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OPRESSÕES

Bell Hooks e a auto-organização negra

Gabriel Santos, de Maceió AL
Divulgação/HHmagazine

Bell hooks é uma educadora popular, professora, pensadora e teórica que trabalha, a partir do tema do feminismo negro, uma outra forma de relações sociais. Seus escritos falam sobre arte, mídia de massas, história, relações de gênero, sexualidade, raça e classe. A autora tem mais de trinta livros publicados sobre diversos temas, como crítica à cultura, memórias, poesia, literatura infantil, entre outros.

Seu pensamento é fortemente influenciado por Paulo Freire, compreendendo e utilizando a pedagogia e a prática pedagógica como um instrumento político e de resistência nas lutas antirracista e anticapitalista. Dando um imenso valor para a experiência como algo que eleva a consciência, e para as práticas cotidianas, Bell Hooks valoriza bastante o papel da subjetividade em suas obras, assim como conhecimentos que surgem fora de ambiente acadêmicos.

Acredito que a leitura e assimilação de parte de seus pensamentos pelos movimentos sociais brasileiros são cada vez mais importantes para a compreensão de questões relacionadas a gênero, raça e classe. Devíamos ler cada vez mais Bell Hooks, utilizando paralelos entre a sala de aula e organizações políticas. Assim, podemos pensar temas tão importantes no momento atual como trabalho coletivo, camaradagem e em especial no que diz respeito a relação entre organizações e movimentos sociais, como no movimento antirracista.

Através de Bell Hooks podemos pensar como se dá o processo de incorporação da pauta antirracista e o pensamento radical negro nos debates em espaços de maioria branca, assim como o papel de sujeitos negros, seja como militantes de base nesses
espaços (aqui podendo ser feito um paralelo coma figura do estudante e a sala de aula), ou como dirigentes destes mesmos locais (fazendo agora uma aproximação com a figura do professor).

Ela nos mostra como a introdução de teorias e ideias que surgem a partir do pensamento radical negro tendem a romper ou confrontar a normalidade do pensamento epistemológico preexistente, uma normalidade e um pensamento que são brancos. Esse encontro de mundos, podemos assim colocar, e o conflito que é gerado a partir dele, não tem o fim previsto de antemão.

Em Pensamentos Feministas, Hooks escreve: “Para nos confrontarmos mutuamente de um lado e de outro de nossas diferenças, temos de mudar a ideia acerca de como aprendemos. Em vez de ter medo do conflito, temos de ter meios de usá-lo como catalisador para uma nova maneira de pensar, de crescimento”.

O confronto, que é natural, surge e traz consigo a possibilidade de ser saudável, gerando sínteses e saltos de qualidade entre os militantes e a organização como um todo. Porém, para isto acontecer, depende antes de tudo da vontade dos militantes que
sempre estiveram no local central em assumir uma posição e um local de escuta, diferente do que sempre exerceram, assim como de uma boa condição por parte da equipe dirigente.

Infelizmente, aquilo que vemos como mais comum no encontro entre estes dois mundos e o confronto entre eles são, justamente, as perdas. No momento que os corpos negros passam a ocupar este novo espaço (Bell Hooks fala das salas de aula, nós
traçamos aqui esta linha pensando nas organizações políticas) e não recuam de suas posições, é comum vermos ativistas brancos se incomodarem. Estes acreditam que estão perdendo um espaço que seria deles por direito e por natureza. Assim, estes corpos negros se tornam um incômodo e uma ameaça para alguns ativistas brancos, que se incomodam com o fato de pessoas negras estarem se tornando sujeitos ativos nestes espaços, com ação e teorização própria.

Pessoas brancas podem criar a concepção de que, por ocuparem os postos centrais a mais tempo, as pessoas negras que adentram e trazem novas contradições, não deveriam fazer críticas a ela. Taxam esses sujeitos negros de conflitantes e desagregadores pelos seus apontamentos e críticas. Afirmam ainda, que não teriam conhecimento necessário para efetuar tais críticas, ou que suas concepções e teorias não seriam marxistas o suficiente. Os espaços das organizações de esquerda, por mais que se auto declarem revolucionárias, não estão isentas desses conflitos e contradições.

A ideia do outsider, desenvolvida por feministas negras norte-americanas, em especial por Patricia Hill Collins, também é válida para pensar a relação da pauta e do militante negro em espaços que historicamente foram brancos. Collins desenvolve a ideia de que
sujeitos oprimidos podem estar dentro de determinada configuração e estrutura e ainda assim se sentir, ou serem colocados, como se estivessem do lado de fora dela, o papel de outsider. Assim, eles estão na posição que a autora chama de outsider within, no qual
eles pertencem sem pertencer de fato a essas estruturas.

Isso é válido para pensarmos a posição de pessoas negras que entram em organizações políticas, mas não tem vazão para suas pautas e referências teóricas. Eles ocupam então a posição de outsider within. No fim, esses sujeitos acabam se afastando de tal organização, ou terminam se adequando a posição que lhe é imposta, abortando assim seu potencial e vontade revolucionária.

A questão que fica é como fazer que esse encontro e conflito não sejam destrutivos, mas sim seu oposto, gerando sínteses. Uma resposta universal é impossível de se alcançar, pois cada local tem suas especificidades e traz consigo suas questões próprias. Ainda assim, acredito que buscar gerar uma síntese sem perdas é um movimento quase impossível. Pensar diferente seria trabalhar com um idealismo. O “X” da questão consiste em buscar, partindo das perdas individuais que ocorram entre os militantes que sintam seu espaço diminuir e se coloquem contra este enegrecimento, um salto que seja qualitativo para a organização como um todo. Todo movimento existe em seu contraditório. A partir das debilidades e perdas, gerar o avanço, refletindo entre os demais membros, debatendo e entendendo os signos destes confrontos.

Ler e interpretar Bell Hooks nos auxilia com questões que precisam ser pensadas a partir de nossa realidade. No Brasil, país do mito da democracia racial, é impossível que organizações e movimentos sociais se enraízem junto dos trabalhadores e do povo pobre sem avançarem no tema racial. E para que esses avancem no tema racial e enegreçam suas fileiras e suas análises, é preciso que sujeitos brancos se coloquem como sujeitos que se racializaram, porém, a partir de um local de branquitude. Esse é um pequeno passo para que esses sujeitos façam como Hooks apontou, e assumam seus privilégios construídos estruturalmente.

No artigo De mãos dadas com minhas irmãs, Bell Hooks diz: “o grau que uma mulher branca é capaz de aceitar a verdade da opressão racista – da cumplicidade das mulheres brancas, dos privilégios que elas recebem em uma estrutura racista – determina a empatia que são capazes de ter com mulheres de cor.” Ou seja, sem que pessoas brancas busquem refletir de forma concreta sobre a estrutura racista da sociedade, e como eles próprios usufruem desta estrutura, esses não vão conseguir se somar de fato na luta antirracista.

Vale lembrar de Patricia Hill Collins, que apontava que ao branco assumir que existe racismo, e se colocar como privilegiado dele, seria um meio importante de desmascarar o mito da democracia racial.

Por fim, a conclusão que queremos chegar é que, para que se tenham saltos e construção qualitativa no tema racial, e, por consequente, na ligação orgânica com a classe trabalhadora, as pessoas brancas, maioria nos espaços políticos institucionais e
organizações políticas da esquerda brasileira, precisam agir de forma consciente para modificar essa realidade, e trabalhar de forma concreta para ter mais negros nos espaços, inclusive nos postos de dirigentes e pensadores, modificando assim a forma
de fazer política.