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Ciro Gomes nunca voltou de Paris?

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Mais vale o exemplo que a doutrina
Quem perde a vergonha, não tem mais o que perder
(Sabedoria popular portuguesa)

Assistimos em março uma mudança na conjuntura no Brasil em função de três grandes acontecimentos.

Dois eram previsíveis. O agravamento do cataclismo sanitário que atingiu um nível apocalíptico, e um novo momento de contração econômica que eleva o desemprego para o patamar mais elevado da série histórica.

O terceiro foi uma surpresa: a anulação das sentenças contra Lula e a votação da suspeição do juiz Sergio Moro no Supremo Tribunal Federal (STF).

Esta combinação de eventos enfraqueceu o governo Bolsonaro, e abriu a possibilidade de elevar o patamar da resistência ao governo de extrema-direita. Os dois manifestos da semana passada convergem e respondem a este novo momento da conjuntura.

O dos quinhentos, assinado por economistas e banqueiros, corresponde a uma plataforma de exigências ao governo. O dos presidenciáveis pretende abrir o caminho do meio contra Bolsonaro e contra Lula. Mas o espaço político para a oposição liberal diminuiu, minguou, reduziu, dramaticamente.

O papel de Ciro Gomes na luta contra Bolsonaro é tema de uma apaixonada polêmica. O principal problema da assinatura de um manifesto em defesa da democracia no dia do aniversário do golpe de 1964, é que todos os outros signatários apoiaram Bolsonaro em 2018.

E como a reivindicação da ditadura militar é uma das bandeiras centrais do bolsonarismo é difícil aceitar agora as credenciais democráticas de Luciano Huck, João Doria, Amoêdo, Mandetta ou Eduardo Leite.

Quem fez campanha e votou em Bolsonaro em 2018 não tem autoridade. Ciro não votou em Bolsonaro, mas, tampouco, teve disposição para lutar contra ele no segundo turno. Foi para Paris. A questão é saber se Ciro Gomes, mais de dois anos depois, já “voltou de Paris”. O manifesto prova que não voltou.

Ciro Gomes não é e nunca foi uma liderança de esquerda. Mas é bom esclarecer qual é régua que devemos usar como parâmetro de avaliação. O critério marxista para a caracterização político-social de alguém não é a certidão de nascimento.

Não é irrelevante para o futuro político de quem quer que seja sua origem social.  Mas ninguém escolhe em que família nasce. Seria desonesto considerar Ciro Gomes um líder burguês pela origem de classe. A família de Ciro Gomes não era burguesa, somente pequenos comerciantes, portanto, isso não tem importância.

E é verdade que não foram muitos aqueles que nasceram em famílias da classe dominante no Brasil e romperam com sua classe de origem para defender os interesses dos trabalhadores, mas já aconteceu: Caio Prado, Leôncio Basbaum, por exemplo.

O que importa é quando, na vida adulta, as pessoas são chamadas a escolher a que classe social querem unir o seu destino. Marxistas não julgam dirigentes políticos somente pelo que dizem, mas pelo que fazem.  Ciro Gomes não é uma liderança popular, nem sequer um representante das camadas médias.

Sua trajetória desde a juventude em 1979, quando disputou a eleição da União Nacional dos Estudantes (UNE) pela chapa de direita, animada por filiados a Arena, o partido que defendia a ditadura, foi a de um político profissional da burguesia.

Em 1982 concorreu pelo PDS (herdeiro da Arena) para deputado estadual, o partido do seu pai, prefeito em Sobral, interior do Ceará.

Depois, passou pelo PMDB em 1983, esteve na fundação do PSDB seguindo Tasso Jereissati, de uma das famílias mais ricas do Ceará e, insuspeito de ideias socialistas, filiou-se ao PPS de Roberto Freire para ter legenda para ser candidato à presidência em 1998 e 2002, do qual saiu para ir para o PSB, depois ao PROS e, finalmente, ao PDT.

Construiu, portanto, uma trajetória errática personalizada passando por sete partidos em quarenta anos, e colaborando com os governos Itamar Franco, FHC e Lula.

A ida para Paris no segundo turno de 2018 não foi, portanto, um erro acidental, mas um momento culminante na carreira de Ciro Gomes. Ela simbolizou a marcação de uma equidistância entre Bolsonaro e Haddad, entre um neofascista e uma candidatura moderada de esquerda. Essa decisão pesa sobre os seus ombros de forma imperdoável. Porque agora Ciro Gomes está encurralado.

A possibilidade de Lula ser candidato à presidência em 2022 mudou a relação política de forças no Brasil.

A possibilidade de Lula ser candidato à presidência em 2022 mudou a relação política de forças no Brasil. Foi a maior vitória política democrática dos últimos cinco anos. A Lava-Jato viveu uma derrota fatal. A narrativa de que o governo do PT era uma quadrilha corrupta foi, gravemente, ferida e agoniza.

A ironia da história foi que a necessidade de preservar a Lava Jato explica a decisão de Fachin de transferir os processos que condenaram Lula em Curitiba para o TRF-1 de Brasília, e a anulação das condenações. A suspeição de Moro enterrou sua possível candidatura.

Moro ainda era o nome de maior popularidade da oposição liberal. Mas parece cada vez mais um cadáver insepulto. Sem ele o “giro ao centro”, ou seja, a possibilidade de uma candidatura de direita liberal, como Doria ou até Ciro Gomes conquistar a liderança da oposição, superando uma candidatura de esquerda no segundo turno de 2022 é mais que duvidosa.

O cenário de um confronto entre Bolsonaro e Lula, mantidas as atuais condições, passou a ser a hipótese mais provável, e é possível que a exasperação política antecipe a polarização do segundo para o primeiro turno de 2022.

Não é possível prever qual será a situação política em 2022, portanto, a discussão de cenários eleitorais é uma aproximação limitada, que considera algumas variáveis atuais como constantes, o que é duvidoso. Eleições no Brasil não são muito previsíveis com tanta antecedência.

As massas trabalhadoras e os setores de classe média mais escolarizada que se posicionam na oposição a Bolsonaro estão vivendo um trauma. Muitos milhões de pessoas estão assustadas, machucadas e zangadas. A tragédia sanitária, a pauperização crescente, o obscurantismo, a violência, a estupidez que nos cerca estão brutalizando a sociedade, e uma tempestade de fúria e ira está se formando.

O Brasil caminha para uma fratura política-social superior ao que foi o Fora Collor em 1992, ou o processo que se abriu depois de junho de 2013.

O espaço para um candidatura de “pacificação” e “reconciliação” nacional encolheu diante da tendência de uma radicalização social e política que tende a ser capturada, em esmagadora maioria, por Lula, o arqui-inimigo de Bolsonaro.

Mas Bolsonaro mantém força política, influência social e é ainda um perigo real a possibilidade de sua reeleição. Em primeiro lugar, há que considerar que a massa da burguesia apoia o governo, e isso conta muito. Mesmo o núcleo duro da classe dominante que tem descontentamentos crescentes, ainda avalia que Bolsonaro deve cumprir o seu mandato, e até pode se instrumental, porque confia nas instituições do regime, como o Congresso e os Tribunais, para estabelecer limites a pulsão bonapartista.

Em segundo lugar, o governo mantém apoio de um terço da população, em especial, nas camadas médias que giraram para a extrema-direita.

Em março o Brasil atingiu trezentos mil mortos e passou a ser o centro da pandemia em escala internacional. As previsões dos epidemiologistas é que o cenário mais provável para abril é apocalíptico. A falência da gestão da peste levou a um cataclismo que colapsou o sistema de saúde, ameaça um funerário, e resume o desastre do balanço dos últimos dois anos. Este balanço terrível será a herança de Bolsonaro para 2022.

Se é que este governo conseguirá chegar ao final deste mandato.