Que o futebol passa por um amplo processo de elitização desde a década de 1980 não é surpresa para ninguém. Prefiro inclusive falar em processo de re-elitização, pois em um recorte histórico mais amplo é nítido que o futebol surge como um esporte aristocrata e elitista que se transforma no mais popular do planeta, quando muitos destes percebem que as vantagens do lucro por comandar os clubes é muito maior do que praticar e manter o esporte apenas como distinção social. O futebol nasce inserido no contexto da luta de classes, é importante perceber isso logo de início para que possamos entender o presente.
Início, expansão e popularização
A história do esporte remonta aos períodos de consolidação do capitalismo industrial no século XIX. Inicialmente surge como pratica esportiva exclusiva à elite industrial capitalista, bem como toda e qualquer forma de lazer, restrita àqueles que não precisavam vender sua força de trabalho e portanto possuíam tempo livre para a prática. Desta forma, ao contrário do que por vezes é difundido erroneamente, não surge como um esporte popular e operário. Como aponta Irlan Simões em seu livro “Clientes versus Rebeldes”
“O que se sabe de mais evidente sobre os primórdios do futebol até hoje é que o jogo passou a ser incorporado gradativamente por escolas designadas à alta sociedade britânica como forma de educação corporal e cívica. Cada uma dessas escolas teria seu particular código de regras, que seriam moldados com o tempo para que competições pudessem ser praticadas entre elas.” (p.47)
Entretanto, também é verdade que o futebol deve sua popularização às massas trabalhadoras inglesas e posteriormente no mundo todo pelas redes de dispersão do gigantesco império britânico. Em uma etapa subsequente ao surgimento do esporte ele deixa de estar restrito ao ambientes escolares da elite e passa a ser praticado por diversas associações e a abarcar outro setores sociais como as classes médias, num momento histórico de expansão do futebol.
Essa fase de expansão passa atrair cada vez mais público a praticar, mas principalmente, assistir as partidas e torneios cada vez mais frequentes. É nesse momento que o futebol começa a ser visto pela burguesia industrial – que antes praticava o esporte – como uma potencial área a ser explorada. Ainda que não inicialmente explorada como um produto comercial, o futebol é visto como importante meio para ganho de prestígio político e social. Para que isso fosse possível, a burguesia deixa a prática esportiva e passa a fazer a gestão dos clubes.
“Os ricos deixavam gradualmente de atuar em campo para assumir posições gerenciais, ganhando relevância política na região na qual o clube e boa parte dos jogadores remunerados teriam se originado. Nos clubes mais aristocráticos ocorre a desistência dos membros da nobreza da prática do futebol, retornando a desenvolver os seus antigos laços de socialização em outras modalidades. Dessa forma, são os novos burgueses, em geral industriais, empresários e comerciantes bem sucedidos, que vão assumir a direção dos principais clubes, sob um novo ethos, distinto daqueles primeiros aristocratas.” (SIMÕES, p.48)
O aumento dos espectadores e o entendimento da burguesia de que era preciso absorver essa demanda também faz com que seja possível entender os processos pelos quais o futebol passou historicamente através das suas paisagens: os estádios. Inicialmente os estádios eram construídos como equipamentos voltados para a prática do futebol com algumas arquibancadas para que poucas pessoas pudessem acompanhar, ainda em sua fase de surgimento e consolidação. Posteriormente, quando a aristocracia não entende mais o futebol como uma distinção social – uma vez que está se popularizado entre as classes médias e proletárias – e a burguesia abandona a prática para se dedicar à gestão, os equipamentos deixam de ter mera função de prática esportiva. Concomitante com o processo de urbanização crescente, bem como popularização do esporte, os estádios passam a ter maior capacidade e receberem maiores públicos, vindo daí boa parte da renda dos clubes. O geógrafo Gilmar Macarenhas, entre sua vasta produção relacionando geografia e futebol, possui um artigo denominado “A mutante dimensão espacial do futebol: forma simbólica e identidade” no qual aborda de forma mais aprofundada a relação das paisagens do futebol. Seguindo em nossa construção histórica e geográfica, já na segunda metade do século XIX, a urbanização brasileira é um excelente exemplo para compreendermos a relação da urbanização capitalista com a massificação do futebol.
“No início da década de 1950, as populações do Rio de Janeiro (2,3 mi) e de São Paulo (2,1 mi) já eram superiores às das grandes cidades europeias onde o futebol ganhava corpo, como Turim (719 mil), Liverpool (750 mil), Munique (823 mil) […] As cidades brasileiras estavam no mesmo patamar das grandes capitais mundiais do futebol quando da demanda por estádios de futebol capacitados a receber públicos cada vez maiores, num tempo em que o futebol já estava massificado, com necessidades de buscar a renda para garantir bons jogadores, enquanto cobrava pouco pelo acesso aos jogos.” (SIMÕES, p.72-73)
Futebol de classes
Nesse rápido apanhado histórico, é possível perceber que uma elitização moderna do futebol não é algo que surge como novidade. Sempre foram as altas classes que estiveram nos cargos de gestão dos clubes e federações. Em contrapartida, os jogadores são em grande parte aqueles meninos oriundos da classe trabalhadora, sobretudo negros e periféricos, que buscam no esporte um prestígio que dificilmente poderiam alcançar em outras funções. É o mais próximo de um sonho de ascensão social proporcionada a juventude negra no Brasil. Portanto, a própria estrutura do futebol é um reflexo da sociedade de classes que vivemos. Outros atores importantes dessa leitura são os torcedores. Na verdade, ouso dizer que são a base de tudo que conhecemos hoje como futebol. Se hoje os novos estádios brasileiros tentam replicar um padrão irreal de arena multiuso imposta pela F.I.F.A e que foi inserido à força pela Copa do Mundo de 2014, no passado esses eram espaços muito mais democráticos. É verdade que não podemos esquecer que mesmo dentro das arquibancadas existia distinção dentre torcedores: aqueles com mais dinheiro podiam optar por cadeiras, local na sombra ou até mesmo camarotes. Aqueles que tinham menor renda ocupavam as arquibancadas ou as gerais (setores onde se assistia as partidas com os olhos ao nível do campo e apenas em pé). Mas de modo geral existia a possibilidade de que todas as classes socais acompanhassem os jogos de seus clubes, o futebol há muito tempo havia transcendido ao limite classista que antes tivera, e a irracionalidade do torcer era a principal identidade desse esporte.
O que se segue do final da década de 1980 em diante é um amplo processo de re-elitização no que se refere aos estádios e ao público que passará a frequentá-los. A data comumente indicada como o pontapé inicial para este processo é o ano de 1989, logo após o episódio que ficaria conhecido como “O desastre de Hillsborough”, ocorrido na Inglaterra. Neste episódio mais de 90 pessoas morreram pisoteadas nas arquibancadas durante o jogo entre Liverpool FC e Nottingham Forest, válido pelas semifinais da Taça da Inglaterra. Na época, a Inglaterra era comandada por Margaret Thatcher. A primeira ministra neoliberal vivia em conflito com o futebol, afinal era um grande atrativo e gerador de identidade para as classes trabalhadoras inglesas que vinham sendo sufocadas pelo seu governo. Portanto, atacar o caráter popular do futebol era uma maneira de atacar a classe trabalhadora em mais um setor da sociedade. Após o trágico episódio, Thatcher culpou aos torcedores conhecidos por Hooligans, famosos com seus episódios violentos envolvendo futebol. Então, sua solução para acabar com a violência no futebol era uma ampla reforma de normas e da própria estrutura dos estádios: cadeiras para que fosse proibido assistir partidas em pé, aumento do valor dos ingressos, normatização do comportamento dentro dos estádios… enfim, uma série de medidas que na prática não acabavam com a violência no futebol, mas apenas gentrificavam os estádios. A classe trabalhadora deixou de ter acesso aos jogos e as classes médias e altas passaram a ser o público com maior acesso. Dessa forma os estádios se transformaram em grandes teatros e o futebol em um espetáculo de entretenimento, e não mais uma reunião das massas em pró de uma identidade em comum e da manifestação popular. Atualmente já se sabe que o desastre na verdade foi causado pela omissão das autoridades envolvidas no controle e fiscalização da partida, uma obra minuciosamente arquitetada para acontecer, um pretexto necessário.
Um abismo cada vez maior
Mas e o que tudo isso tem a ver com a Superliga europeia anunciada esta semana? Toda esta contextualização anterior tem o objetivo de mostrar como o futebol sempre esteve inserido dentro das fases do capitalismo e os rumos do esporte sempre estiveram ligadas aos interesses da classe hegemônica. A criação da Superliga europeia é mais uma etapa deste processo. Após Hillsborough, o padrão inglês imposto por Thatcher tornou-se o padrão F.I.F.A, ou seja, em todos os cantos do mundo que ainda se deseje praticar o esporte será necessário seguir os desejos que o capital impõe. Com isso a estrutura do futebol dos países subdesenvolvidos, como o Brasil, pouco a pouco foram sendo incorporados no processo de desenvolvimento desigual e combinado. Passamos a formar jogadores dentro de uma cultura técnica e tática europeia com o intuito de vendê-los para fora. Enquanto o nosso próprio futebol ia minguando ano após ano, os clubes europeus (que sempre foram fortes) foram aumentando sua distância financeira – e como consequência esportiva – dos clubes do mundo subdesenvolvido. A criação da Superliga europeia é a continuidade deste processo dentro do próprio território europeu: agora já não basta mais o abismo entre Europa e resto do mundo, é preciso amplificar os lucros e a financeirização do futebol dentro do próprio continente. Alguns grandes clubes da Europa se uniram para formar uma liga onde não há rebaixamento, não há clubes médios e pequenos, não há por fim competitividade. É um espetáculo vazio, um show de entretenimento para aqueles que puderem pagar e a homogeneização do esporte, o fim das culturas torcedoras. Muitos destes clubes já são inclusive empresas, possuem acionistas ou donos majoritários que não possuem relação alguma com o esporte.
Em uma primeira impressão a liga parece estar confrontando as federações sanguessugas do futebol que apenas lucram com os clubes e não dão retorno algum aos mesmos. Mas não se trata de uma disputa para empoderar os clubes e fortalecer o esporte, trata-se de uma disputa entre poderosos para saber quem continuará explorando os lucros gerados pelo futebol europeu. Mas é importante pontuar que se é verdade que as federações, no seu atual modelo, não fortalecem os clubes médios e pequenos e reproduzem o modelo elitizado de futebol, também é verdade que esse novo modelo proposto pela Superliga é ainda pior! Ele dará um golpe fatal nos pequenos e médios clubes que à duras penas ainda tentam existir neste modelo elitizado que, como tudo no capitalismo, tende a concentrar a renda nos grandes e amassar sem dó os de baixo.
Futebol popular e a luta anticapitalista
É preciso lutar pela superação de ambos os modelos, é preciso travar a luta nos marcos de um futebol popular. Lutar pelo futebol popular não é lutar pela volta ao passado, é um instrumento de luta anticapitalista. O futebol, como apresentado nesse texto, carrega consigo uma grande possibilidade de mobilização social, e os estádios são os ambientes privilegiados para esta disputa. O estádio elitizado, alienado e homogeneizado é o fim do esporte e uma derrota para classe trabalhadora nesse campo de lutas. Entender o futebol não como um esporte que se joga com os pés e sim como um amplo fenômeno social inserido na sociedade capitalista, e como consequência na luta de classes, que acompanha as mudanças impostas pelo modo de produção é crucial. Ele reflete a disputa pelo sentido da cidade, a luta de classes, se apresenta como agente fundamental na compreensão do mundo e, sobretudo, da formação social brasileira do século XX em diante. Não é coincidência que nos últimos anos tenham se multiplicado os movimentos antifascistas nos clubes de futebol. As arquibancadas refletem aquilo que a sociedade é. As torcidas, de modo geral, sempre representaram a luta popular e são importantes para as classes trabalhadoras, elas são responsáveis por criar e manter a identidade de um clube e seus adeptos. Mas também é importante lembrar que o caráter heterogêneo da arquibancada significa que uma luta popular neste espaço não significa necessariamente movimentos de esquerda ou nem mesmo progressistas. O machismo, o racismo e a homofobia ainda são opressões muito presentes nestes espaços justamente pois ainda são presentes na sociedade.
O combate às opressões nas arquibancadas é uma instância de luta também para a sociedade, e a disputa dos rumos da luta popular nos estádios enquanto instrumento da luta anticapitalista é fundamental. Nada que acontece nas arquibancada de um país é alheio ao que acontece em uma sociedade, o estádio também possui seu micro-espaço de poder e de disputa. É muito mais que “apenas futebol”, é luta tática e estratégica para resistir e fortalecer as lutas populares e anticapitalistas.
*Caetano Branco é professor de geografia e militante da Resistência.
Comentários