdido o status de “maior democracia do mundo” e se transformado em uma “Autocracia Eleitoral”. 

Em 2010, 48% da população mundial vivia em países “autocráticos”, enquanto em 2020 esse número subiu para 68%.

Na verdade, o cenário de crise econômica e pandemia tem acelerado o que o relatório chama de “autocratização” no mundo, em níveis mais ou menos elevados de acordo com o país e a região. Como exemplo é destacado que em 2010, 48% da população mundial vivia em países “autocráticos”, enquanto em 2020 esse número subiu para 68%. O número de Estados que limitavam a plena liberdade de expressão eram 19 em 2017, hoje são 32. Um índice chamado “mobilização de massas”, a partir de 2019, declinou ao nível mais baixo desde os anos 1970. 

Entre os países em franco processo de implementação de restrições à democracia temos representantes das principais economias do mundo, como os EUA durante os anos de governo Trump, a Turquia do conservador Tuyyp Erdogan, a Índia do nacionalista Narendra Modi e o Brasil de Bolsonaro. Em todos estes países há limitações à liberdade de expressão, perseguição à imprensa, uso de fontes oficiais para a disseminação de informações falsas, perseguição a opositores e tentativas de vinculação dos poderes Judiciário e Legislativo ao Executivo. EUA e Brasil se encontram em níveis diferentes segundo o índice de “autocratização”, pois ainda conseguem manter seus sistemas eleitorais intactos. Mas ainda assim não sem ameaças, basta lembrar da tentativa de invasão do Congresso norte-americano por apoiadores de Donald Trump no dia da confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden.    

O ponto é que, em todos os exemplos destacados no relatório, este processo se intensificou durante a pandemia. Governos autocráticos ou em processo de “autocratização” tem usado as restrições sanitárias, as mortes e a desorganização econômica causadas pela COVID-19 para ampliar seus poderes, deslegitimar e perseguir opositores, bem como desorganizar instrumentos de controle e os outros poderes nos seus respectivos Estados. Isso tem ocorrido de forma mais explícita como na Índia e Turquia; aberta, mas ainda em busca de alguma legitimação, como no Brasil ou camuflada como em Israel, aonde o “sucesso” da vacinação contrasta com o contágio e extermínio do povo palestino (não vacinado); bem como no Chile, aonde as medidas sanitárias têm sido usadas para tentar controlar a mobilização de massas que derrubou a Constituição da ditadura de Pinochet.  

As conclusões do V-Dem são corroboradas por outro relatório, este da CI (Comunidade de Inteligência dos EUA), uma federação de 17 agências governamentais independentes de inteligência. Este documento, chamado Global Trends 2040 – A More Contested World“, foi divulgado no início de Abril e chega à mesma conclusão do V-Dem, mas por outros meios. Segundo ele, as incertezas, desconfianças e pessimismo em relação ao futuro causadas pela pandemia, bem como a incapacidade dos governos de atingir as expectativas da população causadas por estes elementos, tendem a aumentar o que se chama no relatório de “volatilidade política”. 

O que levaria a uma maior “vulnerabilidade das democracias” devido ao aumento da polarização política e a ascensão de alternativas chamadas de “populistas”, concluindo que estes regimes poderão erodir e levar a democracia ao colapso até 2040. O texto não fala diretamente de países específicos, mas fazendo uma associação direta e senso comum, o termo “populista” pode se referir a atuais governos nacionalistas, conservadores ou ultraliberais de direita.

Limites dos estudos

É importante ressaltar que, apesar de se basearem em indicadores pré-determinados e, portanto, serem pretensamente isentas, as análises dos relatórios têm um caráter político, já que consideram como modelo ideal a ser alcançado os regimes de Democracia Liberal modernos. Não há uma perspectiva crítica, por exemplo, dos limites destes regimes frente ao que é imposto pela economia capitalista globalizada ou mesmo do papel determinado de cada país a partir da geopolítica internacional. Como exemplo, no relatório V-Dem, os Estados Unidos com seu sistema eleitoral questionável e Inglaterra, uma monarquia constitucional com várias limitações à participação política, aparecem no relatório com índice próximo de 1,0; enquanto países não alinhados ao capitalismo global, como Venezuela e Cuba, tem índices próximos de 0,0.   

Neste sentido, é importante analisar dois pontos. O primeiro é que “democracia” não pode ser entendida meramente como um procedimento formal. Eleições limpas, transparentes e regulares são elementos democráticos importantes, mas não únicos. A capacidade e a liberdade de organização social, bem como o poder de decisão política das classes subalternas e instrumentos de democracia direta, quando existentes, também o são. Em segundo lugar, a ideia e o sentido da democracia precisam ser historicizados e regionalizados para sua melhor compreensão. À exceção da experiência nazifascista europeia da primeira metade do século XX, os países capitalistas centrais não tiveram longas interrupções nos seus processos democráticos no último século e meio. Nos EUA não houve nenhuma interrupção em 245 anos de república. Em geral, historicamente, o desenvolvimento capitalista nestas regiões não teve grandes contrastes com a formação de repúblicas liberais ou monarquias constitucionais, bem como com seus sistemas e procedimentos democráticos, com um considerável nível de liberdades civis alcançado ao longo dos anos. São as chamadas “democracias consolidadas”. Esta é uma experiência bem diferente do que ocorreu nos chamados “países do sul” ou o “sul global”. A intercorrência de regimes autoritários no mesmo período destacado acima, por vezes suportados pelo “norte” para garantir a continuidade do espólio capitalista no século XX, bem como a ausência de direitos sociais básicos e as seguidas as lutas pelo seu (re)estabelecimento, tornaram a democracia um valor, um horizonte a ser conquistado, fruto de processos de luta e mobilizações de massa vitoriosas. Destaco estes pontos porque os acredito como fundamentais para a análise mais precisa dos índices presentes no relatório, assim como para uma compreensão mais ampla do que acontece no Brasil e parte do mundo atualmente. Da mesma forma, a esquerda, em geral, tem tido nos últimos anos bastante dificuldade em fazer um debate aberto sobre a questão da democracia, seja por incompreensão ou sectarismo.  

Diferente do que se pensava há um ano, mesmo levando em consideração a recente derrota eleitoral de Trump, os relatórios mostram que o negacionismo, a falta de coordenação e habilidade política dos governos e os números assustadores da pandemia, longe de enfraquecer as experiências neofascistas atuais, representam uma estratégia de apropriação do caos causado pela COVID-19 no sentido de construir, ampliar ou legitimar alternativas políticas autoritárias ao redor do mundo e, infelizmente, este debate ainda é muito incipiente nos espaços de resistência ao avanço destas experiências. Os documentos, com todos os seus limites, nos ajudam a ter uma necessária visão global do momento que vivemos.