Há dois perigos principais às correntes socialistas diante do impactante retorno de Lula ao centro da disputa política nacional. De um lado, existe a pressão para a rendição à estratégia desenhada por Lula em suas entrevistas recentes, que gira ao redor da costura de um novo pacto de colaboração de classes para a gestão do capitalismo brasileiro. Esse perigo está presente sobretudo em correntes petistas ou próximas do PT. De outro, há a pressão à demarcação sectária contra Lula, que ignora a esperança que parte significativa dos trabalhadores deposita no ex-presidente em um contexto da tragédia nacional comandada por Jair Bolsonaro. Esse perigo é bastante visível nas correntes à esquerda do PT, como em algumas que compõem o PSOL.
Os dois perigos mencionados acima guardam relação com a avaliação que se faz dos governos do PT, bem como do processo político-social que provocou a queda de Dilma Roussef e culminou na eleição de Bolsonaro. Neste primeiro texto, vou me concentrar no debate com as correntes socialistas que tendem à resposta sectária, uma vez que se encontram politicamente mais próximas da organização a que pertenço, a Resistência/PSOL. No segundo artigo, o objetivo será a polêmica com as correntes ligadas ao PT.
As organizações que tendem à política sectária desconsideram (ou menosprezam) o impacto, na consciência popular, das concessões sociais progressivas que foram realizadas nos governos do PT, como o aumento real do salário mínimo, a instituição do Bolsa Família, a diminuição por um largo período do desemprego, a aplicação das cotas raciais nas universidades públicas, entre outras. Para elas, o único fator relevante a ser considerado é o caráter capitalista e os limites dos governos petistas de conciliação de classes. Assim, não conseguem explicar a base material e política que explica a resiliência da influência de Lula na classe trabalhadora. Há que se ter uma política concreta que, levando em conta tanto a crítica do programa da direção majoritária do PT, como o nível médio de expectativas e disposição dos trabalhadores, seja um ponto de apoio ao avanço das lutas sociais e da consciência de classe.
Ao mesmo tempo, essas correntes anulam (ou diminuem) o significado do processo profundamente reacionário que foi inaugurado com o golpe de 2016. Tanto é, que deram apoio (mesmo velado) à Lava Jato, às manifestações dos amarelinhos pelo impeachment e à prisão política de Lula. Elas proclamam um programa ultimatista, desconsiderando o presente nível de consciência da ampla maioria do povo trabalhador. Há, inclusive, nesse setor da esquerda socialista, afirmações sem evidências de que Lula seria, desde já, a candidatura da burguesia e do imperialismo para conter o perigo da explosão social, sendo que é evidente que o núcleo dirigente da classe dominante buscar construir uma alternativa própria tanto contra a Lula como a Bolsonaro.
Em contraste com essa visão, a Resistência defende uma linha dentro do PSOL que busca evitar tanto o perigo oportunista como o sectário, tentando desenvolver uma política que seja útil ao avanço da luta, da organização e da consciência da classe trabalhadora e oprimida.
Somos a favor da defesa de uma Frente de Esquerda, sem alianças com a direita e burgueses, para as lutas e as eleições
Por outro lado, temos a convicção de que o PSOL deve atuar pela conformação de uma alternativa unificada da esquerda e dos movimentos sociais, sindicais e dos oprimidos, levantando a defesa de um programa de reformas estruturais com elementos anticapitalistas e de uma política que recuse alianças com setores burgueses e partidos da direita, marcando oposição à linha de alianças amplas que vem sugerindo Lula. Não se trata de uma busca por diferenciação a todo custo. Trata-se de dizer a verdade aos trabalhadores e ao povo pobre: em aliança com a burguesia não será possível realizar nenhuma mudança estrutural no país, como colocar fim à desigualdade social descomunal, ao genocídio do povo negro, à destruição ambiental em larga escala, à pobreza em massa, entre outros pontos. Para dar sentido prático a essa questão, vale perguntar: qual setor da classe dominante aceitaria a revogação da reforma trabalhista e da previdência, a desmilitarização das polícias, a legalização do aborto, a valorização substancial do salário mínimo e a taxação das grandes fortunas e lucros dos capitalistas? Por um lado, não ignoramos o tremendo impacto do retorno de Lula ao centro da disputa política, especialmente pelo sentimento progressivo de esperança, ainda que contraditória, que ele produz em um amplo setor dos trabalhadores e do ativismo, que quer se livrar de Bolsonaro pela esquerda. Temos consciência que a experiência com o PT foi interrompida com o golpe parlamentar, sendo que os setores sociais que passaram a rejeitar Lula e seu partido (o fenômeno do antipetismo), em geral, tiraram conclusões à direita e, não raramente, à extrema direita. Portanto, o segmento da classe trabalhadora que hoje deposita esperanças em Lula é o mais consciente, pois guarda uma referência político-ideológica à esquerda. Acreditamos que o PSOL deve dialogar com esse amplo setor social e suas expectativas. Sem isso, o partido ficará completamente isolado das massas trabalhadoras e do ativismo que hoje veem em Lula a possibilidade de vencer Bolsonaro. Por isso, somos a favor da defesa de uma Frente de Esquerda, sem alianças com a direita e burgueses, para as lutas e as eleições, na qual cabe a Lula um papel central.
O PSOL deve lutar para que a esquerda chegue ao governo, derrotando Bolsonaro e também as alternativas liberais (PSDB, DEM, etc.) e do centro-esquerda burguês (Ciro Gomes). Mas o PSOL deve lutar também para que a esquerda chegue ao governo com um programa de esquerda — portanto, anticapitalista —, apostando na força da mobilização do povo trabalhador para levá-lo a cabo.
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