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BRASIL

Niterói e os mercadores da morte: breves apontamentos sobre a necropolítica do empresariado e a omissão do poder público

Marcela Almeida*, de Niterói, RJ
Reprodução/vídeos

Aglomeração em Icaraí, no auge da pandemia.

Há um ano, o Ministério da Saúde anunciava 1.760 mortes por COVID-19 no país e pouco mais de 28 mil casos totais confirmados em todo o território nacional (1). Hoje, somamos, até o momento, 362.180 óbitos e o número oficial de contaminados pelo novo coronavírus já passa dos 13,6 milhões no Brasil (2), com médias móveis semanais que superam os três mil óbitos e picos diários que já ultrapassaram quatro mil perdas num intervalo de apenas 24h. Recentemente, foi divulgado pela imprensa que cerca de 75% dos hospitais privados estão com escassez de insumos para entubação (3) e, segundo levantamento do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), 47% dos municípios temem falta de oxigênio nos próximos dias (4). O Brasil é um dos países mais atrasados em relação à vacinação da população. O governo federal não comprou vacinas quando outros países o fizeram, em setembro de 2020 (5). Pior que isso: recusou a compra de 70 milhões de vacinas da Pfizer (6), alegando trâmites burocráticos da ANVISA e postergou o registro sanitário das vacinas CoronaVac e AstraZeneca, contribuindo decisivamente para a demora no início da vacinação no país. Além do sistema de saúde, o sistema funerário também está em risco de colapso (7).

O Rio de Janeiro é um dos estados cuja curva de contaminações e mortes está ascendente. De acordo com a 25ª atualização do Mapa de Risco divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde, em 08/04/21, a maioria das regiões está na bandeira vermelha e as demais (Metropolitana I e Serrana) estão na bandeira roxa (8), classificação que indica alto e altíssimo risco de contaminação pelo novo coronavírus, respectivamente. Imerso nesse contexto de risco, o município de Niterói (Metropolitana II) está, de acordo com o mapa, na bandeira vermelha, o que indica, como dito, alto risco de contaminação pelo novo coronavírus. Hospitais e unidades de saúde da cidade já mostram sobrecarga de atendimentos e o índice de ocupação de leitos nos hospitais públicos e privados no Estado está calamitoso. (9)

Os dados acima mencionados constituem apenas um recorte brevíssimo do cenário catastrófico da pandemia hoje. Longe de aprofundar a devastação gerada pela COVID-19 em nosso meio, tais informações apontam, no entanto, para uma conclusão óbvia: a total falta de controle da pandemia no país, no estado do Rio de Janeiro e também no município de Niterói. O absoluto descontrole na contenção da veloz disseminação do novo coronavírus é o resultado da opção do governo federal de promover a necropolítica como política de Estado, pautando-se por posturas deliberadamente anti científicas, negacionistas e ultraneoliberais.

Mesmo diante desse quadro desolador, desde o registro da primeira morte por COVID-19, há pouco mais de um ano, tanto Bolsonaro e os militares quanto sua base fiel procuram desacreditar as instituições científicas, como a Fiocruz e o Instituto Butantan, as universidades públicas, as pesquisas realizadas, a indicação de protocolos de segurança sanitária, as vacinas e as medidas de distanciamento social defendidas por essas e outras instituições. A propaganda genocida bolsonarista contou e ainda conta com o apoio de setores da burguesia nacional e com uma significativa parcela da classe média e do empresariado local nas cidades, que contribuem, inclusive com recursos financeiros, para promover fake news nas redes sociais através de robôs, boicote aos protocolos sanitários e às medidas de distanciamento e contenção da pandemia, além de ter insuflado a própria população a desconfiar da eficácia da vacinação e a “confiar” no que o governo federal chamou de “tratamento precoce” para a COVID-19, e que contava com o uso da cloroquina e outros medicamentos sem qualquer comprovação científica de eficácia contra a doença.

Além de toda essa gama de iniciativas voltadas à propaganda de políticas de morte, a base fiel bolsonarista voltou a promover atos com pautas negacionistas e contrárias às ações de combate à pandemia. Em Niterói, por exemplo, atos pedindo a reabertura de escolas e de todo o comércio com motivação estritamente econômica vêm sendo realizados nas últimas semanas e o principal deles ocorreu no domingo, 11, na Praia de Icaraí (foto). Sem qualquer respeito às medidas de distanciamento social, trajando camisas da CBF, a maioria sem máscaras, tripudiando das mortes e vociferando contra “o comunismo”, uma parcela do empresariado da cidade tem chamado a população às ruas e assediado seus próprios funcionários para pressionar o governo de Niterói a revogar as medidas restritivas que vinham sendo adotadas. Medidas que, diga-se de passagem, sempre estiveram muito longe de aproximar-se da implementação de um lockdown de, no mínimo, 21 dias e que seria essencial ao achatamento da curva de contaminações, e muito aquém da necessidade de adoção de políticas assistenciais efetivas que pudessem permitir à população aderir à quarentena e ao mesmo tempo garantir sua sobrevivência, para não morrer de COVID-19 nem de fome. Os atos em defesa da morte surtiram efeito e a Prefeitura de Niterói veiculou nesta quinta-feira, 15/04, através de suas redes, o informe de nova flexibilização de atividades que estavam em restrição, cedendo lamentavelmente à pressão dos mercadores da morte da cidade que colocam os lucros acima das vidas.

O que o empresariado bolsonarista faz ao promover atos como esses é necropolítica, é propaganda neofascista e genocida, relativização das vidas e normalização das mortes, especialmente dos trabalhadores, dos oprimidos e dos mais explorados, daquelas e daqueles aos quais as políticas públicas dificilmente chegavam e hoje são ainda mais escassas. Aqueles que o bolsonarismo quer lançar às ruas no pior momento da pandemia no país são os que precisam arriscar suas vidas, vender por um valor irrisório sua força de trabalho e receber um ínfimo pagamento — se comparado ao tanto que enriquecem seus patrões — porque o poder público não assume sua responsabilidade de amparar essa parcela da população mergulhada nas consequências trágicas de uma pandemia de proporções devastadoras e que tem cor, classe e gênero. Aqueles que o bolsonarismo vai atingir com sua política de morte são os trabalhadores que sempre padeceram com a falta de políticas de assistência social e investimentos em saúde pública e, caso adoeçam, estarão nas filas por respiradores e leitos públicos, que já não estão disponíveis, além de não terem nenhuma garantia de sobrevivência para suas famílias. Ao lado desses trabalhadores, estão profissionais da educação, que já sofriam com condições insalubres nas unidades de ensino e hoje, ou estão sucumbindo aos assédios e morrendo de COVID-19 nas escolas, ou estão aderindo às greves pela vida em resistência a terem o mesmo destino que seus colegas tiveram. Estão também profissionais de saúde, que atuam na linha de frente no combate à COVID-19 e lutam para sobreviver à contaminação pelo coronavírus, à precarização, à falta de condições de trabalho, à sobrecarga e ao caos nas unidades de saúde, que sequer contam mais com os insumos básicos para funcionar regularmente nesses tempos. E por fim, estão as mulheres, especialmente, as mulheres negras, que nessa pandemia estão sendo ainda mais exploradas, oprimidas, silenciadas e sobrecarregadas. Ao ceder a uma prematura flexibilização no pior momento da pandemia na cidade, a prefeitura de Niterói acena para a pauta negacionista defendida pelo bolsonarismo, e lava as mãos para o aprofundamento do caos pandêmico e para as vidas que inevitavelmente serão perdidas como consequência dessa medida. 

Quem promove a morte como bandeira tem sangue nas mãos. Quem sucumbe e se cala diante da necropolítica também tem.

*Marcela Almeida é da Coordenação Municipal da Resistência/PSOL Niterói.

NOTAS

(1) https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/15/casos-de-coronavirus-no-brasil-em-15-de-abril.ghtml

(2) https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/14/brasil-tem-mais-de-362-mil-mortos-por-covid-media-movel-de-obitos-fica-acima-de-3-mil-pelo-5o-dia.ghtml 

(3) https://saude.ig.com.br/2021-04-08/escassez-do-kit-intubacao-atinge-75–dos-hospitais-privados–segundo-associacao.html 

(4) https://oglobo.globo.com/sociedade/levantamento-alerta-para-escassez-de-oxigenio-em-1105-cidades-do-brasil-24967949?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=O%20Globo&fbclid=IwAR1qNpw0Zq9fMtFl6Htfx17QqSfGu8axZXd3rMkS4gJPT0yIRblnALNxcpQ

(5) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56160026

(6) https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/03/07/erro-de-gestao-atrasou-70-milhoes-de-doses-da-pfizer-ao-brasil

(7) https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/03/10/a-pressao-sob-o-sistema-funerario-e-o-risco-de-colapso

(8) https://www.saude.rj.gov.br/noticias/2021/04/25-atualizacao-mapa-de-risco-da-covid-19-estado-apresenta-bandeira-roxa

(9) https://plantaoenfoco.com.br/cidades/niteroi-sg-e-marica-devem-disponibilizar-leitos-de-uti-para-o-estado/